Por COLETIVO NEGRO DIALÉTICA CALIBÃ*
Comentários a respeito da noção de reconhecimento na USP.
“Não há luta aberta entre o branco e o negro. […] Um dia o senhor branco reconheceu sem luta o negro escravo. Mas o ex-escravo quer ser reconhecido.”
(Frantz Fanon, Pele negra, máscaras brancas).
“Mas, como está, não podemos prescindir dele. Ele acende nosso fogo, busca nossa lenha e cumpre tarefas que nos trazem proveito. – Ei, escravo, Caliban! Tu, criatura da terra, fala!”
(William Shakespeare, A tempestade).
No último dia 20 de novembro de 2024, primeiro ano em que o “Dia da Consciência Negra” (dia de Zumbi dos Palmares) foi vivido enquanto feriado nacional, o site da Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas (FFLCH) da Universidade de São Paulo (USP) publicou uma página em “homenagem” ao dia, voltada para o contexto dos 90 anos da Faculdade. Na tentativa de preservar certa “memória negra”, divulgaram uma série de fotos que intitularam “Docência negra na FFLCH: presença, memória, reconhecimento”.[1] Dentre docentes ativos, temos também aqueles que já se aposentaram e os que faleceram.
O mapeamento, entretanto, surpreende – principalmente aos estudantes do departamento de filosofia – ao vermos nomes como o de Marilena Chaui incluídos nessa lista. Surpreende, menos por algum julgamento prévio, como se agíssemos tal qual uma banca de heteroidentificação, mas sim pela inclusão de um e mais nomes que, até então, nunca falaram a partir desse campo de experiência de negritude.
Há uma lacuna entre os que constroem cotidianamente a base e os que estabelecem representações institucionais. Há pelo menos três anos, alunos negros cotistas tentam construir sua significação e sentido de pertencimento e reconhecimento no espaço universitário da filosofia. A busca por experiências, relatos ou arquivos tem sido árdua e pouco sucedida até então. Ou não há registros sobre qualquer atividade em torno da negritude no Departamento de Filosofia da USP[2] ou simplesmente não há interesse de mobilização por parte institucional para buscar algo sobre isso.
Inclusive, essa estranha sensação de não-lugar e vinculação ao qual não parecemos pertencer foi tema de um seminário recente ocorrido no departamento: “Referenciais da Política Moderna em Debate”,[3] que ocorreu esse mês de novembro, nos dias 7 e 8, e contou com uma fala do nosso “Coletivo Negro Dialética Calibã”,[4] composto por estudantes negros que ingressaram no curso desde 2019 – provavelmente a única mesa de um evento do Departamento de Filosofia composta apenas por negros (até onde se tem notícia).
A presença feminina na história do Departamento de Filosofia também é tema de debate, mas já é mais bem consolidado – seja pelo trabalho do “Projeto Contando Mulheres”,[5] nascido com as estudantes do Programa de Educação Tutorial (PET) do Departamento de Filosofia e agora contando com maior apoio institucional e docente, seja pela própria experiência histórica da presença das docentes no departamento de filosofia (para mencionar apenas dois nomes, temos Gilda de Mello e Souza e também Marilena Chauí).
A diferença entre os dois casos é que em um deles houve uma elaboração a partir de experiências históricas e debates a partir do próprio corpo discente e docente que garantem concretude quando se fala em reconhecimento. No outro caso, o nosso, quando nos encontramos em um período em que há mais certezas de não-presença do que presença, ver uma consagração de docentes negros no departamento de filosofia onde até ontem não havia ninguém, parece mais um meio de evitar o conflito e velar essa ausência histórica tão presente do que explicitar que há um grande debate que ainda deve ser feito e construído por esforços em coletividade.
O reconhecimento, nos ensina Frantz Fanon ao ler Hegel, é uma luta por uma conquista. Sem luta não há reconhecimento. Quando, então, o reconhecimento é “dado” por via institucional e representativa, e não conquistada por um campo de experiências, então ela não é substancial. Não se trata, então, de buscar uma satisfação através de símbolos que sintetizem universalmente diversas experiências. Necessária, mas não suficiente é a demanda por mais docentes negros, por mais disciplinas que abordem a história negra, pela mudança nas concepções metodológicas que não tenham apenas a Europa como referencial constante.
