PT 40 anos – mais necessário do que nunca

Imagem: Elyeser Szturm
image_pdf

Por Flávio Aguiar*

Apesar de todas as dificuldades e da ofensiva concentrada da extrema-direita, orquestrada pelos Estados Unidos, a América Latina ainda é o espaço onde pode vicejar uma semeadura antineoliberal, e há um empenho de resistência neste sentido

Tenho lido constantemente comentários desanimadores sobre a conjuntura. São aqueles que repetem sistematicamente a ladainha: “a esquerda acabou”; “o PT perdeu o prazo de validade”; “a oposição não faz nada”; “é necessário refundar o PT”; “é necessário fundar outra esquerda”, etc. Uma variante deste tipo de comentário é o que nega, no fundo, que a trajetória petista tenha tido qualquer importância.

Outro dia assisti algumas mesas acadêmicas sobre a situação brasileira, no Instituto Latino-Americano da Universidade Livre de Berlim. Um dos brasileiros palestrantes afirmou, entre outras coisas, que era melhor que de momento a direita permanecesse no governo, “porque a esquerda não está preparada para tanto”. Completou dizendo que a esquerda (o PT) “nunca teve visão geopolítica e estratégica sobre o que está acontecendo no mundo”.

A impressão que fica de tudo isto é a de que os 40 anos do PT passaram em branco pela história brasileira. Não houve protagonismo social, nem nacional, nem internacional. Celso Amorim (peço licença para citar o nome, como um exemplo) não foi, em certo momento, considerado o melhor chanceler do mundo. O Brasil não foi uma liderança na questão ambiental e no acordo de Paris, hoje renegado por Donald Trump e seus discípulos.

Não fiquemos apenas com o PT: a liderança brasileira em termos ambientais começou durante o governo de Fernando Henrique. O Itamaraty já foi, dentre as instituições de política internacional, uma das mais respeitadas do mundo, coisa que vem desde o tempo e da tradição de Rio Branco (até mesmo de antes), tradição esta hoje enxovalhada pelo fundamentalismo ideológico, pela mediocridade e pelo complexo de capacho que tomaram conta de nossa política externa.

Outra impressão que fica a partir destes comentários é a de que um partido político é como um coelho que se tira da cartola, algo que se funda num passe de mágica ou estalar de dedos. Ora, o que se vê, olhando-se a história pregressa, é que a criação e a trajetória dos partidos políticos das esquerdas brasileiras sempre estiveram conectadas a profundas movimentações tectônicas no mundo brasileiro do trabalho e também a amplas articulações internacionais.

Foi assim com os Partidos Comunistas, o Brasileiro e o do Brasil (e suas dissidências e complementos posteriores). Foi assim com o antigo PTB, por exemplo. Foram carreados pela criação, existência e movimentação de um proletariado urbano. Tão forte foi essa onda que em certo momento ela chegou a arrastar para a esquerda um político conservador como Getúlio Vargas, que terminou morrendo como um mártir do povo brasileiro. E isto também é apenas um exemplo.

No caso do PT, e também de suas dissidências posteriores, é impossível separá-lo de novas transformações na organização do mundo do trabalho brasileiro, durante e depois da ditadura de 1964. Também é impossível separá-lo da criação da CUT (e também de suas dissidências posteriores) e do MST. E hoje os ventos de renovação que atingem o Psol (também por exemplo) são inseparáveis de novas facetas do universo social, como o Movimento dos Sem Teto, e de modificações na paisagem estudantil brasileira, em grande parte devido a políticas inclusivas desenvolvidas pelos governos petistas nas esferas federal, estaduais e municipais.

Dentro deste quadro extremamente complexo o PT teve uma trajetória excepcional, tornando-se, nos seus 40 anos de existência, não só uma referência histórica nacional, como também internacional. E teve, desde sempre, no governo e fora dele, fortes conexões internacionais – e uma liderança sintonizada com isso.

