Por MICHAEL ROBERTS*
É a divisão de classes que é a causa fundamental desta policrise, assim como do empenho cegos nas atividades correntes
“Policrise” é, no momento, a palavra da moda na esquerda. A palavra expressa o encontro e o entrelaçamento de várias crises simultâneas: econômica (inflação e recessão); ambiental (clima e pandemia); e geopolítica (guerra e divisões internacionais). Portanto, não é surpresa que o último Relatório de Desenvolvimento Humano (RDH) da ONU seja tão chocante. De acordo com ele, o mundo está mais pessimista do que em qualquer ponto da história moderna, ou seja, desde antes da Primeira Guerra Mundial.
O Relatório de Desenvolvimento Humano apresentou uma análise das tendências linguísticas presentes em textos literários nos últimos 125 anos. Revelou assim que ocorreu um aumento acentuado nas expressões que refletem “distorções cognitivas associadas à depressão e outras formas de sofrimento mental”. Nas últimas duas décadas, a linguagem que reflete percepções excessivamente negativas sobre o mundo e sobre seu futuro se expandiu. De fato, os níveis de angústia atuais não têm precedentes, pois superam o que ocorreu em todos os eventos traumáticos do passado.
O que também é revelador é que as visões negativas sobre o mundo começaram a aumentar na virada do século – ou seja, antes da Grande Recessão de 2008. Esse aumento coincide com uma percepção de que as principais economias do mundo entraram no que chamo de uma nova “longa depressão”, a terceira na história do capitalismo moderno; antes dela, registram-se a depressão de 1873-95 e a Grande Depressão da década de 1930.
A intensidade das visões negativas sobre as perspectivas para a humanidade nunca foi tão alta – muito mais alta do que em qualquer uma das duas guerras mundiais do século XX. Estamos vivendo uma combinação de incertezas: há uma depressão econômica; os rendimentos reais estagnam ou até caem; a pobreza aumenta junto com o aumento da desigualdade; faltam investimentos para aumentar as forças produtivas e resolver o desastre ambiental que agora envolve o mundo como um todo. Diante desse quadro, ao invés de cooperação global dos governos para resolver a “policrise”, tem-se um conflito crescente entre as nações, tanto no plano econômico quanto no plano militar.
Eis como Achim Steiner, administrador do Programa de Desenvolvimento das Nações Unidas (PNUD) apresentou o Relatório de Desenvolvimento Humano de 2022:
“Estamos vivendo tempos incertos. A pandemia de Covid-19, agora em seu terceiro ano, continua gerando novas variantes. A guerra na Ucrânia reverbera em todo o mundo, causando imenso sofrimento humano, incluindo uma crise de custo de vida e de inflação. Os desastres climáticos e ecológicos ameaçam o mundo diariamente”.
“Camadas de incerteza estão se acumulando e interagindo para perturbar nossas vidas de maneiras sem precedentes. As pessoas já enfrentaram doenças, guerras e perturbações ambientais antes. Mas a confluência de pressões planetárias desestabilizadoras com desigualdades crescentes, transformações sociais abrangentes para aliviar essas pressões e polarização generalizada apresentam fontes novas, complexas e interativas de incerteza para o mundo e todos nele”.
“As pessoas ao redor do mundo agora estão dizendo que se sentem cada vez mais inseguras”. Seis em cada sete pessoas em todo o mundo relataram se sentirem inseguras sobre muitos aspectos de suas vidas, mesmo antes da pandemia de Covid-19. E isso tem consequências políticas: “Não é de se admirar, então, que muitas nações estejam cedendo às tensões polarizadoras, ao extremismo político e à demagogia – tudo isso intensificado pelas mídias sociais, pela inteligência artificial e por outras tecnologias poderosas?”
Steiner apontou, também, que “algo impressionante ocorreu com o valor do Índice de Desenvolvimento Humano (IDH) global já que ele caiu por dois anos consecutivos após a pandemia de Covid-19”.
A queda do IDH global aconteceu logo após a adoção da Agenda 2030 para o Desenvolvimento Sustentável e do Acordo de Paris! Era esperado, mas não houve qualquer progresso. Todos os anos, diferentes países experimentam quedas em seus respectivos valores de IDH. Em 2021 e 2022, o IDH caiu de modo impressionante em 90% dos países; ora, essa queda, no que se refere ao número de países que experimentou reversões, excedeu em muito aquilo que ocorreu na crise financeira global. O ano passado assistiu a alguma recuperação do nível global, mas foi parcial e desigual: a maioria dos países com IDH muito elevado registou melhorias, enquanto que a maioria dos restantes experimentou declínios contínuos.
Pelo menos 15 milhões de “vidas desnecessárias” foram perdidas com a pandemia de COVID, principalmente em países de baixa e média renda. Mas mesmo os EUA viram sua expectativa de vida cair para o nível mais baixo em 26 anos. De fato, a expectativa de vida dos EUA está agora abaixo da China!
“A pandemia tem sido um lembrete doloroso de como as quebras de confiança e a falta de cooperação, entre e dentro das nações, restringem tolamente o que se pode alcançar juntos” – diz o Relatório de Desenvolvimento Humano.
