O tamanho do corte

Imagem: Sourabh
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Por OTAVIANO HELENE*

O corte promovido na educação pelo governo paulista é a garantia do atraso futuro, de regressão para o setor e para o desenvolvimento do estado

O governo paulista promoveu uma mudança na Constituição Estadual que reduz as despesas mínimas com manutenção e desenvolvimento do ensino de 30% para 25% da receita de impostos e transferências, um corte de quase 17% nos valores destinados ao setor. Isso corresponde a mais do que R$ 10 bilhões a cada ano (valor, evidentemente, crescente com o tempo, seja por causa da inflação, seja por causa do crescimento econômico). O que isso significa para a educação básica e as universidades?

O investimento mensal por aluno da rede estadual de educação básica, correspondente à remuneração de professores e demais trabalhadores e todas as demais despesas de investimento e custeio, é inferior a R$ 700 por mês. Se fossem excluídas as despesas da Secretaria da Educação não diretamente voltadas aos estudantes da rede estadual, os valores seriam ainda menores. Se as condições de trabalho e estudo nas escolas estaduais não são ainda mais limitadas é graças à eficiência do setor público: o mesmo investimento por estudante feito por meio de instituições privadas jamais conseguiria o mesmo resultado.

Um critério adequado para comparar aqueles R$ 700 por mês com o investimento em diversos países e termos uma ideia de quanto estamos longe de uma situação aceitável, é usar o PIB per capita como referência. Tal critério permite relativizar os valores considerando tanto a capacidade econômica de países, pobres ou ricos, como os custos locais. A comparação com o PIB per capita indica o esforço que cada país dedica à escolarização de suas crianças e seus jovens hoje e de sua população adulta no futuro.

Usando esse critério como regra, vemos que países pobres ou ricos que mantêm bons sistemas escolares investem cerca de 25% ou mais de suas rendas per capita por estudante. Aqueles menos do que R$ 700 por mês correspondem a cerca de 15% da renda per capita estadual paulista. Ou seja, para se aproximar de uma situação mais adequada seria necessário aumentar tais investimentos. É impossível construir um bom sistema educacional com tão parcos recursos; é por isso que não o temos.

Ainda não foi definido como a redução ocorrerá, havendo algumas pontas soltas que devem ser completadas por propostas orçamentárias ou legislação complementar. Entretanto, caso a redução ocorra em todos os segmentos educacionais nas mesmas proporções de seus orçamentos atuais, o Estado de São Paulo passará a investir por aluno a cada ano alguma coisa perto de 12% ou 13% do seu PIB per capita. Caso as universidades sejam poupadas desse corte e ele caia exclusivamente na educação básica, o investimento por estudante será reduzido para valores inferiores a 10% da renda per capita ao ano.

Caso as universidades vejam seus recursos cortados em 17%, sofreremos uma combinação de fatores que incluem reduções salariais, redução do número de docentes e de funcionários técnico- administrativos, redução da pesquisa, redução do número de estudantes, sobrecarga de docentes e redução dos serviços prestados à sociedade (como manutenção de hospitais, museus, rádios, teatros, orquestras, editoras, cinemas e centros culturais, oferecimento de cursos e outras atividades de extensão, colaboração na produção de medicamentos etc.); 17% da USP corresponde, em números aproximados, a R$ 1,3 bilhão ao ano, perto de 900 docentes e cerca de 2 mil funcionários não docentes, mais do que 10 mil estudantes de graduação e pós-graduação, perto de 40 leitos hospitalares. É isso que o governador pretende cortar?

Qualquer que seja a forma como o corte será distribuído, teremos um processo de disputa entre os diversos segmentos do setor educacional e mesmo entre as universidades.

A justificativa encaminhada pelo governador à Assembleia Legislativa para o corte é estranha. Ela não argumenta, em nenhum local, que há espaços para redução dos investimentos em educação, pois, claro, não podia fazê-lo. A justificativa dada no encaminhamento da proposta de emenda à Constituição faz referência ao uso desses recursos cortados da educação no setor de saúde. Para tal, reconhece a falta de recursos para esse setor.

Esse tipo de raciocínio parece não ser muito bom do ponto de vista lógico: o reconhecimento de falta de recursos para um setor, saúde, ser usado como argumento para reduzir os recursos de outro setor também carente, a educação. Essa forma estranha de raciocínio foi aceita pela base legislativa do governador na Assembleia Legislativa.

Um bom sistema educacional é necessário para o desenvolvimento social e cultural e para o crescimento econômico. Um mau sistema educacional é suficiente para inviabilizar tal avanço. O que está sendo feito hoje no Estado de São Paulo é a garantia do atraso futuro.

*Otaviano Helene é professor sênior do Instituto de Física da USP.

Publicado originalmente no Jornal da USP.


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