O fracasso da construção da nação no Afeganistão

Lyonel Charles Feininger (1871–1956), Architecture, 1937.
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Por ALASTAIR CROOKE*

Foi no Afeganistão que uma nova visão de mundo liberal foi alçada

A construção da nação (nation-building) no Afeganistão chegou em 2001. As intervenções ocidentais no antigo bloco oriental, na década de 1980 e início da década de 1990, foram espetacularmente eficazes na destruição da velha ordem social e institucional; mas igualmente espetaculares ao falhar em substituir as sociedades que haviam sido implodidas por novas instituições. A ameaça de Estados falidos tornou-se o novo mantra, e o Afeganistão ― na esteira de destruição ocorrida após o 11 de setembro ― necessitava, portanto, de intervenção externa. Estados fracos e fracassados seriam o terreno fértil para o terrorismo e sua ameaça à ordem global, dizia-se. Foi no Afeganistão que uma nova visão de mundo liberal foi alçada.

Numa outra escala, no entanto, a guerra no Afeganistão acabaria por se tornar uma outra prova de fogo. Em termos mais realistas, o Afeganistão se transformou em um campo de provas para cada inovação no âmbito do gerenciamento tecnocrático de projetos ― e cada uma dessas inovações se anunciava como precursora do nosso futuro mais amplo. Uma enormidade de fundos foi despejada, edifícios foram erguidos e um exército de tecnocratas globalizados chegou para supervisionar todo o processo. Big data, IA e a utilização de conjuntos cada vez maiores de métricas técnicas e estatísticas teriam que derrubar velhas ideias “enfadonhas”. A sociologia militar, na forma de Equipes de Terreno Humano [Human Terrain Teams], assim como outras criações inovadoras, foram lançadas para trazer ordem ao caos. Aqui, toda a força do mundo das ONGs e as mentes mais brilhantes daquele governo internacional em gestação receberam um playground com recursos quase infinitos à sua disposição.

Ele seria uma vitrine para o gerencialismo tecnocrático, onde se presumia que uma forma devidamente técnica e científica de entender a guerra e a construção da nação seria então capaz de mobilizar a razão e o progresso, para realizar o que todos os outros não conseguiram, e assim criar uma sociedade pós-moderna, a partir de uma sociedade tribal complexa com sua própria história.

O novo chegou ― por assim dizer ― em uma sucessão de pacotes de ONGs timbrados como modernidade pop-up. Evidentemente, o estadista britânico do século XVIII, Edmund Burke, já havia alertado em Reflexões sobre a Revolução na França, ao testemunhar os jacobinos derrubando sua velha ordem, que “é com infinita cautela” que alguém deve derrubar ou substituir estruturas que serviram à sociedade ao longo dos tempos. Mas essa tecnocracia gerencial não podia perder tempo com velhas ideias enfadonhas.

E o que a queda do regime instituído pelo Ocidente no Afeganistão na semana passada tão claramente acabou revelando é que a casta gerencial de hoje, consumida pela ideia da tecnocracia como o único meio de efetivar regras funcionais, nasceu, em vez disso, como algo já completamente podre ― “derrota movida a dados”, como um veterano norte-americano no Afeganistão o descreveu ―, tão podre que desmoronou em questão de dias. Sobre os erros extensivos do sistema no Afeganistão, ele escreve: “Um SEAL aposentado que serviu na Casa Branca sob Bush e Obama refletiu, [que] ‘coletivamente, o sistema é incapaz de dar um passo atrás para questionar suposições básicas’. Esse sistema pode ser melhor compreendido não simplesmente como um organismo militar ou de política externa, mas como um eufemismo para os hábitos e instituições de uma classe dominante americana, que exibiu uma capacidade comum quase ilimitada de driblar os custos do fracasso.

“Essa turma, em geral, e os responsáveis pela guerra no Afeganistão, em particular, acreditavam em soluções informacionais e gerenciais para problemas existenciais. Eles sublimaram os cruzamentos de dados e índices estatísticos para evitar a escolha de objetivos prudentes e a elaboração de estratégias adequadas para alcançá-los. Eles acreditaram no seu próprio destino providencial e de quem governa como eles, independentemente dos seus fracassos”.

