Por WALFRIDO WARDE & RAFAEL VALIM*
Apesar da barbárie de domingo, parcela considerável dos brasileiros ainda apoia uma intervenção militar
O domingo da vergonha exibiu o ataque contra os prédios públicos que simbolizam as mais sagradas instituições da República. Nós imaginávamos que as cenas escatológicas de vandalismo fossem horrorizar todo o país e nos conduzir a uma unânime defesa do Estado democrático de direito. Mas isso não aconteceu. Apesar da imediata reação institucional, as pesquisas de opinião revelam que, depois de tudo, depois do episódio que envergonha o país perante o mundo civilizado, ainda trinta e cinco por cento do nosso povo apoia uma intervenção militar. Isso não é o suficiente para fabricar uma ruptura sob a mão armada de setores das Forças Armadas, mas pode erodir até o último torrão de terra um governo sobre o qual se escora toda a esperança de continuidade existencial da democracia.
Há algumas verdades inconvenientes na causa desse espanto. A democracia produziu, no mundo todo, filhos inconsoláveis e outros ingratos. De um lado, aqueles a quem a democracia, sob regime de produção capitalista, não foi capaz de alimentar, dar moradia digna, educação e segurança. De outro, aqueles que vivem na abundância capitalista, mas se ressentem porque pensam “pagar a conta” sozinhos.
A vitória de Lula, um dos últimos estadistas, em todo o planeta, capaz de empolgar as massas em favor de ideais democráticos, ainda não foi capaz de alterar esse estado de coisas. E se não refrear seu desconforto na relação com as Forças Armadas, talvez tudo piore.
Lula é um produto das lutas sociais que se opuseram ao regime militar. Ou seja, emerge e viceja com a abertura democrática, sob o gabarito de militares como Geisel e Golbery, os quais a extrema direita considera esquerdistas infiltrados. Lula é filho da redemocratização, que sepultou as ambições políticas de oficiais e de aspirantes a oficiais que gravitavam no entorno de Sylvio Frota, símbolo da linha dura, removido do poder em outubro de 1977, para que se pavimentassem os caminhos da Nova República.
A geração perdida de Sylvio Frota voltou, no útero do bolsonarismo, com um populismo que a linha dura podia chamar de seu. Jair Bolsonaro foi eleito democraticamente e, como outros tantos representantes da direita alternativa, do non sense que anima as massas, quase acaba com a democracia no Brasil. Jair Bolsonaro ampliou a participação de militares em cargos de confiança e empoderou regimentos policiais pelo país inteiro, sob a afirmação de uma maçaroca ética que fala com grande parte da população brasileira. Fecundou, gestou e botou o ovo da serpente que eclodiu no domingo da vergonha. E que gerou um monstro que se alimenta da ruptura e do distanciamento entre a política tradicional e parte do povo.
Não haverá solução sem que o Presidente dialogue com a cúpula das Forças Armadas, majoritariamente conservadora e insatisfeita com o resultado das urnas. É como se Mozart estivesse escrevendo uma sinfonia e alguém ligasse uma britadeira na rua em frente da sua casa. Essa tarefa não pode ser conferida a terceiros. Só Lula, o maior gênio político da história do Brasil, será capaz de lidar com essa situação.
No mais, será necessário olhar para a democracia e suas mazelas, buscar uma regulação fina da democracia, de modo a impedir interferências indevidas na formação e expressão da vontade popular e, quando não for possível, compassá-la aos legítimos interesses públicos, criar estruturas perenes de planejamento e construção de estratégias estatais, que não podem variar ao sabor das mudanças de governo, assim como estruturas de Estado de salvaguarda da democracia, a exemplo do que fez a Alemanha.
As grandes democracias devem ser capazes de competir em eficiência com regimes autocráticos que mais recentemente floresceram em um regime de mercado sob intensa coordenação estatal. E ao fazê-lo, devem partilhar o produto do sucesso econômico de modo equânime, para que não haja uma multidão de perdedores e pouquíssimos vencedores.
Mas tudo isso sob a certeza de que não é possível acomodar todos os desejos. Assim como nas melhores famílias, sempre haverá filhos inconsoláveis, para os quais só resta um bom corretivo da lei.
*Rafael Valim, advogado, é doutor em direito administrativo pela PUC-SP, onde lecionou de 2015 a 2018. Autor, entre outros livros, de Lawfare: uma introdução (com Cristiano Zanin e Valeska Zanin Martins) (Contracorrente).
*Walfrido Warde, advogado, é doutor em direito comercial pela USP. Autor, entre outros livros, de O espetáculo da corrupção (Leya).
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