Por GILBERTO LOPES*
O material do Pandora Papers ilumina um lado escuro do mundo
“A utilização de empresas criadas em jurisdições diferentes da jurisdição onde é feito o investimento operacional (empresas offshore) é muito comum e não implica nada negativo, reprovável e muito menos ilegal”, disse Luis Javier Castro, proprietário da “Mesoamerica”. “Tendo em vista as publicações sobre os chamados Pandora Papers, em que se insinua que a Mesoamerica criou mais de 40 empresas com o objetivo de evadir impostos, sou obrigado a esclarecer”, diz Castro, da Costa Rica.
Castro diz que passou por diversas organizações empresariais – como a Alianza Empresarial para el Desarrollo (AED), United Way, One Young World (OYW), Yo Emprendedor, CALI e outras – em busca de “construir uma sociedade melhor”. Todas organizações com orientação política conservadora. Ele disse ter chegado “muito entusiasmado” de Munique. Em 25 de julho, falou na Cúpula da One Young World, realizada em Munique, onde 203 delegações de jovens se reuniram “para discutir e se inspirar para resolver os grandes problemas da humanidade”.
Debbie Cenzibar, Will Fitzgibbon e Salwan Georges não são investidores. São jornalistas do The Washington Post, o jornal de Jeff Bezos, proprietário da Amazon. Em 4 de outubro, os três assinaram uma nota em Sioux Falls, Dakota do Sul. Em frente a um Holiday Inn, num edifício de tijolos vermelhos, uma pequena empresa financeira, então desconhecida, fazia um convite aos ricos do mundo: “a Trident Trust promete proteger a fortuna e a privacidade de seus novos clientes, com base nas leis de um estado que se tornou um destino global de riqueza”.
A reportagem observa que a indústria fiduciária nos Estados Unidos floresce, oferecendo aos milionários e bilionários do mundo níveis de proteção e privacidade iguais ou superiores aos dos paraísos fiscais em outros lugares do mundo. Dos 206 fideicomissos baseados nos EUA e identificados nos Pandora Papers, “em quase 30 havia fundos de indivíduos ou empresas acusados de fraude, subornos ou abusos dos direitos humanos em algumas das comunidades mais vulneráveis do mundo”, diz o relatório.
Alguns latino-americanos responderam ao convite da Trident Trust. Entre eles um magnata têxtil colombiano apanhado num esquema de lavagem de dinheiro do narcotráfico; um magnata brasileiro do suco de laranja, que fez um acordo com as autoridades para evitar uma denúncia sobre o salário miserável de seus trabalhadores; ou membros da família de um ex-vice-presidente da República Dominicana, acusados de explorar seus trabalhadores da cana-de-açúcar e de expulsar violentamente suas famílias dos terrenos da empresa.
Neste caso, trata-se da Central Romana, a maior produtora de açúcar da República Dominicana, sendo um de seus principais acionistas Carlos Morales Troncoso. Em 1986, foi eleito vice-presidente da república. Posteriormente, foi embaixador de seu país em Washington e ministro das relações exteriores. Questionados pelo The Washington Post, a dominicana Central Romana afirmou ter criado mais de 20 mil empregos, construído mais de 5 mil casas e doado terrenos para projetos de habitação e outros fins. Acrescentou que negociou salários e condições de trabalho com o sindicato e que nunca tinha expulsado ilegalmente ninguém de seus terrenos, mas que há muito tempo os defendia de invasões ilegais.
O tratamento dado a seus trabalhadores tem sido objeto de permanente denúncia, enquanto a Central Romana formalizava fideicomissos por 14 milhões de dólares com a Trident Trust em 2019. Três anos antes, diz a reportagem, “a empresa enviou guardas armados e máquinas para expulsar 60 famílias dos barracos construídos nas margens poeirentas da plantação de cana-de-açúcar em El Seibo, um dos lugares mais pobres e remotos da República Dominicana”.
Mesoamerica, uma pequena Trident Trust, afirma ter gerado muitos empregos e desenvolvimento e “tentou contribuir com uma América Latina melhor”. Não se explica como, quanto, ou onde nesse cenário de fideicomissos, cujas características, em todo o mundo – na Europa e nos Estados Unidos, na Ásia, África e América Latina –, são descritas em detalhe pelo The Washington Post.
Na última década, os economistas tentaram calcular a quantidade dessa riqueza escondida nos fideicomissos offshores. As estimativas variam muito: de 1 a 25 trilhões de dólares, de acordo com o jornal. As cifras mais geralmente aceitas variam entre 5 e 8 trilhões de dólares.
