Por FLÁVIO MAGALHÃES PIOTTO SANTOS*
O lulismo e o petismo tentam se apresentar como os únicos representantes da esquerda brasileira. Mas isto não é verdade
Os governos de Lula
Quando, em 2002, Lula conseguiu finalmente ser eleito, houve comemorações gigantescas nas ruas, pois após diversas tentativas, era eleito o primeiro presidente considerado de esquerda desde o período da redemocratização do país. Lula, que era um operário de São Bernardo, não tinha feito faculdade e que tinha somente o chão de fábrica, os sindicatos e a luta política como experiência conseguiu chegar ao mais alto posto dentro da República brasileira. Sua própria condição de trabalhador fabril dava ânimo aos diversos setores de esquerda e também à grande parte dos trabalhadores, pois quem estava no comando do país agora era alguém que entendia o que era ser explorado, o que é ser perseguido, entendia, enfim, a condição subalterna da maioria da população brasileira.
No entanto, a euforia precipitada escondia problemas que os governos petistas apontariam depois. Na metade daquele mesmo ano de 2002, Lula escreve um texto intitulado “Carta ao povo brasileiro” que na verdade não foi feito para o povo, mas sim para os setores mais importantes do capital nacional e internacional afirmando que Lula continuaria honrando as políticas fiscais adotadas no governo antecessor, o de Fernando Henrique Cardoso. Entre esses compromissos estavam o pagamento da dívida pública e dos empréstimos feitos. Um governo de esquerda teria dado o calote em toda a dívida e no pagamento dos empréstimos, porque eles constituem um assalto aos cofres públicos por parte do grande capital. Mas não foi o que Lula fez.
Além disso, Lula implementou um programa elaborado também durante a gestão FHC, mas que ganhou estruturação e ativação somente em seu próprio governo, chamado de “Bolsa Família”. Este programa era uma medida assistencialista, destinada a dar alguma condição material de existência para um grande parcela da população brasileira que chafurdava na mais absoluta miséria. Cabe lembrar que este programa foi concebido pelo Fundo Monetário Internacional (FMI), um órgão estrangeiro, responsável por justamente realizar empréstimos como esses que o Brasil havia contraído. É um órgão para a manutenção da dependência nos países capitalistas subdesenvolvidos e que não tem qualquer traço de esquerda.
Esse assistencialismo foi concebido pelo FMI precisamente para enfraquecer possíveis revoltas ou até mesmo revoluções, pois muitos países da América Latina, África e Ásia enfrentavam graves problemas sociais nos anos 1990. O “Bolsa Família” tem, portanto, uma natureza contraditória. De um lado, ele de fato proporciona condições materiais de existência mínimas para uma parcela da população brasileira. Por outro, é um programa que não visa acabar com a fome, nem com a miséria, mas apenas atenuá-las, justamente porque não é um programa de uma organização de esquerda. No entanto, o governo Lula e os governos petistas reivindicam esse programa como sendo a maior conquista social dos últimos 30 anos, o que é evidentemente uma falácia pura.
Não bastasse todo o arcabouço de direita que construiu estes programas assistencialistas, atualmente assistimos não somente à manutenção, mas inclusive à ampliação destes mesmo programas. Apesar de Jair Bolsonaro ter sido inicialmente contra, ele não teve outra saída a não ser fornecer um auxílio emergencial por causa da pandemia de COVI-19, mudou o nome de “Bolsa Família” para “Auxílio Brasil” e aumentou seu crédito, colocou um vale-gás para as parcelas mais pobres da população. Uma análise correta da realidade perceberá que estes programas assistencialistas não têm um grama de concepção de esquerda, porque foram elaborados e efetivamente adotados também por governos de direita.
