Portugal – o colapso da geringonça

Imagem: Lisa
Whatsapp
Facebook
Twitter
Instagram
Telegram

Por BOAVENTURA DE SOUSA SANTOS*

A vitória do PS e a derrota da esquerda à esquerda nas eleições portuguesas

Em Portugal, a esquerda à esquerda é constituída pelos partidos à esquerda do Partido Socialista (PS), ou seja, o Partido Comunista (PCP) e o Bloco de Esquerda (BE). Nas eleições de 30 de Janeiro de 2022, o PS ganhou as eleições com maioria absoluta. Portugal será a partir de agora o único país europeu com um governo de maioria absoluta de um partido de esquerda, o Partido Socialista.

Os dois partidos à sua esquerda tiveram os piores resultados de sempre. O PCP que tinha doze deputados no parlamento passa a ter metade e o BE que tinha dezenove deputados passa a ter cinco. O BE passa de terceira força política para quinta e o PCP, de quarta para sexta. As posições destes partidos passaram a ser ocupadas por forças de ultra-direita, uma de inspiração fascista, (Chega), agora terceira força política, da família do Vox e da extrema-direita europeia e mundial, e uma de recorte hiper-neoliberal, darwinismo social puro e duro, ou seja, sobrevivência do mais forte (Iniciativa Liberal), agora quarta força política.

Os resultados eleitorais mostram que a esquerda à esquerda do PS perdeu a oportunidade histórica que granjeou depois de 2015 ao construir uma solução de governo de esquerda que ficou conhecida por geringonça (PS, BE, PCP), uma solução que travou a austeridade imposta pela solução neoliberal da crise financeira de 2008 e lançou o país numa recuperação econômica e social modesta mas consistente. Esta solução começou a precarizar-se em 2020 e colapsou em finais de 2021 com a rejeição do orçamento apresentado pelo governo. Foi isso que levou às eleições antecipadas de 30 de janeiro.

Levará tempo até que estes partidos de esquerda tenham outra oportunidade e oxalá que então se lembrem dos desaires anteriores e aprendam a não os repetir. Serão certamente outros líderes e é de esperar que sejam também outras as políticas. A análise mais aprofundada dos resultados terá de vir depois. Por agora, podemo-nos ficar pelo mais evidente. É preciso distinguir entre o BE e o PCP. Os dois partidos têm um passado remoto comum, a fratura do movimento operário no início do século XX entre socialistas e comunistas. O PCP pertence à facção comunista e o BE, às divergências que ocorreram posteriormente no seio desta facção em resultado da evolução da Revolução Russa de 1917.

O que une os dois partidos e é mais relevante para entender as causas profundas do seu desaire nestas eleições é que para ambos o Partido Socialista é, no fundo, um partido de direita, uma direita que se disfarça de esquerda, mas que verdadeiramente não o é. Esquerda verdadeira são eles. Os seus dirigentes não o dizem, mas pensam-no. Não imaginam considerar a vitória do PS nestas eleições como uma vitória de esquerda.

O PCP tem razões históricas para esta atitude, pois os comunistas e a sua base privilegiada (o movimento operário) foram muitas vezes vítimas das políticas socialistas e, em parte por isso, esta atitude anti-socialista é largamente partilhada entre dirigentes, militantes e simpatizantes. No caso do BE a história é mais ambígua, tal partilha não existe nos mesmos termos e isso foi evidente desde a fundação do partido. Ambos os partidos têm uma tradição de pensamento vanguardista. Quando a teoria colapsa ante a realidade (por exemplo, colapso eleitoral) a culpa é da realidade, nunca da teoria.

O patético discurso de Catarina Martins na noite das eleições foi prova cabal disso. E lembremos que, em 2011, o mesmo desprezo pela realidade levou o Bloco de Esquerda a chumbar o Plano de Estabilidade e Crescimento do governo socialista (José Sócrates), abrindo as portas para a direita mais anti-social que o país já conheceu. Desta vez, é mérito incondicional do PS de António Costa ter evitado a emergência de uma geringonça de direita. Mesmo assim, a porta para a extrema direita ficou mais que entreaberta.

