Por LEONARDO AVRITZER*
A academia cordial, faorismo e a operação Lava Jato.
Escrevi há algumas semanas um artigo – “O fim da Lava Jato e o patético Barroso” – em que, na esteira da votação da suspeição do juiz Sérgio Moro, argumentei haver um faorismo judicial na operação, isso é, no afã de contribuir para a mudança de orientação política no governo federal, a Lava Jato tentou implementar uma visão pró-mercado pela via punitivista (Cf. .
O artigo foi citado em texto de Rodrigo Ghiringhelli de Azevedo que, basicamente, critica dois aspectos do meu argumento: em primeiro lugar, por desrespeitar os clássicos, uma crítica que é parte da muito bem estabelecida tradição de ensaísmo laudatório no Brasil que tenta se passar por ciências sociais. Em segundo lugar, ele mobiliza dois autores para defender a ideia de que a Lava Jato nada mais foi que uma operação pautada pela tentativa de implantar no Brasil um direito processual sistêmico, a partir da ideia de que não existe estado de direito sem tal elemento.
Seria o caso de perguntar a Joaquim Falcão, a quem Ghiringhelli cita, ou ao próprio autor, se direito processual sistêmico inclui pressão política sobre o STF, conivência com depoimentos falsos (que nem foram tomados) ou as dez medidas contra a corrupção que estreitavam significativamente o instituto do habeas corpus. Em uma reunião entre João Roberto Marinho e Deltan Dallagnol na casa do próprio Falcão, eles discutiram esses assuntos sem perceber que um dia o próprio Deltan Dallagnol utilizaria do habeas corpus para se defender, mostrando que o centro da assim chamada concepção processual sistêmica, nada mais era do que uma forma de violentar o devido processo legal, como a China ou até mesmo o Japão fazem regularmente.
Porém, nesse artigo pretendo discutir a segunda tese da crítica do ensaísta laudatório do faorismo. Segundo o professor da PUC-RS, eu teria lançado “uma tese sem pé nem cabeça … de forma leviana, para aproveitar a debacle da Lava Jato para acertar contas com um dos grandes intérpretes do Brasil”. Para defender seu argumento, ele lança mão de um texto de Juarez Guimarães para explicar que o centro das preocupações de Raymundo Faoro se assentava no impedimento, pelo estamento burocrático, de que surgisse no Brasil uma tradição contratual de cunho republicano. Analisemos Faoro e o argumento de Guimarães.
Raymundo Faoro, logo nas primeiras páginas de Os donos do poder, faz a seguinte afirmação: “O rei (de Portugal), como senhor do reino, dispunha de instrumento de poder, da terra, num tempo em que as rendas eram predominantemente derivadas do solo. Predomínio, como se verá, não quer dizer exclusivismo, nem a sede dinâmica, expressiva da economia. A Coroa conseguiu formar, desde os primeiros golpes da reconquista, imenso patrimônio rural … cuja propriedade se confundia com o domínio da casa real, aplicado o produto nas necessidades coletivas ou pessoais, sob as circunstâncias que distinguiam mal o bem público do bem particular, privativo do príncipe”.
Temos aqui o que seria a origem do Estado português, forjado na guerra e dirigido por um rei com largos domínios territoriais que passa a apropriar a estrutura do estado como se fosse sua. Faoro oferece, deficientemente vale dizer, a interpretação de que isso seria o estado patrimonial no seu sentido weberiano, e completa a sua análise introduzindo aquilo que seria o estamento burocrático: “Estado patrimonial, portanto, e não feudal, o de Portugal medievo. Estado patrimonial já com direção pré-traçada, afeiçoado pelo direito romano, bebido na tradição e nas fontes eclesiásticas, renovado com os juristas filhos da Escola de Bolonha. A velha lição de Maquiavel, que reconhece dois tipos de principado, o feudal e o patrimonial, visto, o último, nas suas relações com o quadro administrativo, não perdeu o relevo e a significação. Na monarquia patrimonial, o rei se eleva sobre todos os súditos”.
Duas questões cabem aqui sobre a interpretação do Estado patrimonial e do seu estamento burocrático. A primeira é aquela tentativa de dizer que o conteúdo de uma instituição política se encontra na análise da sua origem. De fato, o Estado português foi forjado na guerra e de fato o rei a princípio deteve grandes extensões de terra. Restaria ainda mostrar que essa característica que Faoro identifica no primeiro século do primeiro milênio de fato se reproduziu na formação política portuguesa até a descoberta do Brasil e de lá foi transplantada para o Brasil. Para ser capaz de demonstrar tal fato, Faoro teria de ter lançado mão de um segundo elemento da obra weberiana, os assim chamados extratos sociais condutores de ideias. Não fica claro, na análise de Raymundo Faoro sobre o Brasil, quais seriam estes extratos ou como essas ideias teriam sido transplantadas para a colônia portuguesa. Na falta de uma interpretação, a transferência da própria corte seria a meia sola weberiana utilizada por Faoro.
Para discutir independência do Brasil e a estrutura política imperial, Raymundo Faoro ignora um conjunto de análises sobre privatismo no Brasil, entre elas a de Nestor Duarte ou mesmo a de Gilberto Freyre, e postula arbitrariamente a presença de ideias liberais nas fazendas e unidades locais de poder ou até mesmo entre os bandeirantes. Se o liberalismo no Brasil sempre foi um grande mal-entendido, não tenho dúvidas que o mal-entendido começou aí.
