Os fundamentos da especulação

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Por FRANCISCO TEIXEIRA*

A especulação é filha da relação entre trabalho concreto e sua metamorfose em trabalho abstrato

A dialética do processo de socialização dos trabalhos privados

A produção de mercadorias só se torna a forma dominante da riqueza social, quando a divisão social do trabalho já tinha alcançado um alto nível de desenvolvimento e complexidade. Afinal, os diferentes produtos do trabalho só podem se confrontar como mercadorias, porque são produtos de trabalhos específicos, socialmente distribuídos entre as diversas esferas da economia.

Que a divisão social do trabalho é uma determinação constitutiva da atividade humana como tal, Marx não deixa margem para dúvidas. Recorrendo ao desenvolvimento histórico da produção, ele mostra que, “[…] na antiga comunidade indiana, o trabalho é socialmente dividido sem que os produtos se tornem mercadorias. Ou, para citar um exemplo mais próximo, em cada fábrica o trabalho é sistematicamente dividido, mas essa divisão não implica que os trabalhadores troquem entre si seus produtos individuais. Apenas produtos de trabalhos privados, separados e mutuamente independentes uns dos outros confrontam-se como mercadorias” (MARX, 2017a, p. 120).

Ainda que a produção de mercadorias seja produto de distintos trabalhos privados, estes estão necessariamente encadeados entre si pelos laços invisíveis da divisão social do trabalho. Um produtor de casacos, por exemplo, depende de uma série de outros produtores, mesmo que não os conheça nem tenha relações diretas com eles. Assim, para confeccionar sua mercadoria (casaco), precisa dispor do produto do trabalho de quem produz linha, tecido, botões etc.

Mesmo que esses distintos trabalhos sejam elos da divisão social do trabalho, isso não é suficiente para que se tornem socialmente reconhecidos pela sociedade. Daí a crítica que Benetti e Cartelier dirigem a Marx: “[…] como se pode conceber que as coisas sejam enquanto tais socialmente úteis, portanto já sociais, antes que elas tenham sua forma social?” (Benetti e Cartelier, apud FAUSTO, 1987, p. 92.

À primeira vista, a resposta é aparentemente simples. No capítulo 3, do livro I, o autor de O capital (MARX, 2017b) mostra que, muito embora cada trabalho individual, singular (que Marx denomina trabalho concreto), seja um eterno elo da divisão social do trabalho, isso, contudo, não é suficiente para que seus produtos se tornem trabalho para outrem. Com efeito, “[…] mesmo que o trabalho do nosso tecelão de linho […]”, diz Marx, “[…] seja um elo permanente da divisão social do trabalho, com isso não está de modo algum garantido [a venda do] valor de uso de suas 20 braças de linho.” (MARX, 2017a, p. 180).

Para que os diferentes trabalhos concretos sejam reconhecidos socialmente pelo mercado, isto é, para que seus produtos sejam comprados por outrem, é necessário, primeiro, que esses distintos trabalhos sejam reduzidos a trabalho simples, igual, social, ou seja, convertam-se em trabalho abstrato, que só se diferencia quantitativamente um do outro. Só há trabalho abstrato, portanto, quando se opera, ao mesmo tempo, uma redução qualitativa e quantitativa.

Mas, como se efetua a redução dos diferentes trabalhos concretos a trabalho diretamente social, a trabalho abstrato? A resposta é simples: mediante um processo de abstração que converte os distintos trabalhos singulares à sua forma de trabalho abstrato, à sua forma de trabalho universal, diretamente social.

A forma como Marx apresenta esse processo de abstração em O capital parece referir-se a uma redução puramente subjetiva, tal como o é em Kant. Este filósofo entende que para a produção de conceitos universais e necessários “[…] é preciso, pois, poder comparar, refletir e abstrair, pois essas três operações lógica do entendimento são as condições essenciais e universais da produção de todo conceito em geral. Eu vejo, por exemplo, um pinheiro, um salgueiro e uma tília. Ao comparar, antes de mais nada, estes objetos entre si, observo que são diferentes uns dos outros no que respeita ao tronco, aos galhos, às folhas eles próprios, e, se eu abstraio do tamanho, da figura dos mesmos e assim por diante, obtenho um conceito de árvore” (KANT, 1992, p. 112).

Uma leitura cuidadosa dessa passagem revela duas coisas: a) que a experiência mostra uma diversidade de árvores de diferentes tamanhos, formatos etc., b) que somente por meio do pensamento é possível abstrair as diferenças que fazem de cada árvore um tipo singular e, assim, chegar ao conceito desse objeto apreendido pelo sujeito cognoscente. Como é impossível averiguar e comparar todas as árvores existentes no mundo, a experiência apenas ensina “[…] que algo é constituído desta ou daquela maneira, mas não que não possa sê-lo diferentemente.” (KANT, 1989, p. 37-38). Por isso, “[…] a experiência não concede nunca aos seus juízos uma universalidade verdadeira e rigorosa.” (KANT, 1989, p. 38). Em consequência, a observação oferece “[…] apenas universalidade suposta e comparativa (por indução), de tal modo que, em verdade, antes deveria dizer: tanto quanto até agora nos foi dado verificar, não se encontram exceções a essa ou àquela regra.” (KANT, 1989, p. 38).

