Por FRANCIS WOLFF*
Introdução ao livro recém-lançado
Pensar por figuras
Pode ser que somente se possa pensar dentro de formas herdadas. Mas isso não significa que devemos nos contentar em apenas aceitar a herança. Se pensarmos com a filosofia antiga, talvez seja possível filosofar hoje em dia. Tomar emprestado dos antigos é pegar deles o que continua sendo deles, portanto é tentar lê-los fielmente, adequando nosso olhar histórico sobre eles, mas é também tentar compreendê-los por completo, integrando seu pensamento ao nosso. É esforçar-se para sair da alternativa: história ou filosofia?
A expressão “história da filosofia” é na verdade uma espécie de oximoro. Rigorosamente falando, de que maneira o que é histórico poderia ser filosófico e vice-versa? Se lemos um texto antigo em sua dimensão filosófica, nele encontramos ideias que podemos admitir, teses que podemos adotar, argumentos com os quais podemos concordar, em resumo, levamos a sério a intenção de verdade do texto. Se lemos um texto antigo em sua dimensão histórica, nele descobrimos conceitos explicáveis por sua gênese ou por seu contexto, um questionamento “significativo” de uma cultura ou de uma tradição, um modo de pensar sintomático de um filósofo ou de uma corrente, em resumo, atribuímos sentidos tanto mais “interessantes” ao texto quanto mais eles fogem a nossa própria intenção: a do verdadeiro.
Quanto mais significação histórica o texto adquire, menos ele deixa de ser portador de verdades. E assim que o tomamos em sua dimensão filosófica, anula-se toda a distância histórica. Uma boa ilustração dessa oposição entre duas intenções de leitura, que decompõe em seus dois conceitos distintos a ideia confusa de história da filosofia, é sob certos ângulos o antagonismo entre as leituras hermenêuticas “continentais” e as leituras “analíticas” anglo-saxãs.
Contudo, não devemos opor e muito menos optar entre “historicismo” e philosophia perennis. Tudo é histórico em uma filosofia específica e, no entanto, tudo que é filosófico para nós não pode não se esquivar da história. Sempre nos apropriamos das filosofias historicamente constituídas – e talvez nunca devamos deixar de nos apropriar delas – de um modo que as aparta de seu solo histórico. Mas será que, no fundo, não foi primeiro o nosso “sentido histórico” que as enraizou ali? E esse “sentido histórico”, ao qual fomos destinados desde o século XIX pela própria história, não pertence também, indissociavelmente, ao modo de filosofar que praticamos hoje – se é que ele já não era praticado no passado?
Pelo conceito de “figuras filosóficas emprestadas dos antigos”, nossa pretensão era sair dessas alternativas e encontrar uma maneira de fazer filosofia sem abrir mão das exigências legítimas da história. Como se existissem figuras de pensamento que atravessassem a história. Elas parecem existir para nós em um espaço puramente lógico, mesmo que, notoriamente, apenas tenham sido possíveis por e na história; e podemos tomá-las por invariáveis, mesmo que sua forma de realização seja sempre historicamente variável. Melhor: sempre as tomamos por anistóricas, no instante mesmo que nos aparecem como filosóficas. Logo, essas “figuras” inscritas no pensamento antigo, deve ser possível tomá-las de sua história e fazê-las funcionar filosoficamente na nossa.
As “figuras” não são nem teses, nem argumentos, nem problemáticas, nem conceitos pairando acima da história, no céu das Ideias. Nossa intenção não é catalogar, como fazem os livros escolares, as posições doutrinais (em “-ismo”) diante das Grandes Questões clássicas: a questão da existência de Deus (teísmo, ateísmo, agnosticismo…), a questão da relação entre a alma e o corpo (monismo, dualismo…), a questão do ser (materialismo, idealismo), a questão dos universais (realismo, nominalismo…), a questão da possibilidade do conhecimento (dogmatismo, ceticismo, criticismo…) etc. Nossa intenção não é resgatar as perguntas fundamentais, como se fossem peças de quebra-cabeças propostos desde sempre ao espírito humano, ou contrapor as doutrinas dos filósofos, como se elas interpretassem e reinterpretassem indefinidamente sua gigantomaquia no palco do pensamento puro.
Pelo nome “figuras”, tentamos identificar nos textos filosóficos da Antiguidade formas não percebidas e (se possível) necessárias de oposição, simetria, complementaridade ou incompatibilidade entre conceitos, problemáticas, argumentos ou teses. As figuras são modos de pensar inscritos na história como soluções de problemas que, do nosso ponto de vista histórico, atravessam a história e, por consequência, parecem escapar necessariamente à história. Para um problema historicamente colocado, um número limitado de soluções – solidárias, porém incompatíveis – apresentou-se como possível.