No contexto português, a queda do Partido Comunista é estrutural porque está ligada ao declínio dos sindicatos, a base da implantação social do partido. O PCP é um dos únicos partidos comunistas europeus que não se renovou depois da queda do muro de Berlim e por isso ficou refém da evolução da sua base social organizada, os sindicatos. O declínio destes arrasta o declínio do partido. A não renovação do PCP foi, aliás, uma das razões da emergência e do êxito do Bloco de Esquerda. A tragédia do BE tem sido a de, em vez de acentuar a sua diferença, deixar que ela se vá diluindo. Nestas eleições, ninguém notou qualquer diferença relevante entre o discurso bloquista e o comunista. Mas a queda do BE explica-se pela acumulação de outros erros nos últimos anos.

A pandemia conferiu uma nova dimensão à fragilidade humana, durou o suficiente para não ser considerada um acidente menor e atingiu particularmente as populações envelhecidas, sobretudo as habituadas a um mínimo de proteção social que, de repente, pareceu precioso, não por ser satisfatório, mas por existir apesar das deficiências. Aumentou exponencialmente o desequilíbrio entre o medo e a esperança. Este desequilíbrio a favor do medo criou duas emoções coletivas distintas: o temor da precariedade acrescida e o desespero vivido como ressentimento.

A primeira emoção alimentou o desejo da estabilidade e foi captada quase totalmente pelo Partido Socialista. A segunda emoção alimentou o desejo do autoritarismo necessário para partir a loiça e foi captado pela ultradireita sob duas formas, o autoritarismo do Estado que, em Portugal, equivale ao saudosismo salazarista (Chega) ou o autoritarismo do capital e do darwinismo social, ou seja, a sobrevivência do mais forte (IL). Nestas circunstâncias é evidente que o Bloco de Esquerda só podia estar do lado da estabilidade para a poder fortalecer e qualificar. Tal como fez brilhantemente o Livre. Em vez disso, jogou tudo na aventura de uma terceira emoção coletiva para a qual não havia base social.

O BE não entendeu os sinais do seu eleitorado porque o seu pensamento vanguardista não lhe permitiu descer até onde os cidadãos discutem, nos seus próprios termos, os seus medos e as suas esperanças. Não os escutou e se algum impacto teve foi o de os fazer suspeitar que o seu reforço eleitoral significaria mais instabilidade. A dirigente bloquista passou a primeira metade da campanha a justificar a decisão da rejeição do Orçamento e a segunda metade a parecer querer pedir desculpa por tê-lo feito. Que credibilidade pode ter tal dirigente?

Acresce que se o Bloco de Esquerda tivesse aprovado o Orçamento do Estado, este poderia ter sido melhorado na especialidade e em boa parte graças às propostas tecnicamente competentes do BE. Em vez disso acabou por objetivamente contribuir para eventualmente virmos a ter um OE menos bom do que aquele que teríamos se não tivesse havido eleições. Acresce que, ao auto-infligir-se esta derrota, deixou o PS solto para ser menos de esquerda do que que gostaríamos que fosse. O partido que consegue dar simultaneamente dois tiros nos dois pés só por milagre não cairia.

*Boaventura de Sousa Santos é professor catedrático da Faculdade de Economia da Universidade de Coimbra. Autor, entre outros livros, de O fim do império cognitivo (Autêntica).