Daí que, para Kant (1989, p. 38), a universalidade empírica não passa de “[…] uma extensão arbitrária da validade, em que se transfere para a totalidade dos casos a validade da maioria.” Mas, se a experiência não pode nunca conceder uma universalidade verdadeiramente rigorosa aos seus juízos, resta a razão como única fonte de proposições universais e absolutamente necessárias. Quer dizer então que a razão em nada depende da realidade empírica para produzir seus conceitos? A resposta que se encontra em Kant (1980, p. 93) é direta e objetiva: “[…] pensamentos sem conteúdo são vazios […]”, pois sem o concurso da experiência, a razão não teria como dispor de objetos, para produzir suas representações sobre o mundo dos homens.

Prova disso é a crítica que Kant (1980, p. 93) dirige aos defensores do idealismo dogmático, para os quais todo conhecimento obtido pelos “[…] sentidos e pela experiência é simples ilusão.” Contra essa concepção de saber, Kant (1980, p. 93) brada em alto e bom som: “[…] o princípio que rege e determina constantemente meu idealismo é, ao contrário: ‘todo conhecimento das coisas, tirado unicamente do entendimento puro ou da razão pura, nada mais é que ilusão, só na experiência há verdade’.”

Essa censura radical de Kant ao idealismo dogmático, acusando-o de mover-se exclusivamente no terreno do pensamento, como única fonte produtora de conhecimento, lembra a contenda de Marx contra Bauer e seus consortes, quase 60 anos depois. É de todos conhecido como o jovem Marx (2009), em A sagrada família, destrói o idealismo mistificador desses chamados hegelianos de esquerda, ao obrigá-los a reconhecer que sua concepção de universalidade acaba por conduzi-los a seguidas e inevitáveis contradições. De forma jocosa, Marx recorre a um exemplo banal, que mostra como nasce o conceito geral de “fruta”. Este conceito é obtido por meio de um processo puramente mental, que consiste em identificar as características comuns às maçãs, às peras, aos morangos etc. A mistificação especulativa acontece quando se faz o caminho contrário, isto é, quando se parte da fruta, como substância, para se chegar às peras, maçãs, amêndoas etc., como modos de existência daquela substância.

É aí que começa todo o processo de mistificação do conhecimento. Com efeito, esses jovens hegelianos, que se autodenominavam Críticos dos críticos, não têm como chegar às frutas reais, maçãs, peras, amêndoas etc., partindo da representação geral “a fruta”. O caminho de volta, da substância às frutas reais, só é possível se se abandonar a representação geral “a fruta”. Afinal, como diz Marx (2009, p. 73), “[…] tudo que há de fácil no ato de chegar, partindo das frutas reais para chegar à representação abstrata “a fruta”, há de difícil no ato de engendrar, partindo da representação abstrata “a fruta”, as frutas reais. Chega a ser impossível, inclusive, chegar ao contrário da abstração ao se partir de uma abstração, quando não desisto dessa representação”.

Para não desistir da abstração “a fruta”, os idealistas especulativos lançam mão dos mais absurdos malabarismos intelectuais, mas acabam sempre reféns de suas diabruras mentais místicas. De forma extremamente debochada, Marx assim resume tais peripécias: “[…] o homem comum não acredita estar dizendo nada de extraordinário quando diz que há maçãs e há peras. Mas o filósofo, quando expressa a referida existência de maneira especulativa, diz algo extraordinário. Ele realizou um milagre, ele engendrou do seio do ser intelectivo irreal “a fruta”, os seres naturais reais maçã, pêra etc.; ou seja, ele criou essas frutas do seio de seu próprio intelecto abstrato, que ele representa para si mesmo como um sujeito absoluto fora de si – no caso concreto como “a fruta” – e em cada existência que expressa ele leva a cabo um ato de criação” (Marx, 2009. P.74-75).

Ao contrário de Kant, para quem a razão só pode conhecer o que existe na realidade, e existe aí para a percepção, para os Críticos críticos, como reconhece Engels, “[…] a crítica atinge a completude ao alcançar àquela altura da abstração na qual ora considera ‘algo’, ora como ‘tudo’, exclusivamente as criações de seu próprio pensamento e as generalidades contrárias a toda a realidade”. É por isso que para esses ditos hegelianos de esquerda “[…] o trabalhador não cria nada, porque cria apenas “unidades”, quer dizer, objetos físicos, tangíveis, desprovidos de espírito e de crítica, objetos que são um verdadeiro horror aos olhos da Crítica pura. Tudo o que é real, tudo o que é vivo é acrítico, massivo e, portanto, “nada”, ao passo que apenas as criaturas ideais e fantásticas da Crítica crítica são “tudo” (MARX & Engels, 2009, p. 29).

Muito embora Marx não faça referência direta ao autor da Crítica da razão pura, ao reconhecer como legado do idealismo alemão o desenvolvimento do lado ativo do conhecimento, Marx dialoga de forma crítica com essa tradição, que tinha em Kant não apenas um dos seus representantes mais ilustres, mas o seu fundador, pois, ao colocar como central o problema da coisa em si, ele também funda essa tradição. A crítica de Marx a Hegel é, em parte, a crítica da crítica da “filosofia crítica”, pois é desta forma que Hegel se referia à filosofia de Kant e, ao menos nesse sentido, ele é incontornável.

Quanto a Bauer e seus consortes, Marx não lhes faz nenhuma concessão. Sua crítica demolidora a esses jovens filósofos, como assim entende Lukács, não visa simplesmente destruir as vazias concepções idealistas de universalidade, mas, acima de tudo, “[…] restabelecer esta categoria, formulada de maneira exata em sua aplicação dialética, justa e científica.” (LUKÁCS, 1970, p. 80). É verdade! No entanto, essa compreensão dialética de universalidade teve de esperar muito tempo ainda. Ela só veio quando Marx, depois de longo período de divórcio com Hegel, vê-se obrigado a reconhecer que a dialética hegeliana é fundamental para sua crítica da Economia Política e, por extensão, da realidade capitalista.