Outra pauta de esquerda completamente ignorada pelo governo Lula foi a da Reforma Agrária. A luta pela terra nunca foi tão necessária num país que foi construído com base no latifúndio e na exportação de matérias-primas. O que o governo Lula fez a esse respeito? Realizou uma quantidade apenas um pouco maior de assentamentos para a Reforma Agrária do que o governo claramente liberal de Fernando Henrique. A terra não foi tratada como propriedade da população brasileira, mas as gritantes desigualdades em sua distribuição foram mantidas e ampliadas, tal como os petistas acusam, corretamente, o governo Bolsonaro. Inclusive, as alianças com os grandes latifundiários foram intensificadas, culminando em 2016 quando uma das principais apoiadoras da então presidente Dilma Rousseff era uma senadora da “bancada do boi”, Kátia Abreu.
Além disso, a transgenia, criticada corretamente por movimentos como o MST, sofreu uma grande expansão durante os governos Lula. Algodão, milho e soja puderam ser plantados utilizando sementes transgênicas, o que apenas reforçou o domínio e o poder dos latifundiários. Houve uma tentativa de aumentar a fiscalização para impedir o desmatamento de aumentar, mas sem nunca ter tido um controle efetivo deste problema.
No âmbito da Educação, houve a criação de novas universidades federais. Contudo, o alicerce do governo petista para inserir os alunos mais pobres dentro do sistema universitário brasileiro deu-se de outra forma. Por um lado, foi continuado um programa que havia sido reelaborado pelo governo FHC chamado FIES. É um programa de financiamento estudantil, onde estudantes fazem um empréstimo e depois têm que pagar com juros, seguindo modelo similar ao que é utilizado nos EUA, mas lá os estudantes fazem o empréstimo diretamente com o banco. De qualquer forma, é um sistema que faz com que o aluno tenha que pagar por seus estudos, o que pode se alongar por longos períodos de tempo e tornar a vida extremamente difícil.
Além deste programa, foi criado também o PROUNI que, diferentemente do FIES, não tinha como base empréstimo, mas sim bolsas de estudo. O governo dava bolsas de estudos para os alunos e o dinheiro destas bolsas era pago diretamente às instituições privadas de ensino superior. Em ambos casos, o que se percebe é que o governo de Lula optou por priorizar o ensino particular ao ensino público e apesar de estas políticas terem tido grande efeito, permitindo que milhares de pessoas pudessem cursar uma universidade, elas são contra o que um partido de esquerda deveria defender, isto é, a educação pública, gratuita e de acesso universal.
Em 2005, estourou um escândalo denominado “Mensalão”, que consistia basicamente no pagamento de uma mensalidade para diversos congressistas para que votassem a favor de projetos do interesse do Executivo. Foi um caso de grande repercussão, mas que não influenciou negativamente o próprio presidente Lula, sendo que este conseguiu ser reeleito em 2006 e iniciou seu segundo mandato. Entretanto, para aqueles setores à esquerda, este escândalo foi a demonstração que o PT e Lula estavam não mais lutando para uma transformação social, mas estavam inseridos dentro do sistema político corrupto brasileiro e faziam efetivamente parte deste jogo. Nada mais longe do que deveria ser a postura de um partido e de um líder efetivamente de esquerda.
Ainda há dois aspectos importantes para se falar do governo Lula. O governo do Rio de Janeiro implementou, em 2008, um programa denominado Unidade de Polícia Pacificadora (UPP), que contou com o aval do presidente e que pretendeu colocar polícias comunitárias em favelas para tentar desarticular o crime organizado. O modelo foi considerado um sucesso pelo próprio Lula, a despeito do que a realidade viria a mostrar. Em 2013, um pedreiro chamado Amarildo foi conduzido da sua casa, na favela da Rocinha, até uma unidade de Polícia Pacificadora. Estes policiais que o prenderam, foram responsáveis por torturá-lo e finalmente matá-lo.