Brizola e o seu PDT articularam-se, num certo momento, com a Internacional Socialista. O PSDB, na verdade, teve um engajamento constante com o Partido Democrata dos Estados Unidos. O PT e a liderança de Lula conseguiram manter uma ligação orgânica com a socialdemocracia europeia. Se hoje esta ligação está esgarçada, isto se deve menos a uma falta de visão geopolítica de lideranças petistas e do próprio Lula, e muito mais ao fato de que a maioria dos partidos do socialismo e da socialdemocracia europeia ou derreteu (Alemanha, França, Reino Unido) ou descambou para a direita (Escandinávia). Os Verdes, usualmente, estão rachados entre centro-esquerda e centro-direita. Portugal e Espanha são hoje raras e honrosas exceções no cenário do continente europeu, bem como a liderança socialdemocrata (pasmem!) do Papa Francisco!

É óbvio que em sua trajetória o PT teve falhas, lacunas e mesmo erros de monta. Dou alguns exemplos. A política de comunicação do partido e a dos governos Lula e Dilma, usualmente, tendeu ao desastre, também com raras exceções. Nem o partido nem os governos enfrentaram o desafio da democratização do universo das comunicações no Brasil. Esta acabou acontecendo parcialmente devido às inúmeras iniciativas da mídia alternativa, que nem sempre contaram com o merecido e devido apoio por parte do partido e dos governos (que deveriam, neste particular, seguir a orientação da UNESCO em favor da diversificação midiática).

Outro exemplo: ao longo destes 40 anos, o PT terminou enveredando por um caminho semelhante ao de seus congêneres socialdemocratas europeus: tornou-se um partido com inclinação “geriátrica”, fechado à renovação. Não conseguiu manter uma política consistente dirigida à juventude. E esta é uma lacuna grave, pois, como dizia o padre Antonio Vieira no século XVII, por motivos diferentes dos nossos de hoje, “a história mais importante é a história do futuro”.

Ao mesmo tempo, o PT cometeu, ao lado de suas políticas afirmativas (onde se inclui a do Orçamento Participativo), seu talvez maior acerto: ampliando extraordinariamente uma marca do último Vargas (o de 1951-1954), criou condições para que milhões de brasileiros tivessem acesso ao principal de todos os direitos sociais, que é o conceito de que todo e qualquer cidadão “tem direito a ter direitos”. Não é pouca coisa, num país tão desigual e de uma “elite” econômica tão vendida ao estrangeiro, tão anti-povo e tão voltada a ver direitos como privilégios de berço e classe como a nossa.

Vivemos um momento muito difícil no mundo inteiro. Na Europa prevalece a hegemonia – certo que capenga – dos planos de austeridade e de inspiração neoliberal. Nos Estados Unidos, ao lado da política evangelista, pentecostal e gorila de Donald Trump, Mike Pence e Mike Pompeo, o establishment democrata não promete nada muito melhor para nós. E resiste tenazmente a Bernie Sanders. A Ásia se debate entre a política preconceituosa e direitista de Narendra Modi, o autoritarismo chinês, e o conservadorismo entranhado no Japão.

Na Oceania a voz progressista de Jacinda Ardern é uma voz isolada. Na África reinam o autoritarismo e o pandemônio. O Oriente Médio é uma catástrofe permanente. A Rússia orquestra seu neoczarismo em estatal mundial. Apesar de todas as dificuldades e da ofensiva concentrada da extrema-direita, orquestrada pelos Estados Unidos, a América Latina ainda é o espaço onde pode vicejar uma semeadura antineoliberal, e há um empenho de resistência neste sentido, como aconteceu nas décadas que antecederam o golpe de 2016 no Brasil. Para tanto, a presença e liderança do PT permanecem fundamentais.

*Flávio Aguiar é jornalista, escritor, e professor aposentado de literatura brasileira na USP.