Os manuscritos de 1857-1858 selam o compromisso definitivo de Marx com a dialética hegeliana, muito embora ele faça questão de ressaltar que recusa o seu lado místico, que consiste, segundo ele, em fazer do pensamento o demiurgo do real. A compreensão dialética da universalidade, na introdução dos manuscritos, salta aos olhos quando ele diz que “[…] a produção em geral é uma abstração, mas uma abstração razoável, na medida em que efetivamente destaca e fixa o elemento comum, poupando-nos da repetição.” (MARX, 2011, p. 41). Para tanto, ele adverte que é preciso atentar para as determinações que são “[…] comuns à época moderna e à mais antiga […] As determinações que valem para a produção em geral têm de ser corretamente isoladas de maneira que, além da unidade – decorrente do fato de que o sujeito, a humanidade, e o objeto, a natureza, são os mesmos –, não seja esquecida a diferença essencial.” (MARX, 2011, p. 41). Sem especificar, portanto, o que é próprio de cada forma social de produção, acaba-se por eternizar as relações capitalistas de produção. A universalidade sem o concurso da particularidade se reduz a uma mera abstração destituída de sentido.

O que vem a seguir deixa tudo isso mais claro. Para o autor de O capital, o grande mérito de Adam Smith foi o de ter reconhecido a categoria trabalho como atividade em geral, tal categoria é apreendida pelo autor de A riqueza das nações como uma “[…] expressão abstrata para a relação mais simples e mais antiga em que os seres humanos – seja qual for a forma de sociedade – aparecem como produtores.” Isso”, diz Marx, “[…] por um lado, é correto. Por outro, não (2011, p. 57).”

Entretanto, o que significa dizer que Adam Smith, por um lado, está certo e, por outro, não? Ele acerta ao conceber o trabalho como a mais simples e mais antiga relação entre os seres humanos. Como criadores de valores de usos, de coisas destinadas a atender determinada necessidade social, “[…] o trabalho é, assim […]”, diz Marx (2017a, p. 120), uma perpétua “[…] condição de existência do homem, independentemente de todas as formas sociais, eterna necessidade natural de mediação do metabolismo entre o homem e a natureza e, portanto, da vida humana.” Tal condição pressupõe “[…] um conjunto igualmente diversificado, dividido segundo o gênero, a espécie, a família e a subespécie, de diferentes trabalhos.” (MARX, 2017a, p. 119-120). Porém, isso ainda não é tudo. A atividade produtiva, independentemente da forma histórica de produção, é sempre dispêndio de força humana de trabalho em sentido fisiológico.

Essas determinações gerais, universais (divisão social do trabalho, mensuração do tempo de trabalho, dispêndio fisiológico de energia) são constitutivas do trabalho como eterna condição de existência do homem. Nesse sentido, Smith tem razão quando afirma, em sua A riqueza das nações, que o trabalho é a categoria mais geral, mais abstrata da vida humana. Não sem razão, para ele, “[…] o trabalho foi o primeiro preço, o dinheiro de compra original que foi pago por todas as coisas. Não foi por ouro ou por prata, mas pelo trabalho, que foi originalmente comprada toda a riqueza do mundo; e o valor dessa riqueza, para aqueles que a possuem, e desejam.” (SMITH, 1985, p. 87-88).

Se Smith acerta em conceber o trabalho como a categoria mais geral, como universalidade que rege por igual todas as formas históricas de produção, em que consiste seu erro, uma vez que, para Marx, por um lado, ele está certo; por outro, não?  Seu erro é muito mais uma questão metodológica do que mesmo ideológica. É o que se pode deduzir da crítica que Marx dirige a ele e a Ricardo. Em Teorias da mais-valia, Marx (1985) afirma que o grande mérito da Economia Política Clássica consiste em haver reduzido, pela análise, as diferentes formas de riqueza (salário, lucro, renda e juros) à sua fonte interna, ao trabalho. No entanto, “[…] nessa análise […]”, diz Marx “[…] a economia clássica se contradiz em certos pontos, com frequência de maneira direta, sem elos intermediários, tenta empreender essa redução e demonstrar que as diferentes formas têm a mesma fonte. Mas isso é consequência necessária do método analítico com que a crítica e a compreensão têm de iniciar-se. A economia clássica não tem interesse em analisar como nascem as diferentes formas, mas em convertê-las, pela análise, à unidade delas, pois parte dessa forma como pressuposto dado. Mas a análise é o requisito indispensável para se revelar a gênese, para se compreender o processo real de formação das diferentes fases. Por fim, a economia clássica é falha e carente ao conceber a forma básica do capital – a produção destinada a se apropriar de trabalho alheio – não como forma histórica e sim como forma natural da produção social, e sua própria análise abre caminho para que se destrua essa concepção (Marx, 1985, p. 1538).

