Sem chão

Frame de "Sem chão" dirigido por Basel Adra & Yuval Abraham/ Divulgaçâo
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Por JOÃO LANARI BO*

Comentário sobre o documentário, em exibição nos cinemas, dirigido por Basel Adra & Yuval Abraham

Sem chão é um documentário dirigido a quatro mãos sobre a tragédia que se arrasta na Cisjordânia, território ocupado por Israel desde 1967, após a Guerra dos Seis Dias – um palestino ativista, Basel Adra, e um jornalista israelense, Yuval Abraham, foram os realizadores. Também integraram essa corajosa equipe Hamdan Ballal e Rachel Szor, ele palestino e ela israelense. O adjetivo “corajosa” não é força de expressão – é um dado concreto da realidade.

Sem chão foi feito para furar o bloqueio midiático sobre o que se passa com os palestinos na Cisjordânia. O violento ataque do Hamas em outubro de 2023 – e a resposta totalmente desproporcional israelense que se seguiu – catapultaram o conflito na região para um novo e inédito patamar. Entre a Faixa de Gaza e a Cisjordânia, entretanto, a distância é maior do que os poucos quilômetros que os separam, em território israelense. Gaza é governada pelo Hamas, Cisjordânia pela Autoridade Palestina.

À luz do controle governamental da coalizão de direita em Israel, que abriga partidos extremistas favoráveis à expulsão e/ou aniquilamento de todos os palestinos nos territórios ocupados por Israel, ninguém sabe o que pode acontecer. A ascensão de Donald Trump, imprevisível e impulsivo, só piora o quadro.

Masafer Yatta – onde foram filmadas a maioria das imagens do filme – é uma região com 19 aldeias no sul da Cisjordânia, perto de Hebron. Em 1980 a área foi denominada “Zona de Tiro 918”, a ser usada pelo exército para treinamento militar – apesar do então Primeiro-Ministro, Ariel Sharon, ter declarado explicitamente que o objetivo seria viabilizar a expulsão dos residentes locais.

Em 2022, depois de longo processo judicial e intimidações de toda ordem, a Suprema Corte israelense autorizou a expulsão dos habitantes de pelo menos 8 aldeias, mas de mil pessoas. O poder judiciário, sob ataque do governo Netanyahu – tal como ocorre em outros regimes autoritários, direita ou esquerda – acabou cedendo às pressões dos colonos e respectivos partidos políticos.

Basel Adra nasceu em 1996: sua primeira lembrança é de soldados israelenses invadindo sua casa e prendendo seu pai. Basel Adra tinha apenas cinco anos – e a partir desse momento todos os episódios violentos que testemunhou foram documentados, fotos e vídeo, para sua, e dos demais, proteção. “Comecei a filmar quando começamos a acabar”, afirma, repetindo as palavras do pai.

Tratores demolindo casas, famílias vivendo em cavernas, manifestações duramente reprimidas e ataques de colonos milicianos – tudo é filmado. Na concepção de Sem chão está presente o impulso do registro como mobilização permanente, da preservação da memória como condição de sobrevivência, literalmente.

Yuval Abraham cruzou com Basel em 2019, quando surgiu a ideia do projeto. Fluente em árabe – que aprendeu com seu avô judeu iemenita – Yuval Abraham tornou-se crítico ferrenho da ocupação à medida em que investigava casos como o de Masafer Yatta. Mas é voz minoritária em Israel, que já foi um país governado por um forte partido de centro-esquerda, o histórico Mapai – hoje Partido Trabalhista, que ocupa apenas quatro das 120 cadeiras do Parlamento.

A solução dos dois Estados para Israel e Palestina, projeto engendrado pela centro-esquerda trabalhista em diálogo com palestinos da OLP – e que era (ou foi) uma possibilidade factível – colapsou com o assassinato de Yitzhak Rabin, em 1995, por um fanático religioso.

Basel Adra e Yuval Abraham mais do que dirigem o filme, eles próprios são personagens e partícipes dos eventos que se sucedem. No limite da violência institucionalizada, se estabelece um diálogo entre Yuval e interlocutores palestinos, sobretudo Basel – raio de luz efêmero na paisagem destruída dos vilarejos.

Para se ter uma ideia do clima, a casa da família de Yuval Abraham em Israel foi ameaçada por uma multidão após ele pedir “cessar fogo em Gaza e fim do apartheid e desigualdade na Cisjordânia”, ao receber prêmio no Festival de Berlim, em 2024. Foi acusado de “antissemitismo” por políticos da direita alemã.

A indicação de Sem chão ao Oscar para documentário deve acirrar ainda mais os ânimos. Embora ainda exista percentual significativo da população em Israel contrária às práticas de ocupação – apesar de não se traduzir em peso político efetivo – a polarização, a exemplo de outras paragens, tende a radicalizar-se.

A proposta de Donald Trump de transformar Gaza em uma “Riviera” traz embutida uma noção asséptica de visualidade, que vê o mundo através da Fox News – o “pietismo” do presidente sugere que os palestinos serão “realojados” e vão ter condições melhores de moradia. Gaza, ou a imagem da Faixa de Gaza no imaginário trumpista, ficará limpa, etnicamente limpa.

Do lado palestino, o sofrimento é perene – Basel Adra esforça-se para manter a clarividência. Em entrevista, afirmou: “Espero que este filme seja visto, realmente visto, por muitas pessoas. Isso significaria muito para nós, e esperamos influenciar as pessoas: não apenas para mudar suas mentes, mas para movê-las a agir e nos manter, em suas mentes, vivos”.

*João Lanari Bo é professor de cinema da Faculdade de Comunicação da Universidade de Brasília (UnB). Autor, entre outros livros, de Cinema para russos, cinema para soviéticos (Bazar do Tempo). [https://amzn.to/45rHa9F]

Referência


Sem chão [No other land]
Noruega, 2024, documentário, 95 minutos.
Direção: Basel Adra & Yuval Abraham
Roteiro: Rachel Szor
Elenco: Basel Adra, Yuval Abraham, Hamdan Ballal, Rachel Szor,


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