Os duelistas

Francisco de Goya, Duelo a Garratozos, 1820-1823
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Por TARSO GENRO*

O Rio Grande do Sul é o símbolo do impasse retratado no quadro “Duelo a Garratozos” de Goya, pois a tragédia climática põe o estado na mesma situação dos duelistas

“Abril é o mais cruel dos meses”, prefigura T. S. Elliot no seu poema mais luminoso. Mas para nós será – por muito tempo – maio, o mais cruel dos meses: estivemos “no enterro dos mortos”, vimos os “lilases da terra morta no inverno que nos agasalhava” e ancoramos suas “agônicas raízes”. São pedaços de versos de “Terra Desolada”, remontados para expressar outras terras noutros tempos. Outros vivos e outros mortos.

Duelo a Garrotazos” (Duelo a pauladas) é um quadro de Goya, da célebre série das “Pinturas Negras” que decoraram – entre 1820 e 1823 – as paredes da sua residência da “Quinta del Sordo”, à época moradia do pintor nos arredores de Madrid. No terreno da economia, o quadro simula a luta pela vida, numa sociedade em que as normas não organizam regras para a sobrevivência digna de todos; no plano do direito, mostra que a norma não é o “império da vontade comum”, mas são leis que designam o sentido uma relação entre forças contrapostas, que produzem uma vontade hegemônica.

No Estado Social as normas podem ser “concertadas” e as vontades podem ser organizadas de tal modo que – pelos menos num dado momento – elas sejam universalmente aceitas como a melhor possibilidade para todos. Concertação, que só pode moldar-se em momento de caos por iniciativa da sociedade civil, é o nome desse processo, cuja negociação só deixa de fora os que querem derrotar o que tem de melhor na democracia liberal: a negociação política para definir os próximos passos da ordem, não o tamanho provisório do caos.

Sua forma organizativa neste momento é uma Agência Federal, que organize uma estratégia política e financeira para nova ordem do Rio Grande do Sul, acima dos dissensos partidários imediatos e acolhendo todos os entes da União.

Este quadro de Goya deveria decorar todas as reuniões da sociedade civil de nosso estado. Pelo menos aquelas em que os seus protagonistas – vindos de fora dos legítimos contenciosos eleitorais – quisessem desenhar o projeto estratégico de um novo modelo de desenvolvimento econômico, inclusivo, de natureza sócio ambiental, que se torne exemplar para o país. Uma modelagem a partir da ajuda humanitária, da reconstrução daquilo que foi perdido na tragédia climática e da promoção de um novo espírito de solidariedade e justiça social.

A obra de Goya integra hoje a coleção do Museu do Prado e estão nela – enterrados até os joelhos – os duelistas que nada mais podem fazer senão marcharem até a morte de um deles, ou de ambos. Abatidos pela força desesperada de quem está impedido de mover-se em outro sentido, os duelistas não escapam da fatalidade brutal que os separa como seres humanos e os une pela violência ilimitada.

Seus corpos depois serão apenas recolhidos por aqueles que na sua representação histórica são os mesmos que hoje querem negar as evidências climáticas, sejam os especuladores da dívida pública ou os futuros favorecidos pela gentrificação, fenômeno que sempre sucede o desastre em qualquer Terra Desolada: antes pelo elitismo feudal da nobreza, hoje oportunizada pela fúria das águas e pelos interesses que querem competir entre si o espólio da miséria.

Na época em que Goya pintou esta obra trágica e magnífica enfrentavam-se, na Espanha, os liberais e os absolutistas, mas o quadro parece prefigurar todo o destino da modernidade espanhola, que desembocou numa sangrenta Guerra Civil que também marcou de sangue o Século passado. Entre 1936 e 1939, com a derrota da República e a ascensão do fascismo, os tempos de democracia liberal-autêntica são extirpados da História da Espanha e adiados até a transição do franquismo, para uma democracia liberal ainda inconclusa.

Para que a ilustração democrática funcionasse no terreno da política e a República se instalasse como instituição, os duelistas deveriam ter a opção de soltar-se da terra e abdicar dos seus “garrotes”: a luta entre as duas Espanhas, a ilustrada e a da barbárie poderia se projetar então – por diversos meios e formas culturais – até o Pacto de Moncloa, sem a herança do franquismo.

O surgimento do extremismo de direita com o Vox, na Espanha – com apoio expressivo de diversos setores do empresariado nacional e global – é a volta da barbárie em preparação do pronto retorno do fascismo. Mas atenção: aqui no Brasil o Vox é o bolsonarismo e o Pacto de Moncloa é – em termos políticos e morais – o que significa para nós a Constituição de 1988, Carta que unifica a ideia de nação com a democracia liberal – republicana e democrática – que está sob ameaça permanente.

Nosso estado, neste momento, talvez seja o melhor símbolo deste impasse retratado no quadro de Goya, pois a tragédia climática nos põe – falo do campo democrático em sentido amplo – na mesma situação dos duelistas do “garrotazo”. Da possibilidade de desprendermos os pés presos pelo barro das enchentes vem a possibilidade de um novo ciclo político democrático no Estado, concertado em torno de um modelo de desenvolvimento que se torne o exemplo para o Brasil

Se a sociedade civil gaúcha não desprender seus pés do barro da catástrofe e afastar os “garrotazos”, a falsa impressão de retomarmos a vida como um novo normal, vai secar a fonte do futuro. E assim teremos uma nova depreciação radical das funções públicas do Estado, a senectude da iniciativa privada, mais a retomada das agressões à natureza, mais nos cegarão para as tragédias climáticas e ainda nos tornarão cúmplices involuntários das novas exclusões. Antes que os duelistas se matem e os negacionistas venham remover seus corpos mutilados, ajustemos os cordéis de um futuro digno para todos.

*Tarso Genro foi governador do estado do Rio Grande do Sul, prefeito de Porto Alegre, ministro da Justiça, ministro da Educação e ministro das Relações Institucionais do Brasil. Autor, entre outros livros, de Utopia possível (Artes & Ofícios). [https://amzn.to/3ReRb6I]


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