Eis aí a razão por que Smith não foi capaz de pensar a dialética entre trabalho, como atividade universal, e trabalho, no seu contexto particular, isto é, na forma em que aquelas determinações gerais se põem e se realizam. A forma particular que assume o trabalho na sociedade capitalista, continua Marx (2011, p. 57-58) em seu diálogo com Smith, é “![…] a indiferença diante de um determinado tipo de trabalho, nenhum dos quais predomina sobre os demais. Portanto, as abstrações mais gerais surgem unicamente com o desenvolvimento concreto mais rico, ali onde um aspecto aparece como comum a muitos, comum a todos. Nesse caso deixa de ser pensado exclusivamente em uma forma particular. Por outro lado, essa abstração do trabalho em geral não é apenas o resultado mental de uma totalidade concreta de trabalho. A indiferença em relação ao trabalho determinado corresponde a uma forma de sociedade em que os indivíduos passam com facilidade de um trabalho a outro, e em que o tipo determinado do trabalho é para eles contingente e, por conseguinte, indiferente. Nesse caso, o trabalho deveio, não somente enquanto categoria, mas na efetividade, e meio para a criação da riqueza em geral e, como determinação, deixou de estar ligado aos indivíduos em uma particularidade”.

É essa indiferença com relação ao tipo de trabalho a realizar que caracteriza a forma capitalista em que os distintos trabalhos – reduzidos a trabalho simples, igual e social – são igualados entre si no mercado. Como assim? Quando os donos de mercadoria “[…] equiparam entre si seus produtos de diferentes tipos na troca, como valores, eles equiparam entre si seus diferentes trabalhos como trabalho humano. Eles não sabem disso, mas o fazem.” (MARX, 2017a, p. 149).

No processo de troca de mercadorias, os diferentes tipos de trabalhos são igualados entre si. Mas isso só é possível porque os distintos trabalhos são, primeiramente, reduzidos a trabalho médio, a trabalho simples, que só se diferenciam quantitativamente. A abstração das diferenças constitutivas dos trabalhos específicos não nasce de uma simples soma abstrata de mortos traços singulares, presentes em cada tipo distinto de trabalho, como, por exemplo, gasto de músculos, cérebro e nervos. Se assim fosse, então, o trabalho abstrato não seria  mais do que uma forma de universalidade puramente conceitual; uma abstração que só se sustenta anulando as singularidades, uma vez que esse tipo de generalização exige deixar de fora as diferenças, para guardar apenas a identidade, isto é, o que é comum em cada tipo específico de trabalho.

Ora, pensar o trabalho abstrato como uma abstração que anula a singularidade seria o mesmo que eliminar a relação social básica da sociedade capitalista: a troca de mercadorias. Por quê? Porque se essas coisas “[…] não fossem valores de uso qualitativamente distintos e, por isso, produtos de trabalhos úteis qualitativamente distintos, essas coisas não poderiam de modo algum se confrontar como mercadorias.” (MARX, 2017a, p. 119). A troca seria, portanto, impossível, uma vez que “[…] um valor de uso não se troca pelo mesmo valor de uso” (Marx, 2017, p.119).

Agora, sim, pode-se entender, de uma vez por todas, por que o trabalho abstrato não advém de uma abstração subjetiva, pois, nesse tipo de abstração, é eliminado o momento da singularidade. Ora, se se anular a singularidade, elimina-se o processo pelo qual os diferentes trabalhos são igualados entre si.

Eliminar a singularidade é o mesmo que negar a existência da troca de mercadorias. Daí porque, em Para crítica da economia política, Marx (1982, p. 33) faz questão de ressaltar que o trabalho abstrato “[…] aparece como uma abstração, mas é uma abstração que é praticada diariamente no processo social de produção. A resolução de todas as mercadorias em tempo de trabalho não é uma abstração maior nem tampouco menos real que a de todos os corpos orgânicos em ar.” Não satisfeito, Marx (1982, p. 33) salienta esse processo de resolução de todas as mercadorias em tempo de trabalho, isto é, a mensuração do tempo de trabalho nelas contidas:  “[…] o trabalho que é medido dessa maneira, isto é, pelo tempo, aparece não como trabalho de diferentes sujeitos, mas, ao contrário, os indivíduos diversos que trabalham aparecem como meros órgãos do trabalho. Ou seja, o trabalho, tal como se apresenta em valores de troca, poderia expressar-se como trabalho humano geral”.

Nessa passagem, Marx deixa claro que os diferentes indivíduos que trabalham independentemente uns dos outros, executando seus trabalhos de forma privada, somente realizam seus trabalhos como indivíduos-membros dessa totalidade trabalho abstrato. São trabalhos privados, mas, ao mesmo tempo, são todos trabalhos imersos na totalidade social do mercado. Conclusão: o trabalho singular ou concreto é trabalho privado, mas trabalho imerso na totalidade do trabalho social, do trabalho abstrato. O privado faz parte do social.

Aí está a resposta à questão antes levantada que perguntava como Marx poderia conceber que coisas que já são socialmente úteis, portanto, já sociais, ainda tenham que se transformar em coisas sociais.

Sobre a relação entre trabalho concreto e trabalho abstrato

Depois desse longo e demorado percurso, vale a pena tecer mais algumas considerações sobre a natureza da abstração trabalho abstrato realizada tal como Marx a entende. Que não se trata de uma generalização abstrata, meramente subjetiva, é comprovadamente óbvio. Com efeito, suspender as diferenças para guardar apenas o que é comum nas singularidades é desconhecer o fato de que os valores de uso só podem se confrontar como mercadorias porque são produtos de trabalhos singulares, de trabalhos diferentes. Consequentemente, a generalização não pode anular as diferenças. E não pode porque, nesse caso, a troca das mercadorias seria impossível, uma vez que os produtos do trabalho só podem se confrontar como mercadorias porque são produtos de trabalhos distintos.