Entender o fazendeiro do começo do século XIX como um liberal é igual entender o uberista do século XXI como um empreendedor. Ou seja, há um equívoco fundante na análise de Raymundo Faoro sobre independência e império, na ideia de um liberalismo sem liberdade econômica, sem relações sociais horizontais na fazenda e com escravidão. Impossível que esses senhores de escravos fossem liberais, como não eram na mesma época na América espanhola,[1] erroneamente interpretada pelo autor na passagem abaixo: “A passagem do empresário exportador para o senhor de rendas e produtos coincide com a transmigração da corte, em 1808. Soma-se a maturação interna da colônia a um acidente da política europeia, separando o tênue, mas já vivo, anseio de emancipação das tendências liberais, separação singular e inexistente na América espanhola e inglesa. Um rei absoluto realiza, preside, tutela a nação em emergência, podando, repelindo e absorvendo o impulso liberal, associado à fazenda e às unidades locais de poder. Liberalismo, na verdade, menos doutrinário do que justificador: os ricos e poderosos fazendeiros cuidam em diminuir o poder do rei e dos capitães-generais apenas para aumentar o próprio, numa nova partilha de governo, sem generalizar às classes pobres a participação política”.
Assim, a interpretação equivocada do liberalismo conduz a uma interpretação ainda mais equivocada do processo de independência do Brasil. A independência do Brasil não foi capaz de constituir uma sociedade liberal ou contratual por pelo menos dois motivos: por uma tendência centralizadora que Faoro aponta e, principalmente, por inexistir uma estrutura de sociabilidade minimamente horizontal no nível local. O liberalismo, que no Brasil é sempre simplificado e defendido por aqueles não liberais como envolvendo apenas a rejeição do Estado, parece ter sido inaugurado por Faoro.
O autor de Os donos do poder simplifica o liberalismo e o identifica com um privatismo sem qualquer noção de igualdade civil, seja em relação às mulheres, seja em relação ao voto, seja em relação ao trabalho. Essa é a crítica que eu faço a Faoro e que Rodrigo Ghiringhelli tenta refutar, por não entendê-la. Ele mobiliza a seu favor os escritos sobre Faoro do meu colega da UFMG Juarez Guimarães, um intelectual que eu respeito, mas que tal como Ghiringhelli se filia à tradição laudatória dos clássicos do ensaísmo. Ghiringhelli menciona a interpretação de Guimarães sobre Faoro, de acordo com a qual o objetivo do autor seria “construir uma narrativa de longa duração a partir do critério da liberdade política, entendida em sua chave republicana, como autogoverno de cidadãos autônomos”.
O que pretende Faoro “é a crítica histórica do Estado fundado sem contrato social democrático”. Estou de acordo com Guimarães que o Estado brasileiro foi fundado sem um contrato político de autogoverno. Acredito também que Guimarães dificilmente concordaria com Faoro que o único motivo que explicaria tal fato teria sido a transferência da corte real ao Brasil. Ele apenas se exime de examinar criticamente a obra de Faoro sob a luz de uma ciência social crítica.
Ou seja, a questão que toquei em relação a Faoro e que tem sim relação com a operação Lava Jato é a da presença de um liberalismo frágil identificado com uma tradição de anti-Estado e não com as práticas valorativas que criaram uma sociedade contratual com elementos republicanos. Essas práticas foram identificadas erroneamente no Brasil do início do século XIX por Raymundo Faoro e continuam sendo mal identificadas aqui no Brasil por aqueles como Joaquim Falcão e Rodrigo Ghiringhelli que insistiram em identificar a Lava Jato com o Estado de direito ou com um direito processual sistêmico, seja isso o que for.
A mim me parece mais um pacto punitista intra-oligárquico com ramificação em todos os níveis do poder judiciário. É mais fácil entender a Lava Jato com base em um outro Faoro, que Ghiringhelli também menciona brevemente: aquele que durante a assembleia nacional constituinte colocou a OAB em 10 diferentes lugares da Constituição, abrindo espaço para um corporativismo jurídico e para estruturas de proteção interpares que vemos todos os dias e que geram distorções no processo penal.
É esse corporativismo de um judiciário que despreza a democracia e o Estado de direito, que Ghiringhelli e Falcão defendem. Identificá-lo com o liberalismo parece natural para aqueles que adotam as práticas liberais em conversas de bar e artigos na imprensa, mas se eximem de sustentar o direito de defesa e o devido processo legal ou a ascensão social pela via educacional. Essa é uma dimensão adicional do liberalismo tosco que se associa à tradição de ensaísmo laudatório e cria uma ideia de extratos quase messiânicos, substituidores da ausência de atores e práticas liberais no país. A obra de Raymundo Faoro está na base desses equívocos.
*Leonardo Avritzer é professor titular do departamento de Ciência Política da UFMG. Autor, entre outros livros, de Impasses da democracia no Brasil (Civilização Brasileira).
Nota
[1] Existiram impulsos liberais mais fortes na América Espanhola do que Brasil, mas esses impulsos eram fortemente contraditórios com as ideias dominantes nos centros dos vice-reinados no Mexico e especialmente no Peru onde predominavam fortes tendências antimonarquistas e antiliberais. O mesmo é correto em relação a Cuba, que nem se tornou independente por ter as mesmas contradições ligadas à escravidão que o Brasil.Vide Claudio Véliz. The Centralist Tradition of Latin America (Princeton University Press) e Roberto Pineda. “”, em https://www.alainet.org/es/active/72529.