Frisamos a insuficiência dessas demandas porque, ao fundo, trata-se de discutir sobre a “experiência vivida do negro”, quer dizer, perguntar sobre o que é o negro e descobrir, por trás disso, a fundamentação da noção de raça – essa marca moderna que justifica processos de violência, inferiorização e exploração do Outro enquanto não-ser. Enquanto mantivermos posicionamentos antirracistas que sustentam a noção de raça, continuaremos a legitimar os aparelhos ideológicos que naturalizam os mesmos processos que produzem e reproduzem o sistema colonial.
Discutir a experiência do negro é compreender de que maneira a noção de raça ainda sustenta nossas maneiras de existir socialmente e politicamente. Todo espaço delimitado pela raça é um não-lugar, por que diz respeito à exclusão de espaços. Por isso, pensar a relação entre “raça” e “universidade” hoje não é pensar apenas na inclusão dos jovens negros, pois o espaço universitário foi estruturado e organizado a partir da visão de mundo dos brancos.
Nesse tipo de espaço, toda produção e reprodução corresponde à exclusão do negro ou sua inclusão a partir da imagem e do imaginário que o branco tem do negro (isso inclui toda variedade de preconceitos que já ouvimos sobre nossos cabelos, nossos comportamentos, nossa capacidade em estudar línguas, em escrever textos, em compreender e reproduzir a linguagem acadêmica, entre outros). Não nos iludimos com a integração do negro na universidade, pois compreendemos que a “integração do negro na sociedade de classes” também foi ilusória. O horizonte deve ser pela destituição dos lugares-comuns e pela reestruturação da experiência universitária a partir do debate sobre a noção de raça.
Esperamos que fique claro que não se trata de definir quem é ou não negro. A identidade, como aponta Douglas Barros em O que é identitarismo? (Boitempo), é uma construção, uma invenção (ainda que ilusória e necessária), e não uma descoberta. Não seremos os negros estabelecidos ou os negros que esperem que sejamos, mas negros seremos a partir das experiências que cultivamos, compreendendo também as dimensões de classe e gênero que nos constituem.
Esperamos que a nova diretoria da FFLCH, bem como todes docentes negres listades, voltem-se para a construção do debate a partir da base e não apenas para a exibição de símbolos representativos sem lastro material e diálogo com os coletivos atuantes no espaço. Mais do que uma gestão, que o sentido da experiência do ser negro dentro da USP seja uma construção coletiva.
*Coletivo Negro Dialética Calibã é composto por estudantes negros de graduação e pós-graduação no curso de Filosofia da Universidade de São Paulo.
Notas
[1] A página pode ser conferida aqui.
[2] O mais perto que chegamos de arquivos foi através do livro O elefante negro: Eduardo de Oliveira e Oliveira: Raça e pensamento social no Brasil (2020), de Rafael Petry, baseado em sua tese de 2018 pela Universidade Federal Fluminense (UFF). No livro, temos alguns capítulos que dão o panorama da FFCL (Faculdade de Filosofia, Ciências e Letras – situada na Rua Maria Antônia, na Vila Buarque, antes de ser transferida para a Cidade Universitária, no Butantã, e se tornar a FFLCH) e da presença negra nesses espaços (que é tão mínima que quase parece não ter havido negros lá). Além do evento “Quinzena do Negro da USP”, no qual Eduardo (sociólogo) estava envolvido na organização, junto com Beatriz Nascimento (historiadora), não temos mais registros de outras atividades semelhantes, muito menos no departamento de filosofia.
[3] A programação pode ser conferida aqui: e o perfil do coletivo pode ser conferido aqui.
[4] A fala pode ser conferida aqui.
[5] O perfil do Instagram do projeto pode ser conferido aqui.
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