A abstração do trabalho em geral não pode ser, portanto, uma abstração mental. Ao contrário disso, o trabalho abstrato é uma abstração que é praticada diariamente no processo de produção. Prova disto é a indiferença dos indivíduos em relação ao tipo de trabalho que realizam. Tal indiferença pressupõe uma forma de sociedade em que nenhum tipo de trabalho predomina sobre os demais. Por isso, diz Marx (2011, p. 57) que “[…] as abstrações mais gerais surgem unicamente com o desenvolvimento concreto mais rico, ali onde um aspecto parece como comum a muitos, comum a todos.” Ora, é na sociedade capitalista que os diferentes trabalhos foram de tal forma simplificados que os indivíduos não encontram dificuldade em executar qualquer ocupação. É por isso, diz Marx (), que a redução dos diferentes trabalhos a trabalho abstrato “[…] existe no trabalho médio, que qualquer indivíduo médio de uma sociedade dada pode executar; um gasto produtivo determinado de músculos, nervos, cérebro etc. É trabalho simples, ao qual qualquer indivíduo pode ser adestrado, e que deve executar de uma ou de outra forma […]. O trabalho simples constitui de longe a maior parte do trabalho total da sociedade burguesa, como se pode verificar a partir de qualquer estatística” (Marx,1982, p. 33).

A redução dos diferentes tipos de trabalho a trabalho simples, que em média qualquer indivíduo pode realizar com facilidade, é uma criação da sociedade capitalista. Não sem razão, Adam Smith já tinha consciência desse fenômeno. Tomando a manufatura de alfinete como ilustração, ele mostra que essa forma de atividade “[…] é hoje executada, não somente o trabalho todo constitui uma indústria específica, mas ele está dividido em uma série de setores, dos quais, por sua vez, a maior parte também constitui provavelmente um ofício especial. Um operário desenrola o arame, um outro o endireita, um terceiro o corta, um quarto faz as pontas, um quinto o afia nas pontas para a colocação da cabeça do alfinete; para fazer uma cabeça de alfinete requerem-se 3 ou 4 operações diferentes; montar a cabeça já é uma atividade diferente, e alvejar os alfinetes outra; a própria embalagem dos alfinetes também constitui uma atividade independente. Assim, a importante atividade de fabricar um alfinete está dividida em aproximadamente 18 operações distintas, as quais, em algumas manufaturas são executadas por pessoas diferentes ao passo que, em outras, o mesmo operário às vezes executa 2 ou 3 delas” (SMITH, 1985, p. 66).

Referindo-se à manufatura de agulhas, Marx (2017a, p. 418) mostra que essa atividade “[…] produz artigos que passam de fases interconexas de desenvolvimento, uma sequência de processos graduais, como o arame, que, na manufatura de agulhas de costura, passa pelas mãos de 72 – e até 92 – trabalhadores parciais específicos.” O trabalhador é adestrado a simplesmente executar e, quanto mais autómato ele se torna, mais produtivo ele é para a indústria. Daí, quanto mais ignorante, quanto menos uso fizer de sua imaginação, mais ele produz. É por isso que “[…] a ignorância é a mãe da indústria quanto da superstição. A reflexão e a imaginação estão sujeitas ao erro; mas o hábito de mover o pé ou a mão não depende nem de uma nem de outra. Por essa razão, as manufaturas prosperam mais onde mais prescinde do espírito, de modo que a oficina pode ser considerada uma máquina cujas partes são homens” (FERGUNSON, 1767, p. 280 apud MARX, 2017a, p. 435).

Comparando a manufatura com a grande indústria, Marx mostra que, na passagem da primeira para a segunda, ocorre uma inversão radical na relação do trabalhador com o instrumento de trabalho. Na manufatura, como forma menos desenvolvida de produção de mais-valia, diz Marx (2017a, p. 494) que “[…] o trabalhador se serve da ferramenta; na fábrica, ele serve à máquina. Lá, o movimento do meio de trabalho parte dele; aqui, ao contrário, é ele quem tem de acompanhar o movimento. Na manufatura, os trabalhadores constituem membros de um mecanismo vivo. Na fábrica, tem-se um mecanismo morto, independente deles e ao qual são incorporados como apêndices vivos”.

Essa degradação do trabalhador a um simples apêndice vivo da máquina está inscrita na própria lógica do capital. Com efeito, no modo de produção capitalista, diz Marx (2017a, p. 382) que “[…] os meios de produção convertem-se imediatamente em meio para a sucção do trabalho alheio. Não é mais o trabalhador que emprega os meios de produção, mas os meios de produção que empregam o trabalhador. Em vez de serem consumidos por ele como elementos materiais de sua atividade produtiva, são eles que o consomem como fermento do seu próprio processo vital, e o processo vital do capital não é mais do que seu movimento como valor que valoriza a si mesmo”.

E não poderia ser diferente, uma vez que é o trabalhador que “[…] serve às necessidades de valorização de valores existentes, em vez de a riqueza objetiva servir às necessidades de desenvolvimento do trabalhador. Assim como na religião o homem é dominado pelo produto de sua própria cabeça, na produção capitalista ele o é pelo produto de suas próprias mãos” (MARX, 2017a, p. 697).

