Por WESLLEY CANTELMO*
Há sinais importantes de que tanto é possível, como necessário, a mobilização e reorientação da capacidade de Estado para a consolidação de uma agenda brasileira frente ao restante do mundo.
1.
Afirmo, sem medo de errar, que o Brasil se encontra em um dos piores momentos, no que diz respeito a sua capacidade institucional, para lidar com o ataque norte-americano, materializado por meio da aplicação de tarifas de 50% às exportações brasileiras aquele país.
Obviamente, o que não pode em integralidade ser atribuído como responsabilidade do governo Lula. Ao contrário, talvez o melhor que temos nesse momento é a postura altiva exercida pelo presidente. Não sem motivos sua popularidade apresenta tendência de recuperação. Popularidade essa que, até então, passava por maus bocados. Lula conseguiu passar uma clara mensagem de que diante do mais forte não se deve acovardar.
O povo, em sua sabedoria, entende e gosta dessa postura. Entretanto, o fato é que postura e discurso, em momentos como esse, são necessários, mas insuficientes. É preciso atos concretos de proteção do país. Aí está o problema do sistema institucional brasileiro, esvaziado de instrumentos à disposição, mesmo estando em vigor a Lei 15.122/25, chama da “Reciprocidade”.
É relativamente simples compreendermos isso, de 2016 em diante, o Brasil consolidou a reforma liberal iniciada na década de 1990. Se teve alguém que fez mudança estrutural nas últimas décadas no Brasil foi a direita brasileira/burguesia tosca brasileira. O projeto de esvaziamento das capacidades de realização do Estado foi consolidado entre 2016 e 2022.
Podemos listar: Teto de gasto (substituído pelo Arcabouço Fiscal de Fernando Haddad que segue o mesmo espírito), Reforma Trabalhista, Reforma da Previdência, Lei das Estatais (que dentre outras coisas a venda de empresas subsidiárias das estatais sem a necessidade de aprovação específica do Congresso Nacional), autonomia do Banco Central, privatização da Eletrobras, vedação dos empréstimos do Tesouro Nacional ao BNDES (considerados “irregulares” pelo Tribunal de Contas da União), dentre tantas outras, mas particulares.
Tudo isso se soma ao tripé macroeconômico – superávit primário (agora atrelado aos gatilhos do arcabouço fiscal), meta de inflação (completamente irracional e inalcançável, como um gatilho político à manutenção de taxas de juros extremamente elevadas) e câmbio flutuante (atrelado à uma série de desregulamentações do mercado de cambio realizadas nas duas últimas décadas, que tiraram do Banco Central meios de intervir, sobretudo após a entrada em vigor da Lei 14.281/2021) – e mais a um emaranhado de travas fiscais.
O resultado somado dessas medidas é, como visto nos anos de gestão direta do executivo pela direita, a deterioração de um Estado que passa a cair aos pedaços e que abre espaço para os lobistas setoriais.
2.
A vitória de Lula em 2022 apenas reestabeleceu um freio nessa lógica. É claro que houve uma retomada do bom-senso. Gente qualificada substituiu gente tosca e amalucada na máquina do executivo e isso tem se convertido em políticas públicas sérias, com resultados importantes e promissores. Mas o problema institucional é muito profundo e precisa ser encarado.
As tarifas dos Estados Unidos (evito “fulanizar” o evento, colocando a carga sobre Donald Trump, pois a sua ascensão ao segundo mandato é a síntese da crise do império americano e não teríamos vida fácil com os Democratas no poder por lá) sobre o Brasil nos pega em momento complicado. Não que se trate de um grandioso efeito quantitativo sobre a nossa economia.
Mas, além de alguns efeitos econômicos em setores importantes de nossa economia, pode acarretar dividendos políticos para os setores arcaicos que se postam contra o país. Obviamente, a soberania é inegociável! Logo, o que precisamos e deveríamos fazer, ainda que com foco estrito na resposta à agressão norte-americana, é de um conjunto de medidas de estímulo e proteção dos setores atingidos.
Estou falando de soluções customizadas, pensado setor a setor, que podem envolver instrumentos tais como crédito subsidiado, tanto para capital de giro, quanto para subsídio a exportações a outros mercados, contratos de compras públicas e, eventualmente, de maneira estratégica e com contrapartidas bem demarcadas, algumas desonerações tributárias.
Veio então a Medida Provisória “Brasil Soberano”, que de certa forma responde a esses anseios. As medidas vão na direção correta, mais ou menos dentro do que já era o esperado, considerando o padrão de atuação e atuação política do governo. Sem grandes novas medidas, fiel à linha de política fiscal restritiva. A primeira delas é o Fundo Garantidor de Exportações (FGE), que, na verdade, é um fundo que já existia, que tem então o seu escopo ampliado.
O Fundo atuará na redução das taxas de juros voltadas a exportação. Isso já tem sido praticado, mas, então, ele amplia as possibilidades de atuação do Fundo com um volume maior de recursos e a previsão de suporte via um seguro vinculado que pode ser apresentado como garantia em financiamentos concedidos pelo BNDES e outros bancos a empresas exportadoras.