Nada reprovável
“Quando encontramos uma oportunidade de investimento”, explica Castro, “estruturamos um veículo e oferecemos a oportunidade de investimento aos investidores que são de múltiplas nacionalidades”. Não conhecemos os detalhes dos investimentos promovidos pela Mesoamerica. A opinião de Castro não é, em todo caso, generalizada. Há exemplos abundantes de dinheiro investido por outros fideicomissos, provenientes de negócios como os do colombiano José Douer Ambar, magnata do vestuário falecido no ano passado, que tinha um fideicomisso de 100 milhões de dólares no escritório da Trident nas Ilhas Virgens. Em 2004, negociou um acordo de 20 milhões de dólares com o governo norte-americano como parte de uma investigação sobre lavagem de dinheiro, sempre de acordo com as informações do The Washington Post.
É citado o caso do guatemalteco Federico Kong Vielman, com um fideicomisso de 13,5 milhões de dólares, cuja empresa familiar de produção de azeite de dendê foi acusada pelos Estados Unidos de violar as regras negociadas no acordo de livre-comércio sobre o pagamento de salários justos. Na plantação da família – de acordo com a denúncia –, pagava-se abaixo do salário mínimo e os trabalhadores lidavam com produtos químicos sem proteção adequada.
Algo semelhante fazia a produtora de suco de laranja Horst Happel no Brasil, onde pagou 88 milhões de dólares ao governo em 2018, de acordo com o Post, acusada de fazer acordos para pagar menos aos produtores locais. Os documentos divulgados pelo consórcio de jornalistas investigativos não revelam se a Trident conhece a origem dos recursos de seus clientes, e o Post diz que a empresa “não respondeu às perguntas sobre casos específicos”. A Mesoamerica da Costa Rica também não. Castro não respondeu às questões do semanário Universidad, mas publicou seu ponto de vista em seu portal na internet, após o encerramento da edição do periódico.
Também Macri, Piñera e Lasso
A Argentina ocupa o terceiro lugar na lista de países com mais beneficiários das estruturas offshore, disse o jornal Página12. “Nesses documentos, o país é mencionado 57.307 vezes e, mais uma vez, como nos Panama Papers, está envolvida a família (do ex-presidente Mauricio) Macri e seu entorno”.
O jornal observou que “os investigadores deixaram claro que a utilização de uma empresa offshore ou a abertura de uma conta bancária num paraíso fiscal não é, por si só, uma atividade ilícita”. Contudo, como explicou ao jornal o chefe da Inspeção Geral de Justiça (IGJ) da Argentina, Ricardo Nissen, “é impossível, de qualquer ponto de vista, que as empresas offshore tenham um fim lícito. Por definição, são um negócio ilícito, algo contrário às leis. É um instrumento para o crime, para a evasão, fundamentalmente para a fuga de capitais”, disse ele. Uma offshore – disse Nissen ao Página12 – “é lavagem de dinheiro, é ocultação para fins criminosos, para enganar sua mulher no divórcio, para fazer um plano sucessório que a lei argentina não permite. Você se esconde atrás de uma figura fantasma que é muito difícil de atingir porque os paraísos fiscais nunca dão informações sobre suas contas”.
O presidente do Chile, o conservador Sebastián Piñera, também aparece envolvido num negócio familiar. Diz respeito à venda, em 2010, da empresa mineira Dominga ao empresário Carlos Alberto Délano, amigo de infância de Piñera. Um projeto avaliado em 2,5 bilhões de dólares para a extração de ferro e cobre na região de Coquimbo, cerca de 500 km ao norte de Santiago, que se revelou controverso em meio a acusações ambientais e comerciais.
O presidente do Equador, o banqueiro Guillermo Lasso, também transferiu recursos para a Trident em Sioux Falls em 2017, depoisdas questões que surgiram na raiz dos PanamaPapers, precursores dos atuais Pandora Papers. Todos eles – Lasso, Piñera e os demais – afirmam ter cumprido todos os seus compromissos fiscais e negam ter violado qualquer lei. De todo modo, o ministério público abriu uma investigação contra Piñera e as várias bancadas da oposição decidiram apresentar uma acusação constitucional contra o presidente no Congresso.