Tentamos evidenciar algumas dessas “vias” paralelas ou “destinos” cruzados, analisá-los à letra e situá-los em seu contexto histórico específico, supondo ao mesmo tempo que podem ser abstraídos de seu contexto histórico como figuras estáveis. Não há dúvida de que existem figuras não percebidas em certas filosofias, e que elas constituem, por assim dizer, o estilo único dessas filosofias; mas também existem conceitos que se constituem um pelo outro e atravessam sub-repticiamente diferentes filosofias. Às vezes há entrelaçamentos de figuras entre duas doutrinas ou entre várias correntes filosóficas. E há também oposições mais fundadoras: dilemas históricos – não formulados e inevitáveis – que levam ora a tradições “doutrinais” incompatíveis, ora à divisão de todo um corpus, ora até mesmo à cisão entre antigos e modernos.
Seja qual for o caso, e a extensão do domínio em que identificamos sua formação, a figura se constitui em concorrência com outras figuras, dentro de uma configuração estável, regida pela interação necessária das simetrias e das oposições que as definem em relação umas às outras. A figura é efeito de sua interação com outras figuras, e consequência de uma escolha que ninguém fez. Em resumo, por figuras filosóficas entendemos esquemas estáveis e anistóricos de soluções simétricas, paralelas ou opostas para problemas filosóficos inscritos na história.
Antes de ilustrar essa abordagem pelos estudos que a justificam, gostaríamos de esclarecer a noção de “figura” por um exemplo que não aparece neles. Trata-se de um exemplo muito peculiar, visto que nele a ideia de “figura de pensamento” é aplicada a ela mesma, ou melhor, ela é produzida por sua própria aplicação. A própria noção filosófica de figura de pensamento pode ser tomada como uma figura histórica do pensamento grego.
Pense-se na questão (filosófica) da relação do conhecimento com seus objetos. Admita-se como legítimo que uma história das ideias (simplista) permite mostrar que, diante dessa questão, há três posições doutrinais possíveis, e que esses três tipos de resposta se distinguem claramente no pensamento grego clássico. A primeira “figura” levaria o nome escolar de “platonismo”: as “Ideias” são os únicos objetos verdadeiros de conhecimento, porque são as únicas realidades verdadeiras; elas são separadas do sensível, existem em si mesmas, eternamente etc.
A segunda figura se denominaria “nominalismo”, e não seria difícil associá-la ao nome de Antístenes: as Ideias não existem, são ilusões, há apenas nomes gerais que utilizamos por comodidade para falar das coisas singulares, que são as únicas realidades existentes, mas cuja diversidade infinita ultrapassa nossas possibilidades limitadas de conhecimento imperfeito e geral etc.
A terceira figura se chamaria “aristotelismo”: as Ideias (ou “formas”) existem, são os objetos naturais do pensamento e do conhecimento, mas elas não existem separadas do sensível, porque o que existe é sempre irremediavelmente um “isso” particular, no qual o pensamento pode distinguir o que é dizível, conhecível e fixo (a “forma”) do que não o é (a “matéria”).
Suponhamos que esse exemplo nos permita evidenciar na história do pensamento grego três figuras de pensamento da relação do conhecimento (ou do discurso) com seus objetos. Pois bem, sustentar que há figuras de pensamento na história da filosofia é, de certo modo, ser aristotélico em história da filosofia, na medida em que o aristotelismo é uma das figuras de pensamento que acabamos de definir. Sustentar que há figuras de pensamento na história é sustentar que há “formas” de pensamento, que são os objetos mesmos que temos de pensar, isto é, dizer e conhecer; mas que essas formas não existem separadas de sua matéria, isto é, de um momento histórico; todavia, só podemos filosoficamente conhecê-las, e dizê-las, como “formas” filosóficas separáveis de sua matéria histórica.
Logo, em termos analógicos, haveria três figuras de pensamento da relação do pensamento (filosófico) com suas realizações históricas, assim como haveria três figuras possíveis da relação do conhecimento com seus objetos. De um lado, algo semelhante a um “platonismo”: há “ideias” eternas, a filosofia é perene, ela existe fora da história, e a tarefa do pensamento consiste em responder a questões que são elas próprias trans-históricas mediante teses ou conceitos que são puro produto do pensamento puro. De outro lado, algo semelhante a um “nominalismo” ou “historicismo”: tudo é história, não há “ideias” que escapem dela, há apenas nomes herdados, doutrinas em número infinito ou sistemas de pensamento que se explicam por suas condições históricas, e a tarefa do pensamento consiste em libertar-se de toda ilusão de uma filosofia pura e situar novamente cada pensamento em seu tempo, fora do qual ela não é nada.
