O feminismo em “Pobres criaturas”

Imagem: Divulgação
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Por NATHALIE REIS ITABORAÍ*

No mês da celebração das lutas feministas, um filme certamente para se ver, mas menos para se divertir e mais para se indignar

Mulheres foram (e ainda são) frequentemente comparadas a crianças, uma forma usual de negar sua autonomia (recurso historicamente empregado também contra indígenas e escravizados, para negar-lhes a capacidade de tomar decisões e ter posse plena de suas vidas). A narrativa apresentada no filme Pobres criaturas (direção de Yorgos Lanthimos, baseado no livro homônimo de Alasdair Grey, escrito em 1992) permite uma discussão do patriarcado e das formas de dominação em geral, ao levar ao extremo o poder que é exercido sobre as mulheres e crianças na sociedade, ali tratadas como menores.

A partir daqui, o texto conterá spoilers, por isso é recomendado assistir ao filme antes de acabar de ler. Esclareço também que não pretendemos julgar a qualidade estética do filme indicado ao Oscar, mas tão somente usar a história ali contada para uma reflexão sobre as desigualdades que pesam, há séculos, sobre mulheres e meninas.

A trama começa com um experimento científico em que o cérebro de uma criança é colocado no corpo de uma mulher adulta (encontrada pouco depois de morrer) que é reanimada. Têm-se assim os processos habituais de socialização de uma criança só que em um corpo adulto. É curioso, e cômico por vezes, para o público ver uma mulher adulta aprendendo a comer, andar, falar, e também aprendendo as regras da sociedade. A história dá muito destaque à descoberta da sexualidade e aos questionamentos da protagonista sobre poder e as expectativas masculinas, parecendo por vezes endossar o lema feminista “nossos corpos nos pertencem”, uma ironia, pois a história se inicia com o não pertencimento sequer dos corpos da criança e da mulher que juntas formam a protagonista.

A trama vai muito rápido das birras infantis diante da autoridade do “pai” até a formação de uma mulher adulta, consciente e decidida para tomar conta de sua vida, um processo que levaria pelo menos cerca de 20 anos, mas que, a julgar pelo não envelhecimento da personagem, se passou em dois a três anos.

Embora as respostas da protagonista aos homens e os seus supostos questionamentos da moral e sociedade vigentes possam, num olhar rápido, causar certa identificação e simpatia feministas, há uma evidente simplificação, e mesmo distorção, da ideia de emancipação das mulheres. Se o experimento em questão for tomado a sério, temos uma sucessão brutal de crimes contra a mulher e a criança: uma criança cujo cérebro foi retirado e implantado no corpo de sua mãe (que saberemos estava grávida e teria se matado por não suportar a dominação conjugal sob a qual vivia) – e podemos supor que poderia ter vivido em seu próprio corpo ao invés de ser parte de um experimento científico macabro; e esta criança num corpo de mulher adulta é oferecida em casamento (aliás, uma bandeira importante do feminismo no mundo é impedir o casamento infantil que expressa uma submissão extrema de meninas) e depois é permitida viajar com um homem que mal conhece, sendo destacada na narrativa sua intensa experiência sexual, sem evidenciar a extrema vulnerabilidade em que ela se encontra, do ponto de vista não apenas da sexualidade, mas também da autonomia material (sendo o dinheiro oferecido pelo seu criador-tutor roubado pelo amante, vivenciando ela a prostituição, que é extremamente romantizada pelo olhar masculino que domina a obra) e do direito de ir e vir (é presa pelo tutor, pelo amante e pelo ex-marido quando a reencontra).

Nesta saga patriarcal, o sofrimento feminino e infantil é inexistente ou minimizado, e a figura do criador-tutor é idealizada ao extremo (sintomaticamente é chamado “God”). Concessões são feitas ao fato de God ter crescido sob um pai igualmente tirano que usou seu corpo em experimentos científicos, o que ele replica, fazendo experimentos com outros corpos femininos jovens ou adultos nos quais implanta cérebros de crianças (o que a própria protagonista, já consciente do ocorrido, observa quando se vê diante de outro corpo feminino em situação semelhante à sua, repetindo o ciclo), uma expressão da dominação (pela ciência) sobre corpos femininos e infantis que cheira à pedofilia, se postularmos que o desejo do pedófilo se refere menos ao corpo infantil em si do que à completa submissão e não oposição a seus anseios de dominação que (o cérebro de) uma criança oferece.

Assim, a primeira camada do filme oferece uma celebração fácil sobre uma suposta resposta feminista à sociedade, fazendo rir dos questionamentos e das pretensões frustradas de controle do amante e do marido sobre a mulher, mas ao aprofundar em outras camadas, tem-se um retrato brutal da dominação patriarcal, legitimada no perdão da protagonista ao “pai” criador-tutor. Se a narrativa ficcional seria no todo impossível de acontecer na realidade, seus fragmentos são bastante frequentes e iluminam aspectos dos muitos crimes contra crianças e mulheres sustentados pelo patriarcado.

Se a superfície do filme oferece diversão e entretenimento, as camadas profundas mostram o quanto são importantes as lutas em defesa dos direitos das mulheres e das crianças. No mês da celebração das lutas feministas, é um filme certamente para se ver, mas menos para se divertir e mais para se indignar.

*Nathalie Reis Itaboraí é doutora em Sociologia pelo Instituto de Estudos Sociais e Políticos da UERJ. É autora do livro Mudanças nas famílias brasileiras (1976-2012): uma perspectiva de classe e gênero (Garamond). [https://amzn.to/4caDzl9]

Referência


Pobres criaturas (Poor Things)
EUA, Reino Unido e Irlanda do Norte, 2023, 141 minutos.
Direção: Yorgos Lanthimos.
Elenco: Emma Stone, Willem Dafoe, Christopher Abbott, Mark Ruffalo.


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