 

Veja neste link todos artigos de

AUTORES

TEMAS

10 MAIS LIDOS NOS ÚLTIMOS 7 DIAS

Lista aleatória de 160 entre mais de 1.900 autores.
Michael Löwy Rodrigo de Faria Tales Ab'Sáber Flávio Aguiar Renato Dagnino Dennis Oliveira Afrânio Catani Bruno Machado Gerson Almeida José Costa Júnior Salem Nasser Ricardo Fabbrini Kátia Gerab Baggio André Márcio Neves Soares João Lanari Bo Marilia Pacheco Fiorillo Julian Rodrigues Everaldo de Oliveira Andrade Celso Frederico Tadeu Valadares Juarez Guimarães Airton Paschoa Ricardo Abramovay Thomas Piketty Manuel Domingos Neto Henri Acselrad Bento Prado Jr. Marjorie C. Marona Luiz Renato Martins Vanderlei Tenório Andrés del Río Paulo Fernandes Silveira Vinício Carrilho Martinez Vladimir Safatle Jorge Luiz Souto Maior Michel Goulart da Silva Flávio R. Kothe Lucas Fiaschetti Estevez Ricardo Musse Leonardo Avritzer Mário Maestri Otaviano Helene Lincoln Secco Ladislau Dowbor Gilberto Lopes Lorenzo Vitral Manchetômetro Remy José Fontana Samuel Kilsztajn Francisco de Oliveira Barros Júnior Slavoj Žižek Anselm Jappe Ronald Rocha Liszt Vieira José Geraldo Couto Valerio Arcary Claudio Katz Tarso Genro Luciano Nascimento Ari Marcelo Solon Bernardo Ricupero João Sette Whitaker Ferreira Caio Bugiato Luis Felipe Miguel Boaventura de Sousa Santos Luiz Marques Luiz Carlos Bresser-Pereira Eugênio Bucci Luís Fernando Vitagliano Eugênio Trivinho Alexandre Aragão de Albuquerque André Singer José Micaelson Lacerda Morais Berenice Bento Paulo Capel Narvai Eleutério F. S. Prado Paulo Martins Ricardo Antunes Francisco Fernandes Ladeira Antônio Sales Rios Neto João Carlos Salles Sandra Bitencourt Eduardo Borges José Raimundo Trindade Carla Teixeira Alexandre de Freitas Barbosa Milton Pinheiro Benicio Viero Schmidt Armando Boito Jorge Branco Carlos Tautz Alexandre de Oliveira Torres Carrasco Henry Burnett Osvaldo Coggiola Rafael R. Ioris Ronald León Núñez Gabriel Cohn Paulo Nogueira Batista Jr Rubens Pinto Lyra Bruno Fabricio Alcebino da Silva Luiz Eduardo Soares Marcus Ianoni Plínio de Arruda Sampaio Jr. Marcelo Guimarães Lima Fábio Konder Comparato Alexandre de Lima Castro Tranjan Dênis de Moraes João Paulo Ayub Fonseca Denilson Cordeiro Fernão Pessoa Ramos Heraldo Campos Antonio Martins Francisco Pereira de Farias Leonardo Sacramento Annateresa Fabris Antonino Infranca Yuri Martins-Fontes Ronaldo Tadeu de Souza Priscila Figueiredo Marcos Aurélio da Silva Daniel Afonso da Silva Chico Whitaker Daniel Brazil Paulo Sérgio Pinheiro Marcelo Módolo Luiz Roberto Alves Luiz Bernardo Pericás Chico Alencar Daniel Costa Atilio A. Boron João Adolfo Hansen José Luís Fiori Valerio Arcary Eleonora Albano Alysson Leandro Mascaro Marcos Silva Elias Jabbour Luiz Werneck Vianna Jean Marc Von Der Weid Celso Favaretto José Dirceu Eliziário Andrade João Feres Júnior Érico Andrade Sergio Amadeu da Silveira Matheus Silveira de Souza Jean Pierre Chauvin Igor Felippe Santos Michael Roberts Gilberto Maringoni Leonardo Boff Walnice Nogueira Galvão Fernando Nogueira da Costa Mariarosaria Fabris João Carlos Loebens Andrew Korybko Marilena Chauí José Machado Moita Neto Maria Rita Kehl Leda Maria Paulani

NOVAS PUBLICAÇÕES