Por PLÍNIO DE ARRUDA SAMPAIO JR.*
No segundo turno, um amplo segmento da população reiterou seu irremediável descontentamento com o sistema político
Assim que os resultados eleitorais foram contabilizados, a ilusão de que seria possível enfrentar a ofensiva do capital pela via eleitoral se frustrou mais uma vez. O segundo turno das eleições municipais de 2020 confirmou as duas tendências fundamentais do primeiro turno: a) a legitimação institucional do golpe contra os direitos trabalhistas e sociais da classe trabalhadora; e, contraditoriamente, b) o aprofundamento da crise de legitimidade que abala inexoravelmente o sistema político que sustenta a Nova República.
A direita neoliberal – PSDB, MDB e DEM – e a direita fisiológica – os partidos que compõem o Centrão – ampliaram sua presença nos executivos municipais e passaram a comandar prefeituras que congregam cerca de três quartos da população brasileira.[i] Os partidos oriundos da antiga ARENA, base parlamentar de sustentação da ditadura militar, foram os que mais avançaram – numa clara vitória das forças reacionárias que defendem uma solução autoritária que atue por dentro das instituições aviltadas da Nova República.
A derrota política de Bolsonaro foi aprofundada. Dos candidatos às prefeituras das capitais apoiados publicamente pelo presidente, apenas o de Rio Branco foi eleito. Mesmo assim, no cômputo geral, a direita abertamente autoritária e anticomunista –não necessariamente bolsonarista –aumentou significativamente sua presença nos executivos municipais, governando cidades que representam mais de 7% da população nacional – 60% superior à população das prefeituras sob controle da esquerda da ordem – PT, PCdoB e PSOL.
O resultado do segundo turno eleitoral reforçou ainda mais a decadência política do PT. Das quinze prefeituras disputadas no último domingo, o partido ganhou apenas quatro, todas em cidades de menor expressão. Com a derrota em Recife e Vitória, os petistas não governarão nenhuma das capitais, pela primeira vez em décadas. Considerando os dois turnos, o partido perdeu 71 prefeituras em 2020 em comparação com 2016.
O desgaste do partido de Lula foi capitalizado pelo PSOL. No entanto, na ausência de uma ampliação do eleitorado, o resultado agregado foi equivalente a um jogo de soma zero. Não obstante os efeitos devastadores da crise sanitária, econômica e social, a esquerda da ordem não conseguiu capitalizar em votos o gigantesco descontentamento da população. O fato fica evidente na surpreendente semelhança entre a proporção de votos válidos obtidos por Bolsonaro e Haddad na eleição presidencial de 2018 na cidade de São Paulo – 60,4% x 39,6% – e a votação de Covas e Boulos no segundo turno do pleito de 2020 – 59,4% x 40,6%.
No segundo turno, um amplo segmento da população reiterou seu irremediável descontentamento com o sistema político. Mais de 38% do total do eleitorado nacional se absteve de votar ou votou nulo ou branco- a maior taxa deque se tem registro na Nova República. No Rio de Janeiro e em São Paulo, os eleitores que repudiaram as alternativas apresentadas pelo sistema político superaram por larga margem os votos concedidos aos prefeitos eleitos, ficando em 46,4% e 41% do total dos eleitores, respectivamente.
O entusiasmo eleitoral que impulsionou a vitória de Edmilson Rodrigues em Belém e que protagonizou a animada campanha de Guilherme Boulos em São Paulo, sobretudo entre expressivas parcelas da juventude, colocou o PSOL como uma estrela ascendente. O cenário mais geral é, entretanto, extraordinariamente adverso. A esquerda encontra-se acuada e o sistema político em ruína.
Sem se desvencilhar do peso morto de um status quo historicamente condenado, o partido corre o risco de morrer na praia. O avanço eleitoral da direita, sobretudo da ultradireita, e o aumento das abstenções e dos votos nulos e brancos implicam necessariamente a estagnação eleitoral da esquerda e do centro-esquerda. Na ausência de projeto de futuro, que coloque na ordem do dia a necessidade de transformações estruturais de grande envergadura, o PSOL está fadado a repetir a tragédia como farsa e passar para a história como coadjuvante de uma catástrofe anunciada.
A falta de diálogo com os trabalhadores que buscam uma alternativa antissistêmica à crise da Nova República deixa o caminho aberto para a consolidação da solução liberal-autoritária para a crise nacional, por dentro ou por fora da ordem. É o que vem condicionando a luta política no Brasil desde 2013, quando as Jornadas de Junho evidenciaram a falência da Nova República e a burguesia, diante do fim da paz social, viu-se na necessidade de reciclar a contrarrevolução que bloqueia qualquer iniciativa de mudança estrutural.
Sob o risco de suicídio político, os trabalhadores não podem jogar todas as fichas na via eleitoral como antídoto à ofensiva liberal-autoritária. Sem luta social e desobediência civil, articuladas por um projeto de transformação social, a participação no jogo eleitoral é um expediente estéril que apenas legitima um ritual de cartas marcadas.
Passou da hora de conversar seriamente com a classe trabalhadora e colocar na ordem do dia a urgência da revolução democrática, de perspectiva socialista, como única alternativa à barbárie capitalista instalada. Fundir-se com as lutas dos trabalhadores, fomentar a auto-organização da classe e defender a necessidade de soluções anticapitalistas são as tarefas estratégicas do momento histórico.
*Plínio de Arruda Sampaio Jr. é professor aposentado do Instituto de Economia da Unicamp. Autor, entre outros livros, de Entre a nação e a barbárie – dilemas do capitalismo dependente (Vozes).
Nota
[i]As informações sobre as Eleições Municipais de 2020baseiam-se em: https://noticias.uol.com.br/eleicoes/2020/apuracao/2turno/br#populacao-partido-vai-governar