Novas vacinas foram desenvolvidas para combater o COVID em tempo recorde, incluindo algumas baseadas em tecnologias revolucionárias. Elas salvaram cerca de 20 milhões de vidas em um ano. Mas os mais pobres do mundo receberam menos apoio médico porque o acesso à vacina é altamente desigual. Nos países de alta renda, três em quatro pessoas foram vacinadas contra o novo coronavírus pelo menos com uma dose até julho de 2022. Já nos países de baixa renda, apenas uma em cinco pessoas receberam pelo menos uma dose de vacina até a mesma data.
A COVID não foi embora e, por isso, os governos e as pessoas decidiram viver (e morrer) com essa pandemia. As consequências permanecem e até pioraram. Bilhões de pessoas agora enfrentam a maior crise de custo de vida em uma geração. Elas já estavam lutando contra a insegurança alimentar, em grande parte devido às desigualdades de riqueza e poder; como se sabe, tais diferenças determinam o direito à alimentação. Os bloqueios da cadeia de suprimentos global permanecem, contribuindo para o aumento da inflação em todos os países a taxas não vistas em décadas.
Quanto ao clima, o Relatório lembra que se tem visto, nos últimos anos, temperaturas recordes, incêndios e tempestades em todo o mundo. O último Relatório do Painel Internacional sobre Mudanças Climáticas se constitui como um “código vermelho para a humanidade”. Em essência, à medida que a ciência avança, os modelos climáticos estão obtendo melhor precisão; em consequência, eles preveem com mais certeza os desastres futuros.
“Provocadas pelo Antropoceno, a crise climática avança juntamente com outras mudanças ruins em nível planetário”: o colapso da biodiversidade é uma delas. Mais de 1 milhão de espécies de plantas e animais estão em extinção. “Não se tem ainda a ideia de como viver em um mundo sem, por exemplo, uma abundância de insetos. Isso não ocorreu por cerca de 500 milhões de anos, desde quando surgiram as primeiras plantas terrestres do mundo. E isto não é injustificado. Sem uma abundância de insetos polinizadores, enfrentar-se-á o difícil desafio de cultivar alimentos e outros produtos agrícolas em grande escala”.
A policrise está afetando o bem-estar mental da humanidade por meio de eventos traumatizantes, doenças físicas, ansiedade climática geral e insegurança alimentar. “Os efeitos que isso tem sobre as crianças em particular são profundos, pois alteram o desenvolvimento do cérebro e do corpo, especialmente em famílias de níveis de renda mais baixos; eis que diminuem o potencial que as crianças podem alcançar na vida”. As desigualdades no desenvolvimento humano são perpetuadas entre as gerações: “não é difícil ver como a confluência de angústia mental, desigualdade e insegurança fomentam um ciclo intergeracional igualmente prejudicial, o qual se mantem no desenvolvimento humano”.
Com a depressão econômica e o desastre ecológico vêm a incerteza, a insegurança e a polarização política. Um grande número de pessoas se sente frustrado e alienado em relação aos sistemas políticos. Os conflitos armados também estão em alta. Pela primeira vez, mais de 100 milhões de pessoas foram deslocadas à força, a maioria dentro de seus próprios países.
O que pode ser feito? A ONU oferece seu modelo ISI para um futuro mais esperançoso: investimento, segurança e inovação.
Mas a inovação e as novas tecnologias, admite a ONU, são facas de dois gumes. “A inteligência artificial criará e destruirá postos de trabalho, causando uma tremenda perturbação. A biologia sintética abre novas fronteiras na saúde e na medicina, mas levanta questões fundamentais sobre o que significa ser humano”. De fato, essas novas tecnologias aumentarão a desigualdade? Reduzirão ou ampliarão as possibilidades de trabalho? Parece que não!
Mas há também o investimento. O relatório sobre o desenvolvimento humano fala em investimento público, principalmente no meio ambiente. Mas não diz nada sobre os interesses escusos que impedem sorrateiramente que esse investimento ocorra de fato. Finalmente, há a segurança: mais proteção dos direitos humanos, acesso a serviços básicos e renda mínima e mais responsabilidade democrática. Nenhum desses elementos básicos de segurança existem para a maioria dos quase 8 bilhões de pessoas no mundo.
O relatório da ONU é devastador no exame que faz da condição humana no século XXI. Mas não oferece, entretanto, nenhuma explicação convincente de por que existe uma “policrise”. Achim Steiner diz que “o herói e o vilão nessa história terrível, cheia de incertezas, com que se depara hoje a humanidade são a mesma coisa: escolhas humanas”.
Realmente, se fossem escolhidos outros modos de fazer as coisas, a situação seria diferente. Então, por que a humanidade não escolhe um caminho diferente? Bem, isso ocorre – diz ele – porque “nem todas as escolhas são iguais. Algumas – indiscutivelmente as mais relevantes para o destino de nossa espécie – são impulsionadas pela inércia institucional e cultural, pelas gerações empenhadas nas atividades correntes”.
Inércia institucional e cultural? A verdadeira razão reside na realidade no fato de que apenas uma pequena porcentagem da humanidade pode escolher; o resto não tem poder de escolha (pelo menos não individualmente). É a divisão de classes, inerente ao capitalismo, entre os que possuem e controlam e os que devem trabalhar para eles e obedecer, que é a causa fundamental desta policrise, assim como do empenho cegos nas atividades correntes.
*Michael Roberts é economista. Autor, entre outros livros, de The great recession: a marxist view.
Tradução: Eleutério F. S. Prado.
Publicado originalmente no site The next recession blog.
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