Enfim, o “aristotelismo” seria a figura de pensamento pela qual se pensa por figuras (históricas) de pensamento (filosófico): não há pensamento fora da história, a qual é sua condição de existência e seu único modo de realidade possível e, nesse sentido, “tudo é história”, porque o que existe são somente pensamentos particulares, sempre diferentes e sempre históricos; mas a única maneira que temos de conhecer, de dizer, de pensar esses pensamentos é pensá-los como separáveis de seu contexto histórico, em uma espécie de gramática pura das formas filosóficas. Essas formas não são em si separadas, mas são necessariamente pensáveis como separáveis e só são pensáveis para nós como separáveis. Por isso é que podemos emprestá-las do pensamento antigo e oferecê-las como objeto à filosofia.
As figuras de pensamento são, portanto, “formas” antes de tudo: não “ideias” nem simples “nomes”. A prova de que são históricas e não existem fora da história é que encontramos seu conceito no pensamento antigo sob o nome de aristotelismo. E a prova de que são formas filosóficas que nos permitem pensar fora da história apenas pela qual elas existem é que, mesmo que seja de um ponto de vista necessariamente histórico que nós as pensemos, é de modo necessariamente separado da nossa história que nós nos apropriamos delas – precisamente como “formas”.
As figuras são formas nesse sentido. Então por que não chamá-las “formas de pensamento”?
Porque elas não são apenas isso. Em uma configuração dada, há um pequeno número de figuras, mas haveria um número infinito de formas. A particularidade de cada uma dessas figuras é ser uma via possível para o pensamento; e a particularidade de uma configuração é oferecer algumas poucas figuras alternativas e incompatíveis. “Pensar por figuras” significa, em primeiro lugar, encontrar momentos, ou melhor, lugares críticos na história que engendraram diferentes figuras de sua resolução. Mas “pensar por figuras” significa também que, em cada uma dessas bifurcações, há apenas algumas figuras possíveis, apenas algumas grandes vias propostas pela história, dentre as quais o pensamento deve escolher hoje e sempre.
“Pensar por figuras” significa, portanto, saber que o número de soluções é a priori limitado pelas regras da geometria que definem, em uma configuração dada, tudo que se oferece como possível ao pensamento. Isso não implica que o pensamento esteja condenado a girar em torno de si mesmo e se repetir, tampouco que não é mais capaz de inventar conceitos, assombrar-se com o inesperado ou tentar experimentar figuras novas. É sempre possível pensar de maneira diferente, porque é sempre do alto de um pensamento novo e a pretexto de um modo de pensamento a se criar que a descoberta de figuras antigas (e trans-históricas) se torna possível. As figuras não são na história; elas nos são dadas na história apenas na medida em que as pensamos.
Nos nove capítulos que formam este livro, tentamos identificar algumas das encruzilhadas da história do pensamento grego e as configurações problemáticas correspondentes. Em cada configuração, distinguimos várias vias históricas que analisamos concomitantemente como figuras filosóficas. Fazer figuras filosóficas (contemporâneas ou atemporais) de vias antigas é o que podemos chamar emprestá-las dos antigos.
Dividimos essas figuras em três grupos: “figuras do ser”, “figuras do homem” e “figuras do discípulo”. O ser é o objeto suposto primordial de toda filosofia antiga, o homem é o objeto que atravessa sub-repticiamente todas essas filosofias, o modo pelo qual elas são transmitidas aos discípulos revela limpidamente a singularidade de cada uma. Acrescentamos a esses três tipos de figuras, à guisa de conclusão, as “figuras da racionalidade”, se é verdade que “a” razão é o principal empréstimo moderno tomado do logos antigo, e se é verdade sobretudo que é pelo que comportam de “racional” que as vias históricas podem se transformar em figuras filosóficas. Veremos adiante que essas figuras, mesmo sendo racionais, continuam plurais e rivais.
*Francis Wolff é professor de filosofia na École Normale Supérieure de Paris. Autor, entre outros livros, de Três utopias contemporâneas (Unesp).
Referência
Francis Wolff. Pensar com os antigos: uma riqueza de todo o sempre. São Paulo, Unesp, 2021, 324 págs.