O caso de Amarildo representa em toda sua potência o que a polícia faz nos lugares mais pobres do país, perseguindo, matando e torturando pessoas inocentes. É o reflexo do que a polícia de fato representa, um braço armado de classe dentro da sociedade capitalista. A polícia realiza a opressão de classe por meios considerados legais e legitimados. Atualmente, muitas dessas UPP´s funcionam em favor de milícias. Para Lula, entretanto, as UPP´s eram uma grande esperança no combate ao tráfico de drogas e ao crime organizado. Para o PT e o então presidente do Brasil, a justiça poderia ser servida mesmo naqueles lugares mais pobres, onde historicamente as pessoas foram oprimidas e maltratadas. O próprio Lula só veio a descobrir que a justiça não é justa quando ele foi o alvo da justiça burguesa, na operação Lava-Jato chefiado pelo então juiz Sérgio Moro. A História castiga aqueles que não a estudam.
Por fim devemos mencionar um último aspecto, mas não menos importante, que representa e sintetiza toda a concepção lulista de governo e a própria política do PT. Lula clama, vitoriosamente, que os bancos nunca ganharam tanto dinheiro na História do Brasil quanto em seu governo. Alguém de esquerda deveria ter vergonha de dizer uma frase assim, mas não o ex-presidente do país. E isto por um motivo muito importante. Para o antigo sindicalista, o objetivo era, a partir de dentro do governo, dar algumas condições de vida mais dignas para a população, ao mesmo tempo que fazia outros setores (bancos, latifundiários, empresários) continuarem ganhando seu dinheiro.
Ora, para quem analisa criticamente o modo de produção capitalista, é muito claro que é impossível todas as classes sociais ganharem ao mesmo tempo. Isto porque esse modo de produção está baseado na exploração de uma classe pela outra, na exploração de trabalhadores por capitalistas. Se, entretanto, parece que os trabalhadores estão ganhando mais poder aquisitivo e melhorando sua condição de vida, isso só pode significar que a classe capitalista está lucrando muito, mas muito mais do que os próprios trabalhadores. Então se a vida melhorou para os trabalhadores, é porque ela melhorou dez, cem, mil vezes mais para os capitalistas e isso equivale a dizer que seus lucros aumentaram.
Não existe realidade, dentro do sistema capitalista, que permita aos trabalhadores deixarem de ser explorados, não importa o quanto eles melhorem sua condição de vida. E a conta desta mudança efetivamente chega, mais cedo ou mais tarde, justamente porque é uma mudança com prazo de validade e na primeira crise, estes mesmos trabalhadores perderão aquilo que tinham conquistado. Lula se orgulha de ter feito todo mundo ganhar dentro de seu governo.
A única coisa que ele quer é que se dê um pouco destes ganhos para os pobres, que se reparta um pouco deste lucros gigantescos. O cinismo e a ignorância são evidentes. Primeiro, porque dar algumas migalhas para os pobres não é solução para nada e somente alguém que quer se vangloriar de algo vai argumentar seguindo esse raciocínio. Lula quer ser considerado o salvador dos pobres ou num linguajar mais brasileiro, o “pai dos pobres”, uma imitação falaciosa da Era Vargas.
E em segundo lugar, denota a ignorância completa sobre o que é necessário fazer efetivamente para transformar a realidade social brasileira. É uma retórica vazia, destinada a promover como herói aquele que a profere. No entanto, Lula está de volta à corrida eleitoral e segundo as pesquisas aparece em primeiro lugar. O que resta para a esquerda fazer?
O que fazer?
A pergunta evoca a obra consagrada de Lênin, inspirada em outro autor russo, Nikolai Gavrilovitch. O que a esquerda brasileira deve fazer frente a este cenário eleitoral que se avizinha? Em sua famosa análise político-social, feita no livro O 18 Brumário de Luís Bonaparte, Marx escreve que “Os homens fazem a sua própria história; contudo, não a fazem de livre e espontânea vontade, pois não são eles quem escolhem as circunstâncias sob as quais ela é feita, mas estas lhes foram transmitidas assim como se encontram.” Existe o mundo ideal e o mundo real e é com este segundo que temos que prestar as contas. As escolhas que podemos fazer não são aleatórias, mas determinadas por um conjunto de fatores que nos deixaram neste ponto. Contudo, dentro desta gama delimitada na qual os homens fazem sua História, existem sim opções e não se está fadado a apenas uma escolha pré-determinada. Existe a liberdade condicionada pela necessidade.
