Por RAFAEL VALLES
O entendimento sobre o que ocorreu no dia oito de janeiro de 2023 passa pelo modo como compreendemos o uso das imagens
No livro Ver é um todo – entrevistas e conversas (1951-1998), o renomado fotógrafo francês Henri Cartier-Bresson resumiu em poucas linhas uma questão importante para pensar-se o trabalho dos fotojornalistas: “Não tenho ‘mensagem’ ou ’missão’, tenho um ponto de vista. A fotografia é um meio de comunicação muito importante, e somos responsáveis diante das milhões de pessoas que alcançamos com nossas reportagens difundidas pela imprensa” (CARTIER-BRESSON, 2015, p.37).
Através do olhar de Cartier-Bresson, fica evidente não só a importância de um sentido ético para o ofício do fotojornalismo, mas também a responsabilidade que o trabalho de um fotojornalista acarreta diante de quem irá ler as notícias e ver as imagens. Por isso, é sempre importante ter em conta que o trabalho de um fotojornalista não se reduz a “complementar” um texto jornalístico: trata-se, antes, de entender as responsabilidades de construir, através das imagens, um olhar sobre determinado acontecimento.
Quis a ironia do destino que o dia oito de janeiro – celebrado como o Dia Nacional da Fotografia e o Dia do Fotógrafo aqui no Brasil – fosse marcado, neste ano, por imagens tão tristes para a história do país. Ver os registros fotográficos dos atentados golpistas cometidos por grupos de extrema direita aos prédios dos Três Poderes reforça, ainda mais, uma reflexão sobre o papel das imagens diante de eventos históricos e traumáticos.
O entendimento sobre o que ocorreu no dia oito de janeiro de 2023 passa pelo modo como compreendemos o uso das imagens. Os registros fotográficos e audiovisuais feitos pelos bolsonaristas não só exaltam a barbárie do ato que cometeram, mas também constituem parte fundamental da construção do ato. As selfies e as publicações dessas imagens em redes sociais cumprem um anseio de legitimidade e ostentação por parte de quem as registrou. O que, para a justiça, configura uma prova de crime, para os seus autores, configura um ato de suposto patriotismo e valentia “antissistema”. Estamos, assim, alcançando níveis nunca antes vistos nesta “sociedade atomizada por um individualismo com beiradas narcisistas, que precisa ver sua bela imagem refletida no olhar alheio para ser” (SIBILIA, 2008, p. 263).
No entanto, é preciso levar em conta que, durante estes atentados à democracia, às instituições e ao patrimônio público, também foram registradas imagens por pessoas que não apoiaram a tentativa de golpe. Ao exercerem o seu ofício de documentar os fatos, os fotojornalistas assumiram a dura missão de transmitir em imagens a dimensão do vandalismo e da destruição praticados pelos golpistas. Os relatos de fotojornalistas que estiveram presentes naquele dia em Brasília mostram como os bolsonaristas encaravam a imprensa como inimiga.
É o caso, por exemplo, do depoimento de Gabriela Biló, fotojornalista da Folha de S. Paulo: “Eu não consegui entrar dentro do STF por causa da violência. Além da agressividade dos golpistas, a polícia tinha começado a retomada do STF, então estava arriscado de qualquer forma para mim. (…) Muitos, mas muitos colegas foram covardemente agredidos. (…) Tiveram fotógrafos que foram espancados dentro do Palácio do Planalto. No dia seguinte, na sala dos fotógrafos tinha até sangue no chão”.[i]
Marina Dias, repórter e fotojornalista do jornal norte-americano The Washington Post, expõe o que passou naquela fatídica tarde na capital federal: “Eu e colegas jornalistas fomos agredidos enquanto trabalhávamos na cobertura de atos terroristas em Brasília. Fui cercada, chutada, empurrada, xingada. Quebraram meus óculos, puxaram meu cabelo, tentaram pegar meu celular”.[ii]
Um repórter do jornal mineiro O Tempo, que preferiu manter a sua identidade preservada, apresenta outro relato dramático: “Três ou quatro homens vestidos como militares me cercaram, me abordaram e passaram a me bombardear com perguntas: “quem é você? o que faz aqui? por que não está vestido como um patriota? é infiltrado? é petista?”. Gelei. Um deles passou a perna em mim e caí. Apareceu mais gente. Todos gritavam, apontavam o dedo para mim, ameaçavam. Uns chutavam as minhas pernas. Tomaram a minha mochila, acharam o meu crachá. Falei que eu era funcionário do Grupo Sada, de Minas Gerais, mas eles não queriam conversa. Roubaram o meu crachá, quebraram ele. Pegaram minha carteira, roubaram meus documentos, pegaram meu celular. Repetiam a todo momento que eu era petista infiltrado. Eu respondia que não era, estava ali a trabalho. Foi então que colocaram uma arma na minha cintura, dizendo que eu ia morrer. Outro apareceu com uma arma colocada nas minhas costas e não paravam de me dar tapa na cara, xingar”.[iii]
Outros repórteres e fotojornalistas – de entidades como Agência Reuters, Agência France Presse, Agência Brasil, canal BandTV, site Metrópolis lataram agressões por parte dos golpistas.
Diante de relatos como estes, é sempre importante resgatar os ensinamentos de Cartier-Bresson: “[…] o mais gratificante para um fotógrafo não é o reconhecimento, o sucesso, etc. É a comunicação: o que você diz pode ter um significado para outras pessoas e adquirir certa importância. Temos uma grande responsabilidade e devemos ser absolutamente honestos com o que vemos” (CARTIER-BRESSON, 2015, p. 26). Mesmo diante do cenário de guerra e de todas as adversidades que enfrentaram no dia oito de janeiro, lá estiveram os fotojornalistas para informar e comunicar.
Enquanto as imagens feitas pelos golpistas servem de prova para incriminá-los pelos atos de selvageria que cometeram, as imagens feitas pelos fotojornalistas constroem um caminho para compreendermos a complexidade da história sendo escrita. Os registros feitos por repórteres e fotojornalistas hoje percorrem o mundo para mostrarem por que o dia oito de janeiro se tornou um dos momentos mais dramáticos da história deste país e por que nunca mais poderá se repetir. De alguma forma, o Dia Nacional da Fotografia e o Dia do Fotógrafo ganharam um sentido mais profundo neste ano de 2023.
*Rafael Valles é escritor, jornalista, realizador audiovisual. Doutor em Comunicação Social pela Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul (PUCRS).
Referências
CARTIER-BRESSON, Henri. Ver é um todo – Entrevistas e conversas 1951-1998. São Paulo: Gustavo Gili, 2015.
SIBILIA, Paula. O show do eu – a intimidade como espetáculo. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 2008.
Notas
[i] https://www.instagram.com/reel/CnXVMtTuOXw/?igshid=YmMyMTA2M2Y=
[ii] https://twitter.com/falamarina/status/1612282583462600704?s=20&t=lBP0M2LxZ0Ae9sy6dXos3w
[iii] https://www.youtube.com/watch?v=-EYLSCAe298
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