O que quer que não fosse corrupto antes da chegada dos Estados Unidos no Afeganistão tornou-se corrupto no turbilhão de 2 trilhões de dólares de fundos americanos despejados no projeto. Militares, fabricantes de armas, tecnocratas globalizados, especialistas em governança, trabalhadores humanitários, mantenedores da paz, teóricos da contra-insurgência e advogados ― todos fizeram sua fortuna.

O problema é que o Afeganistão, sob a visão progressista liberal, era, antes de mais nada, uma farsa: o Afeganistão foi invadido e ocupado apenas por conta da sua geografia. Ele era a plataforma ideal para perturbar a Ásia Central e, assim, perturbar a Rússia e a China.

Ninguém estava realmente comprometido, porque não havia mais nenhum Afeganistão com o qual se comprometer. Quem poderia roubar dos americanos, o fez. O regime de Ghani entrou em colapso em questão de dias, porque, para começar, nunca existiu. Tratou-se apenas de uma construção Potemkin, cujo papel era perpetuar uma ficção, ou melhor, o mito da Grande Visão da América como modeladora e guardiã de nosso futuro global.

O verdadeiro drama, para a América e a Europa, do atual momento psicológico não é apenas que a construção da nação, como um projeto destinado a defender os valores liberais, acabou não alcançando coisa alguma, mas que a débacle do Afeganistão sublinhou as limitações do gerencialismo técnico de uma forma que é impossível negar.

A gravidade do atual momento psicológico norte-americano ― a implosão de Cabul ― foi bem formulada quando Robert Kagan argumentara anteriormente, que o projeto de valores globais (por mais tênue que seja sua base na realidade) tinha se tornado essencial para preservar a democracia em casa, pois ― sugere ele ― uma América que se retira da hegemonia global, não possuiria mais, também em casa, a solidariedade grupal doméstica para preservar a América como ideia.

O que Kagan dizia ali é importante… e pode se constituir no verdadeiro custo da débacle do Afeganistão. Toda elite sustenta uma série de proposições acerca da sua própria legitimidade, sem a qual uma ordem política estável é impossível. Os mitos legitimadores podem assumir as mais variadas formas, e podem mudar ao longo do tempo, mas, uma vez que se exaurem ou perdem sua credibilidade ― quando as pessoas não acreditam mais na narrativa ou nas proposições que sustentam essa ideia política ―, então é fim de jogo.

O intelectual sueco Malcolm Kyeyune nota que podemos estar “testemunhando o fim catastrófico desse poder metafísico da legitimidade que protegeu a classe dirigente gerencial por décadas”: “Qualquer pessoa, mesmo que brevemente familiarizada com o registro histórico, percebe o quanto essa perda de legitimidade pode ser uma caixa de Pandora. Os sinais se multiplicaram visivelmente ao longo de muitos anos. Quando Michael Gove disse ‘acho que as pessoas neste país estão fartas de especialistas’ em um debate sobre os méritos do Brexit, ele provavelmente traçou os contornos de algo muito maior do que qualquer um realmente suspeitava na época. Naquela época, a fase aguda da deslegitimação da classe gerencial estava apenas começando. Agora, com o Afeganistão, é impossível não compreendê-la”.

Portanto, há pouco mistério sobre por que o Taleban tomou Cabul tão rapidamente. Não apenas o projeto per se carecia de legitimidade para os afegãos, mas aquela aura de alegada expertise, de inevitabilidade tecnológica que protegeu a classe gerencial da elite, ficou exposta em sua absoluta disfuncionalidade, exibida enquanto o Ocidente fugia freneticamente de Cabul. E é exatamente a forma como ela sucumbiu que de fato descortina ao mundo a podridão que cevava por baixo.

“Quando a reivindicação de legitimação se esgota, quando as pessoas não acreditam mais nos conceitos ou argumentos que sustentam um determinado sistema ou reivindicação para governar é que a extinção dessa elite em particular” ― lembra Kyeyune ― “se torna uma conclusão sumária”.

*Alastair Crooke, ex-diplomata britânico, fundador e diretor do Conflicts Forum, sediado em Beirute.

Tradução: Ricardo Cavalcanti-Schiel.

Publicado originalmente em Strategic Culture Foundation.

 

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