Num mundo assim, os indivíduos só existem na condição de produtores de coisas para serem vendidas. Como tais, “[…] as pessoas existem umas para outras […]”, diz Marx  “[…] como representantes da mercadoria e, por conseguinte, como possuidor de mercadorias.” Por isso, as pessoas, continua Marx, (2017a, p. 160), “[…] não passam de personificações das relações econômicas, e que as pessoas se defrontam umas com as outras como suportes dessas relações (Marx, 2017,p.159).” Por isso, as pessoas só travam contato social “[…] mediante a troca de seus produtos do trabalho, os caracteres especificamente sociais de seus trabalhos privados aparecem apenas no âmbito dessa troca. Ou, dito de outro modo, os trabalhos privados só atuam efetivamente como elos do trabalho social total por meio das relações que a troca estabelece entre os produtos do trabalho e, por meio deles, também entre os produtores” (MARX, 2017a, p. 148).

Agora tudo se esclarece de vez. Os diferentes trabalhos privados somente fazem valer seu caráter efetivamente social, quando se integram, através da troca, à totalidade do trabalho social. Noutros termos, convertem-se em trabalho abstrato, que é o trabalho em sua forma diretamente social. É o que diz Marx numa passagem do capítulo I, do livro I, de O capital, na qual ele mostra, mais uma vez, a redução dos trabalhos privados a trabalho como dispêndio de força humana de trabalho, isto é, como trabalho humano abstrato. Concedendo-lhe a palavra, ele argumenta que “[…] somente no interior de sua troca os produtos do trabalho adquirem uma objetividade de valor socialmente igual, separada de sua objetividade de uso, sensivelmente distinta.”   Assim, “Essa cisão do produto do trabalho em coisa útil e coisa de valor só se realiza na prática quando a troca já conquistou um alcance e uma importância suficientes  para que se produzam coisa úteis destinadas à troca e, portanto, o caráter de valor das coisas passou a ser considerado no próprio ato de sua produção. A partir desse momento, os trabalhos privados dos produtores assumem, de fato, um duplo caráter social. Por um lado, como trabalhos úteis determinados, eles têm de satisfazer uma determinada necessidade social e, desse modo, conservar a si mesmo como elos do trabalho total, do sistema natural-espontâneo da divisão social do trabalho. Por outro lado, eles só satisfazem as múltiplas necessidades de seus próprios produtores na medida em que cada trabalho privado e útil é permutável por qualquer outro tipo de trabalho privado e útil, ou seja, na medida em que um equivale ao outro. A igualdade toto coelo [plena] dos diferentes trabalhos só pode consistir numa abstração de sua desigualdade real, na redução desses trabalhos ao seu caráter comum como dispêndio de força humana de trabalho, como trabalho humano abstrato” (MARX, 2017a, p. 148-149).

Duas almas gêmeas filhas da circulação simples

Uma leitura atenta dessa citação pode levar a que se pense que o trabalho abstrato só existe na troca. Afinal, admitir que a troca é o momento em que os trabalhos dispendidos na produção se convertem em trabalho abstrato seria aceitar que os produtos do trabalho somente se convertem em mercadoria pela ação da troca, isto é, do comércio? Longe disso! No ato de produção, os produtos do trabalho já nascem como mercadorias. Não é a troca que possibilita o produto do trabalho assumir a forma mercadoria. Marx faz questão de enfatizar isso no capítulo 20 do livro III, no qual ele apresenta algumas Considerações histórias sobre o capital comercial. Aí, ele mostra, a partir do momento em que a troca assume a força de um preconceito popular, que é “[…] a mercadoria produzida que, por meio de seu movimento, faz surgir o comércio […]”, ou seja, a troca generalizada de mercadorias (MARX, 2017b, p. 372). Os produtos do trabalho já nascem, portanto, como mercadorias.

Quanto a isso, Marx não deixa nenhuma dúvida, quando afirma que “[…] o caráter de valor das coisas passou a ser considerado no próprio ato de sua produção.” (MARX, 2017a, p. 148). Mas a produção e a troca são momentos espacial e temporalmente distintos do processo global de produção e reprodução da riqueza social. E é justamente por isso que os produtores de mercadorias se tornam reféns dos humores do mercado, mesmo que já sejam elos permanentes da divisão social do trabalho. A troca é o momento em que o valor de suas mercadorias terá que saltar do corpo da mercadoria em que ele está inserido para o corpo do ouro, isto é, do equivalente geral. É esse salto do valor do corpo da mercadoria para o corpo do equivalente geral (ouro) que Marx chama de “[…] salto mortale [salto mortal] da mercadoria. Se esse salto dá errado, não é a mercadoria que se esborracha, mas seu possuidor.” (MARX, 2017a, p. 180).

Marx se demora um pouco mais analisando as possíveis causas que explicam a sorte do possuidor de mercadoria, quando este vai ao mercado para vendê-la. Nada lhe garante que o salto do valor de sua mercadoria para o corpo de outra mercadoria será bem-sucedido ou malsucedido. Não há nenhuma garantia de suas expectativas se confirmarem de acordo como esperado por ele, pois, diz Marx, “[…] a divisão social do trabalho torna seu trabalho tão unilateral quanto multilaterais suas necessidades.” Ele é apenas um entre milhares de outros concorrentes que, igualmente como ele, disputam entre si “[…] a forma equivalente universal, socialmente válida, existente no dinheiro […]”, que se encontra “[…] no bolso de outrem.” (MARX,). Para se apoderar do dinheiro, sua mercadoria precisa, antes de mais nada, “[…] ser valor de uso para o possuidor do dinheiro, de modo que o trabalho nela despendido esteja incorporado numa forma socialmente útil ou se confirme como elo da divisão social do trabalho.” (Marx, 2017ª,p. 180). Mas isso, por si só, não é condição suficiente para que ele possa realmente se apoderar do dinheiro que se encontra no bolso de um comprador qualquer.