O primeiro ponto claro desta eleição é que se deseja derrotar Jair Bolsonaro. Mesmo sabendo que derrotar eleitoralmente o atual presidente não significará automaticamente que as ideias que ele defende sejam extintas, é um ponto pacífico de que é necessário parar, de alguma forma, esta barbárie que impera sobre nosso país. Contudo, deve-se tomar cuidado com a tática para atingir esse objetivo, pois ela deve estar dentro de uma estratégia maior. Para os petistas, não há dúvida de que a melhor opção é votar em Lula, que lidera as pesquisas. Não só por esse motivo, mas porque ele seria a única força de esquerda no país com capacidade para tanto.
Lula é certamente um líder eleitoral, mas não um líder político. Desde 2019, quando foi libertado, Lula não chamou o povo às ruas e muito menos nas manifestações de 2021. Isso porque ele tem seus próprios interesses eleitorais e não os colocaria em risco em hipótese alguma. Mas, após analisar alguns aspectos de seu governo, fica claro que, se quisermos ser bondosos, Lula é, no máximo, alguém de centro-esquerda. Aa alianças feitas para a campanha eleitoral vão desde reuniões com Eunício de Oliveira até a candidatura de Geraldo Alckmin como seu vice. Não é preciso nem comentar sobre um figura como Geraldo Alckmin. Lula faz alianças que garantam sua vitória eleitoral, independente dos interesses do povo brasileiro.
Depois o petismo acusa o impedimento de Dilma Rousseff de ser um golpe, mas esquece que foi o petismo e Lula que fizeram alianças com figuras que estão a serviço do capital. A tese de golpe é de uma impostura política atroz. Não existe golpe quando se dança com o diabo. E é precisamente isso que Lula e o PT estão fazendo agora, não importando o fracasso histórico da conciliação de classes operada pelo PT. O resultado já é conhecido.
Portanto, não apoiar Lula no primeiro turno é não só uma tarefa daqueles que se dizem de esquerda, mas uma obrigação, um compromisso de classe. O segundo turno ainda não nos interessa neste momento. O lulismo e o petismo tentam se apresentar como os únicos representantes da esquerda brasileira. Mas isto não é verdade. Existem partidos políticos pequenos (PCB, PSTU, UP), que lutam cotidianamente para a transformação da consciência dos trabalhadores e para alterar as condições precárias de sua existência. Acreditar que existe somente o horizonte petista é um erro histórico.
Os comunistas devem seguir seus caminhos não baseados numa vitória eleitoral, mas numa vitória política. 13 anos de governos petistas levaram à total desmobilização e à falta de consciência de classe por parte dos trabalhadores. Não adianta vencer Jair Bolsonaro na eleição se as condições para uma consciência crítica não acompanharem esta vitória. Transformar radicalmente a sociedade brasileira não será produto de uma eleição. A luta é diuturna e vai muito além do processo eleitoral. Os comunistas não devem temer a independência de classe em face daqueles que optam pela conciliação e acusam estes mesmos comunistas de serem responsáveis por “fraturar a esquerda”.
Assim como a Terra é redonda e se move ininterruptamente, a luta também continuará depois desta eleição, não importa quem vença. O objetivo é derrotar Bolsonaro, mas antes de tudo é acabar com a superexploração da força de trabalho, a dependência, a miséria, a fome, o desemprego, melhorar a educação, valorizar a cultura do povo, transformar as cidades e meio ambiente em favor de seus habitantes e não mais servirem como elementos para usufruto do capital. São essas as verdadeiras tarefas dos comunistas e são elas que nos acompanharão até o fim.
*Flávio Magalhães Piotto Santos é mestrando em História Social na Universidade de São Paulo (USP).
⇒O site A Terra é redonda existe graças aos nossos leitores e apoiadores. Ajude-nos a manter esta ideia.⇐
Clique aqui e veja como.