Rita Lee (1947 -2023)

Whatsapp
Facebook
Twitter
Instagram
Telegram

Por WALNICE NOGUEIRA GALVÃO*

Homenagem à cantora recém-felecida

Pagu

Mexo, remexo na inquisição
Só quem já morreu na fogueira
Sabe o que é ser carvão
Eu sou pau pra toda obra
Deus dá asas a minha cobra
Minha força não é bruta
Não sou freira, nem sou puta
Porque nem toda feiticeira é corcunda
Nem toda brasileira é bunda
Meu peito não é de silicone
Sou mais macho que muito homem
Sou rainha do meu tanque
Sou Pagu indignada no palanque
Fama de porra louca, tudo bem
Minha mãe é Maria ninguém
Não sou atriz, modelo, dançarina
Meu buraco é mais em cima

Nessa canção de Rita Lee e Zélia Duncan, que também é uma declaração de princípios, vai a demolição clichê por clichê do machismo a par com o conformismo.

A compositora e cantora não tinha papas na língua e dizia as coisas mais ultrajantes com um ar cândido. Doce garota de olhos miosótis, era um furacão. Feminista sempre alerta e avessa ao proselitismo, dava o exemplo e caprichava nos gestos cheios de verve. Quem mais ousaria chamar o câncer que a estava matando de “Jair”?

Antes de mais nada, uma libertária. Era a favor das experiências e nunca negou sua atração pelas drogas, pelo álcool e pelo sexo. Grande trabalhadora, passou a vida apostando em Eros, na alegria, na festa. A Rainha do Rock era uma dionisíaca sem remorsos.

Tente ouvir uma gravação dela sem ficar tomado: o corpo começa a vibrar e a se embalar, em uníssono com a pulsação das cordas e o ribombar da percussão.

Ela sabia que tinha uma voz pequena e às vezes precisava gravar por cima da primeira gravação. Mas seu forte não era a voz, era o balanço inimitável, a graça, a capacidade de fazer-se palhaça. Uma certa inocência – numa mulher tão vivida – transparecia no cunho infantil que sobrenadava de muitas de suas composições. Campeã absoluta em vendagem de discos, nisso sobrepujou todas as cantoras do país. E como performer era ímpar: fazia imitações e criava personagens bufos.

Pagou o preço da independência e da irreverência, e muitas vezes. Foi presa pela ditadura militar, por porte de maconha. Ficou meses na cadeia e recebeu a visita de Elis Regina, que lutou por sua libertação. Elis lhe daria a filha Maria Rita por afilhada e xará, enquanto Rita dedicaria a ela a canção “Doce de pimenta”, alusiva ao apelido de Elis, a Pimentinha. Na missa de sétimo dia desta, na Igreja do Perpétuo Socorro em São Paulo, apenas Rita Lee e o irmão da gaúcha leram os textos litúrgicos.

Além de jogá-la na masmorra, a ditadura encarniçou-se contra ela, mutilando e censurando suas canções. Um exemplo é o verso que consta do laudo oficial do negregado órgão que tanto dano causou às artes por 20 anos. “Me deixa de quatro no ato” acarretou a proibição de Lança-perfume, cujo título é clara metáfora substituindo o erótico pelo entorpecente. O laudo do censor justifica a proibição, acusando o verso, tão gráfico, de “ambiguidade”. Que ambiguidade? Pura denotação, de sentido unívoco.

Uma delícia sua autobiografia, franca e de coração aberto, onde faz as confissões mais descabeladas – e consegue cativar duplamente o fã, tal o jeito singelo com que enuncia as piores revelações. Já era escritora de livros infantis, mas agora se anuncia o segundo volume da autobiografia, aguardado com ansiedade.

Seu interesse por Pagu decorre de tudo o que fazia dela uma libertária, uma feminista, uma pessoa alegre, cheia de vitalidade e senso de humor.

Seria de esperar que o empenho político militante e o trânsito nas esferas rarefeitas dos artistas modernistas, próprios de Pagu, a tornariam avessa a Rita Lee, com quem aparentemente nada tinha em comum. Ledo engano. Rita assumiu a similaridade e a expressou nessa bela canção, uma homenagem compreensiva, mostrando que entendeu perfeitamente a trajetória de Pagu.

Quando indagada sobre ser o ambiente do rock brasileiro uma selva em que para sobreviver é preciso ter culhões, ela declarou que isso não bastava, mais que isso é preciso ter ovários.

Mulher sábia, mulher plena, transgressora e grande artista, de rara inteligência e originalidade única. Vai aqui para ela um poema, um haicai da autoria de Ilka Brunilde Laurito, à guisa de epitáfio:

Vitória da Samotrácia

Que mulher sensata
Perdeu a cabeça
Mas ficou com as asas

*Walnice Nogueira Galvão é Professora Emérita da FFLCH da USP. Autora, entre outros livros, de Lendo e relendo (Sesc\Ouro sobre Azul).


A Terra é Redonda existe graças aos nossos leitores e apoiadores.
Ajude-nos a manter esta ideia.
CONTRIBUA

Veja todos artigos de

10 MAIS LIDOS NOS ÚLTIMOS 7 DIAS

Fim do Qualis?
Por RENATO FRANCISCO DOS SANTOS PAULA: A não exigência de critérios de qualidade na editoria dos periódicos vai remeter pesquisadores, sem dó ou piedade, para um submundo perverso que já existe no meio acadêmico: o mundo da competição, agora subsidiado pela subjetividade mercantil
Bolsonarismo – entre o empreendedorismo e o autoritarismo
Por CARLOS OCKÉ: A ligação entre bolsonarismo e neoliberalismo tem laços profundos amarrados nessa figura mitológica do "poupador"
Distorções do grunge
Por HELCIO HERBERT NETO: O desamparo da vida em Seattle ia na direção oposta aos yuppies de Wall Street. E a desilusão não era uma performance vazia
Cinismo e falência da crítica
Por VLADIMIR SAFATLE: Prefácio do autor à segunda edição, recém-publicada
O jogo claro/escuro de Ainda estou aqui
Por FLÁVIO AGUIAR: Considerações sobre o filme dirigido por Walter Salles
A estratégia norte-americana de “destruição inovadora”
Por JOSÉ LUÍS FIORI: Do ponto de vista geopolítico o projeto Trump pode estar apontando na direção de um grande acordo “imperial” tripartite, entre EUA, Rússia e China
O pagador de promessas
Por SOLENI BISCOUTO FRESSATO: Considerações sobre a peça teatral de Dias Gomes e o filme de Anselmo Duarte
Na escola ecomarxista
Por MICHAEL LÖWY: Considerações sobre três livros de Kohei Saito
A força econômica da doença
Por RICARDO ABRAMOVAY: Parcela significativa do boom econômico norte-americano é gerada pela doença. E o que propaga e pereniza a doença é o empenho meticuloso em difundir em larga escala o vício
Ainda estaremos aqui?
Por ANTONIO SIMPLICIO DE ALMEIDA NETO: É preciso, com urgência, considerar a negligência com que temos tratado o conhecimento histórico nas escolas brasileiras, notadamente as públicas
Veja todos artigos de

PESQUISAR

Pesquisar

TEMAS

NOVAS PUBLICAÇÕES