Nem poderia, continua Marx, pois “[…] a divisão do trabalho é um organismo natural-espontâneo da produção, cujos fios foram e continuam a ser tecidos pelas costas dos produtores de mercadorias. Talvez a mercadoria seja o produto de um novo modo de trabalho, que se destina à satisfação de uma necessidade recém-surgida ou pretende ela própria engendrar uma nova necessidade. O que até ontem era uma função entre muitas de um e mesmo produtor de mercadorias, hoje pode gerar uma nova modalidade particular de trabalho, que, separada desse conjunto, autonomizada, manda seu produto ao mercado como mercadoria independente. As circunstâncias podem estar ou não maduras para esse processo de separação. Hoje o produto satisfaz uma necessidade social. Amanhã é possível que ele seja total ou parcialmente deslocado por outro tipo de produto semelhante.  Mesmo que o trabalho de nosso tecelão de linho seja um elo permanente da divisão social do trabalho, com isso não está de modo algum garantido o valor de uso de suas 20 braças de linho. Se a demanda social de linho – e essa demanda, tal como outras coisas, tem uma dada medida – for satisfeita por tecelões concorrentes, o produto de nosso amigo será excedente, supérfluo e, portanto, inútil […]” (Marx, 2017a, p. 180-181)

Marx não se dá ainda por satisfeito. Imagina o que poderá acontecer com o produtor de tecidos, caso ele (tecelão) tenha despendido em seu produto somente a média socialmente necessária de tempo de trabalho. No entanto, sem autorização e pelas costas de nosso tecelão, as condições de produção da tecelagem de linho, já há muito estabelecidas, entraram em ebulição. O que até ontem era tempo de trabalho socialmente necessário à produção de 1 braça de linho, hoje deixa de sê-lo, como o demonstra prontamente o possuidor de dinheiro, quando exibe ao tecelão as cotações de preços de seus diversos concorrentes. Para sua desgraça, há muitos tecelões no mundo (MARX, 2017a).

Daí não haver outra inferência a fazer que não seja o fato de que a forma mercadoria, assumida pelo produto do trabalho, obriga os produtores a se comportarem especulativamente. E não poderia ser diferente, pois sua sorte depende de uma série de circunstâncias sobre as quais eles não têm nenhum domínio. Apesar de a mercadoria amar o dinheiro, o curso desse amor nunca é tranquilo; ele é marcado por sobressaltos. Assim são as relações entre os proprietários de mercadorias. Tais relações são “[…] tão naturalmente contingentes quanto qualitativo é o nexo quantitativo do organismo social de produção, que apresenta seus membra disjecta [membros amputados] no sistema da divisão do trabalho. Nossos possuidores de mercadorias descobrem, assim, que a mesma divisão do trabalho que os transforma em produtores privados independentes também torna independente deles o processo social de produção e suas relações nesse processo, e que a independência das pessoas umas das outras se consuma num sistema de dependência material  [sachlich] e universal”. (MARX, 2017a, p. 181-182).

É assim que a lógica da mercadoria se impõe aos possuidores de mercadorias: com a força de uma lei natural que os obriga a entrar numa disputa acirrada para atrair para si o dinheiro que se encontra no bolso dos compradores. A força dessa lógica é por eles sentida da mesma forma que a “[…] lei da gravidade se impõe quando uma casa desaba sobre a cabeça de alguém.” Afinal, o valor das mercadorias “[…] se fixa apenas por meio de sua atuação como grandezas de valor […]”, diz Marx, para, em seguida, acrescentar, que essas grandezas “[…] variam constantemente, independentemente da vontade, da previsão e da ação daqueles que realizam a troca (Marx,2017a, p. 150).”

Num mundo assim, no qual os agentes econômicos não têm domínio sobre suas ações, só lhes resta agir especulativamente. Tal comportamento está inscrito no salto mortal da mercadoria, que abre as portas para que a especulação obrigue os possuidores de mercadorias a se transformarem em apostadores. Quem o diz é Marx (2011, p. 146-147, grifo nosso), para quem “[…] a separação da troca em compra e venda torna possível que eu somente compre sem vender (açambarcamento de mercadorias), ou que somente venda sem comprar (acumulação de dinheiro). Torna possível a especulação. Faz da troca um negócio particular; i.e., funda o estamento dos comerciantes. Essa separação tornou possível uma massa de transações fictícias. Ora se evidencia que aquilo que aparecia como um ato essencialmente cindido, é um ato essencialmente relacionado, na realidade é essencialmente cindido. Nos momentos em que a compra e a venda se afirmam como atos essencialmente diferentes, tem lugar a depreciação geral de todas as mercadorias. Nos momentos em que se torna evidente que o dinheiro é unicamente meio de troca, tem lugar a depreciação do dinheiro. Baixa ou alta geral dos preços”.

Esse estado de coisas é consequência do fato de que, com o desenvolvimento da divisão do trabalho, intervém a necessidade de um meio de troca universal, um meio específico independente da produção de cada produtor. Conforme Marx (2011, p. 146), quanto mais os produtos se particularizam, “[…] diversificam e perdem autonomia, tanto mais necessário se faz um meio de troca universal […] No dinheiro, o próprio valor de troca devém coisa, ou o valor de troca da coisa adquire existência autônoma fora da coisa.”