Uma das possibilidades do seguro coberto pelo FGE são as operações de Adiantamento sobre Contrato de Câmbio (ACC), que garante o acesso antecipado aos valores de uma venda ao exterior. A perspectiva é de um aporte de R$ 30 bilhões no FGE a ser direcionado para todas as empresas exportadoras interessadas, não somente as afetadas pelas sanções norte-americanas, que, por sua vez, terão prioridade. O maior efeito esperado é a abertura de novos mercados.
3.
A segunda medida é o Reintegra, que permite a reintegração de recursos de resíduos tributários. É uma medida temporária, porque esse mecanismo não fará mais sentido após a entrada em vigor da Reforma Tributária, em 01 de janeiro de 2027. Diferentemente a primeira rodada do Reintegra, as empresas de maior porte também poderão participar, com a extensão das alíquotas para 6¨% para as micro e pequenas e 3% para as demais.
A ideia do programa é devolver parte das alíquotas pagas pelas empresas exportadoras ao longo da cadeia de produção, como um crédito tributário, de acordo com os percentuais acima. Novamente, trata-se de uma medida importante, que ajuda a equalizar eventuais perdas decorrentes das tarifas e estimula a abertura – proativa, por parte das empresas – de novos mercados.
Nesse mesmo sentido, há também a prorrogação dos prazos do regime de drawback. Nesse regime as empresas são isentas das alíquotas de importação de produtos que são insumos do produto final, que é objeto de exportação. Um bom exemplo são aviões, que antes de serem exportados como produto acabado, são montados com peças e aparatos tecnológicos importados.
Contudo, nessa operação é acordado um prazo para que a exportação seja realizada. Com a prorrogação, as empresas terão mais prazo para realizar suas exportações e até mesmo encontrar novos compradores. A estimativa é de que 25% das exportações para os Estados Unidos são realizadas por meio do regime de drawback. Logo, a medida representa um alívio concreto, que dá tempo às empresas afetadas.
Por fim, uma medida fiscal mais propriamente dita, que é a compra pública de produtos perecíveis represados. Em função do tarifaço, diversos contratos foram desfeitos o que pode representar fortes prejuízos de curto prazo. Estamos falando de carnes, pescados, frutas, etc. Nesse caso, o Governo vai fazer a compra daqueles produtores que solicitarem, sem negociação, via Programa de Aquisição de Alimentos (PAA) e Programa Nacional de Alimentação Escolar (PNAE). Compra essa que será intermediada por estados e municípios.
4.
São medidas que vão dar um fôlego. Há, digamos, a possibilidade de fazermos uma crítica mais estratégica, uma vez que não foram anunciadas medidas que mudam com maior profundidade o rumo da política econômica. Apesar de muitos analistas de economia política, aos quais me incluo, defenderem que o momento talvez tenha sida uma oportunidade política para a correção de rota, com sinceridade, não havia grande expectativa de que o governo proporia algo nesse sentido.
Oportunidade perdida? Ou seria arriscado demais? A resposta fica no campo das conjecturas. Para conter os efeitos do tarifaço, stricto sensu, que não é uma hecatombe econômica, como alguns setores da sociedade brasileira está pintando, está de bom tamanho. Para nosso caminho de mudança estrutural, de desenvolvimento, continuamos sem os instrumentos necessários.
Por outro lado, há sinais importantes de que tanto é possível, como necessário, a mobilização e reorientação da capacidade de Estado para a consolidação de uma agenda brasileira frente ao restante do mundo.
Indo um pouco mais fundo na reflexão, o mais acertado seria trazer à tona a necessidade de uma ampla reforma estrutural de Estado, reativando as capacidades de realização. Seja para as respostas necessárias de proteção da economia em um ambiente geopolítico cada vez mais tenso, seja (e principalmente) para a reativação de um processo de desenvolvimento coordenado em um sentido estratégico para atendimento dos interesses populares, algo também urgente em um mundo que passa por rearranjos bruscos.
Seja, ainda, para aquilo que deveríamos ter como a máxima das urgências: o interesse concreto e aspirações do povo. O ano é 2025 e não temos um futuro bem definido pela frente. Sem saneamento para todos e com uma promessa vã de que a universalização será alcançada por meio de investimentos privados. Nossos corredores logísticos são rodoviários e precários, com enormes perdas de produtos, de tempo e, sobretudo, de vidas. Nossos jovens amargam uma educação capenga, com infraestrutura precária, atacada por lobistas e sem grandes objetivos pedagógicos.
O SUS resiste, também sujeito aos lobistas e dependente de produtos e equipamentos importados. Esses dois últimos aspectos, cada vez mais pressionados pela regra fiscal vigente. Do ponto de vista produtivo temos um agronegócio, apesar de altamente produtivo, é também dependente de insumos e equipamentos externos. A indústria que restou, em grande volume, é a extrativa, também dependente.
Há exceções, como a Embraer e até mesmo montadoras do setor automobilístico, que confirmam a regra, por também terem de lidar com intricados arranjos de fornecimento de insumos, peças, máquinas e equipamentos. Em termos energéticos, o país com a as fontes mais limpas e baratas do mundo ostenta uma das energias mais caras, em função de reservas de mercado disponibilizadas a lobistas, falta de investimentos coordenados e, mais recentemente, a desconstrução ocasionada pela privatização do Eletrobras.
Eu poderia listar mais uma série de agruras e chegaríamos a um livro. Sigamos.
*Weslley Cantelmo é doutor em economia pela Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG).
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