“Nossas empresas nestas jurisdições”, explicou Castro sobre as atividades da Mesoamérica, “são exclusivamente entidades holding que utilizamos para reunir o capital dos investidores, e gerir os investimentos com uma governança empresarial adequada”. Certamente suas atividades não possuem a mesma dimensão das da Trident, mas outro artigo do The Washington Post descreve em detalhe a utilização destes fideicomissos em paraísos fiscais para a compra de propriedades, obras de arte, móveis, iates, aviões…
Quando alguns dos três africanos mais ricos precisavam de um favor do ministro da energia da Nigéria, não lhe pagavam em dinheiro. Davam-lhe uma dessas empresas de papel registrada sem algum paraíso fiscal, proprietária de alguma mansão em Londres, de móveis clássicos, de obras de arte… Assim, o rei da Jordânia adquiriu propriedades por 95 milhões de dólares nos Estados Unidos e Inglaterra. Tony Blair, ex-primeiro-ministro da Inglaterra – responsável, com o presidente George W. Bush dos Estados Unidos e José María Aznar da Espanha, pela destruição do Iraque e pela morte de milhares de pessoas –, economizou 423 mil dólares comprando um escritório em Londres de uma dessas empresas offshore.
O ministro da economia do Brasil, Paulo Guedes, que chegou ao governo com um enorme plano de privatizações, prometendo vender “tudo”, inclusive o Banco do Brasil (“tudo é tudo”, assegurou), depositou 9,55 milhões de dólares em sua offshore Dreadnoughts International, nas Ilhas Virgens Britânicas. Responsável em grande medida pela desvalorização do real desde que tomou posse, só na semana passada ganhou mais de um milhão de reais, de acordo com os meios de comunicação brasileiros.
O presidente do Banco Central, Roberto Campos Neto, também é proprietário de uma empresa offshore, Cor Assets S.A., no Panamá, segundo dados revelados pelos Pandora Papers. Ambos terão que dar explicações ao Congresso do Brasil. No ano passado, de acordo com as contas do Banco Central, os brasileiros detinham quase 205 bilhões de dólares no exterior. De todo modo, devidamente declarados às autoridades fiscais, ter uma empresa offshore não é ilegal no Brasil, o país com o quinto maior número de pessoas citadas nos Pandora Papers.
Um debate interessante
As revelações dos Pandora Papers não deixam ninguém indiferente. A explicação do proprietário da Mesoamerica, Luis Javier Castro, provocou várias respostas no mesmo portal. “– Excelente explicação!”, disse um. “Eu apoio totalmente Luis!”, diz outro. “Estas pessoas nem sequer sabem do que estão falando! Só o fazem para semear discórdia, polarizar e criar ódio e inveja entre a população, bem como para desacreditar sem fundamentos todos os empresários”.
“Somos malfeitores que nos enriquecemos do povo e vamos ao estrangeiro para empreender com todos os riscos envolvidos, ainda que em cada um desses países tenhamos [sic] atuado de maneira legal e correta, inclusive sem violar as leis da Costa Rica. Em nosso país existe liberdade total e é totalmente legal investir no exterior. Não há necessidade de explicar a esses ignorantes mal-intencionados”. “– Começou a caça aos empresários como parte da campanha eleitoral para desprestigiar a iniciativa privada. Que tristeza”, diz outra.
Andrés Pozuelo, um conhecido empresário, disse: “– Não te preocupes, evasão de impostos não é imoral, é humano”. Castro, prudente, respondeu-lhe: “– Não é esse o caso”. Pozuelo insiste: “– Bem, todos nós evadimos impostos quando pagamos alguém em dinheiro sem nota fiscal. Os impostos são um roubo e ninguém pode discutir isso”.
Castro, de qualquer maneira, felicitou os jornalistas por “investigarem e trazerem à luz estruturas que possam facilitar a evasão fiscal, a corrupção e outros crimes. É essencial separar o joio do trigo”, disse ele. Mas seus apoiadores ou admiradores não pouparam críticas aos meios de comunicação. “A imprensa está cheia de meias verdades, sensacionalismo, insinuações e pode destruir a reputação de qualquer pessoa. No discurso de nossa graduação, o padre Juan Álvarez Iglesias nos disse para procurarmos a verdade. Talvez referia-se a coisas maiores, mas ainda assim é um conselho prático para as situações do cotidiano”, lembrou Mary Joseph. Carlos Esquivel encorajou-o: “A explicação é suficiente para o bom entendedor. Não é correto demonizar uma prática comum que esteja 100% em conformidade com a lei. Contudo, assumo que era necessário explicá-lo para aqueles que apenas procuram atacar sem fundamento real”.
*Gilberto Lopes é jornalista, doutor em Estudos da Sociedade e da Cultura pela Universidad de Costa Rica (UCR). Autor de Crisis política del mundo moderno (Uruk).
Tradução: Fernando Lima das Neves