Quanto mais complexa se torna a divisão do trabalho, mais o dinheiro se desenvolve como meio de troca universal; da condição de servo da compra e venda das mercadorias, ele passa à condição de senhor da circulação da mercadoria. Como diria Marx (1982, p. 92), “[…] de sua figura de servo, na qual se manifesta como simples meio de circulação, converte-se […] em senhor e deus no mundo das mercadorias.” Com isso, estão postas as condições para transformar o comércio de mercadorias num negócio no qual reina a especulação, uma vez que seus produtores perdem todo e qualquer domínio sobre as coisas que produz. Não lhes resta outra alternativa a não ser apostar que seu produto encontre alguém disposto a comprá-lo.

Os proprietários de mercadorias são levados a perceber suas atividades como um verdadeiro cassino. No ato mesmo de produção, avaliam os riscos, analisam e apostam suas fichas, isto é, seu bom dinheirinho que esperam receber de volta com um valor maior do que aquele que gastaram para produzir e revender suas mercadorias. Se suas apostas se confirmarem, o salto mortal de suas respectivas mercadorias será bem-sucedido. Caso contrário, serão eles que terão de arcar com os prejuízos.

É o que Marx deixa transparecer na passagem que se segue. Nela, ele mostra como nasce uma fração de classe, que se especializa em ganhar dinheiro por meio do comércio. Concedendo-lhe a palavra, ele assim expõe tal possibilidade: “[…] um momento da circulação é que a mercadoria se troca por mercadoria por meio do dinheiro. Mas, da mesma maneira, tem lugar  o outro momento, no qual  não só mercadoria se troca por dinheiro e dinheiro por mercadoria, mas no qual, igualmente, dinheiro se troca por mercadoria e mercadoria por dinheiro; no qual, por conseguinte, o dinheiro é mediado consigo mesmo pela mercadoria e aparece, em seu curso, com a unidade encerrada em si mesma. Desse modo, o dinheiro não aparece mais como meio, mas como fim da circulação (como, p.ex., no estamento comercial) (no comércio em geral). Se a circulação é considerada não somente como alternância incessante, mas nos circuitos que descreve em si mesma, este circuito aparece duplo: mercadoria-dinheiro-mercadoria; de outro lado, dinheiro-mercadoria-dinheiro; i.e., se vendo para comprar, posso igualmente comprar para vender. No primeiro caso, o dinheiro é só meio para obter mercadoria e a mercadoria, o fim; no segundo caso, a mercadoria é só meio para obter dinheiro e o dinheiro, o fim. Isso resulta simplesmente quando os momentos da circulação são tomados em conjunto. Portanto, considerada a circulação simples, tem de ser indiferente o ponto que tomo para fixar como ponto de partida”. (MARX, 2011, p. 147-148).

É, portanto, no seio da circulação de mercadorias que nasce uma fração de classe cuja ocupação é exclusivamente comprar para vender. O comércio daí surgido encontra no dinheiro, como meio de pagamento, um veículo para expandir seus negócios ilimitadamente. Com efeito, com o desenvolvimento do comércio de mercadorias, nascem instrumentos de crédito que permitem aos comerciantes dispor de meios para criar uma demanda fictícia, na medida em que podem comprar antes mesmo de venderem. Com o desdobramento do dinheiro como meio de pagamento em títulos de créditos, tais como as chamadas letras de câmbio, por exemplo, “[…] o comerciante não encontra nenhuma barreira na própria produção ou encontra apenas uma barreira muito elástica. Além da separação M-D e D-M, que deriva da natureza da mercadoria, cria-se aqui, portanto, uma demanda fictícia. Apesar de sua autonomia, o movimento do capital comercial jamais é outra coisa senão o movimento do capital industrial no interior da esfera da circulação. Porém, graças à sua autonomia, ele se move, até certo ponto, de forma independente das barreiras do processo de reprodução e, desse modo, impele este último para além de seus próprios limites. A dependência interna e autonomia externa empurram o capital comercial até um ponto em que a conexão interna se restabelece à força por meio de uma crise”. (MARX, 2017b, p. 347).

Mas essa conexão entre a circulação simples de mercadorias e o capital de comércio de mercadorias é matéria para ser explorada noutro texto. Por ora, espera-se que se tenha demonstrado, mesmo no nível da circulação simples de mercadorias, que a especulação é a alma do capitalismo. Ela nasce da busca incessante dos indivíduos, que atuam de modo privado e independente uns dos outros, para transformar o produto dos seus trabalhos concretos em trabalho para outrem. De forma simples e direta: a especulação é filha da relação entre trabalho concreto e sua metamorfose em trabalho abstrato. A circulação simples de mercadorias é o berço da especulação. Todavia, ela não pode viver aí para sempre. Transpõe todas as barreiras que aí encontra até chegar às suas formas definitivas de existência no sistema de crédito, alavancado, primeiramente, pelo capital comercial e pelo capital portador de juros, e, em seguida, pelo capital fictício. Sem esta última forma de crédito, que permite aos capitalistas apostar alto, diz Marx (2017a, p. 703), “[…] o mundo ainda careceria de ferrovias se tivesse de ter esperado até que a acumulação possibilitasse a alguns capitais individuais a construção de uma estrada de ferro.”

* Francisco Teixeira é professor da Universidade Regional do Cariri (URCA). Autor, entre outros livros, de Pensando com Marx: Uma leitura crítico-comentada de O Capital (Ensaio).

Referências


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