Veja todos artigos de

MAIS LIDOS NOS ÚLTIMOS 7 DIAS

1
A rede de proteção do banco Master
28 Nov 2025 Por GERSON ALMEIDA: A fraude bilionária do banco Master expõe a rede de proteção nos bastidores do poder: do Banco Central ao Planalto, quem abriu caminho para o colapso?
2
A poesia de Manuel Bandeira
25 Nov 2025 Por ANDRÉ R. FERNANDES: Por trás do poeta da melancolia íntima, um agudo cronista da desigualdade brasileira. A sociologia escondida nos versos simples de Manuel Bandeira
3
O filho de mil homens
26 Nov 2025 Por DANIEL BRAZIL: Considerações sobre o filme de Daniel Rezende, em exibição nos cinemas
4
A arquitetura da dependência
30 Nov 2025 Por JOÃO DOS REIS SILVA JÚNIOR: A "arquitetura da dependência" é uma estrutura total que articula exploração econômica, razão dualista e colonialidade do saber, mostrando como o Estado brasileiro não apenas reproduz, mas administra e legitima essa subordinação histórica em todas as esferas, da economia à universidade
5
A disputa mar e terra pela geopolítica dos dados
01 Dec 2025 Por MARCIO POCHMANN: O novo mapa do poder não está nos continentes ou oceanos, mas nos cabos submarinos e nuvens de dados que redesenham a soberania na sombra
6
Colonização cultural e filosofia brasileira
30 Nov 2025 Por JOHN KARLEY DE SOUSA AQUINO: A filosofia brasileira sofre de uma colonização cultural profunda que a transformou num "departamento francês de ultramar", onde filósofos locais, com complexo de inferioridade, reproduzem ideias europeias como produtos acabados
7
Raduan Nassar, 90 anos
27 Nov 2025 Por SABRINA SEDLMAYER: Muito além de "Lavoura Arcaica": a trajetória de um escritor que fez da ética e da recusa aos pactos fáceis sua maior obra
8
A feitiçaria digital nas próximas eleições
27 Nov 2025 Por EUGÊNIO BUCCI: O maior risco para as eleições de 2026 não está nas alianças políticas tradicionais, mas no poder desregulado das big techs, que, abandonando qualquer pretensão de neutralidade, atuam abertamente como aparelhos de propaganda da extrema-direita global
9
O empreendedorismo e a economia solidária
02 Dec 2025 Por RENATO DAGNINO: Os filhos da classe média tiveram que abandonar seu ambicionado projeto de explorar os integrantes da classe trabalhadora e foram levados a desistir de tentar vender sua própria força de trabalho a empresas que cada vez mais dela prescindem
10
Totalitarismo tecnológico ou digital
27 Nov 2025 Por CLAUDINEI LUIZ CHITOLINA: A servidão voluntária na era digital: como a IA Generativa, a serviço do capital, nos vigia, controla e aliena com nosso próprio consentimento
11
Walter Benjamin, o marxista da nostalgia
21 Nov 2025 Por NICOLÁS GONÇALVES: A nostalgia que o capitalismo vende é anestesia; a que Benjamin propõe é arqueologia militante das ruínas onde dormem os futuros abortados
12
Biopoder e bolha: os dois fluxos inescapáveis da IA
02 Dec 2025 Por PAULO GHIRALDELLI: Se a inteligência artificial é a nova cenoura pendurada na varinha do capital, quem somos nós nessa corrida — o burro, a cenoura, ou apenas o terreno onde ambos pisam?
13
O arquivo György Lukács em Budapeste
27 Nov 2025 Por RÜDIGER DANNEMANN: A luta pela preservação do legado de György Lukács na Hungria de Viktor Orbán, desde o fechamento forçado de seu arquivo pela academia estatal até a recente e esperançosa retomada do apartamento do filósofo pela prefeitura de Budapeste
14
Argentina – a anorexia da oposição
29 Nov 2025 Por EMILIO CAFASSI: Por que nenhum "nós" consegue desafiar Milei? A crise de imaginação política que paralisa a oposição argentina
15
O parto do pós-bolsonarismo
01 Dec 2025 Por JALDES MENESES: Quando a cabeça da hidra cai, seu corpo se reorganiza em formas mais sutis e perigosas. A verdadeira batalha pelo regime político está apenas começando
Veja todos artigos de

PESQUISAR

Pesquisar

TEMAS

NOVAS PUBLICAÇÕES