Sobre a taxa Selic

Imagem: Soumalya Das
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Por LUIZ SÉRGIO CANÁRIO*

Os efeitos da política monetária na política econômica, guiada pela lógica neoliberal

SELIC é a sigla para Sistema Especial de Liquidação e de Custódia, criado em 1979. Esse sistema existe para o registro, custódia e liquidação de títulos públicos. As instituições financeiras credenciadas e autorizadas pelo Banco Central do Brasil registram em tempo real todas as suas operações com títulos públicos emitidos pelo Tesouro Nacional. As instituições estabelecem o preço para a negociação dos títulos e em seguida registram no SELIC. A liquidação dessas operações é imediata.

A propriedade dos títulos negociados é transferida para quem comprou e o valor acertado entre as partes para o negócio é depositado na conta de quem vendeu. Muito semelhante à compra de qualquer mercadoria, por exemplo bananas na feira. Acertado o preço com o feirante, muitas vezes negociado abaixo do preço que está no cartaz, ele entrega a banana e recebe o valor combinado. As operações no mercado financeiro são muito semelhantes às operações realizadas no dia a dia pelas pessoas comuns. Não há nenhum mistério nem operação ultrassofisticada. O mercado financeiro é onde os ativos financeiros são negociados. Assim como com as bananas, quem compra recebe a “mercadoria” e quem vende o valor acertado.

Mas qual é mesmo a função da taxa básica de juros nesse mercado? Na realidade a taxa SELIC são duas: a taxa SELIC Meta e a taxa SELIC Over. A Meta é a que é fixada em cada uma das reuniões do Comitê de Política Monetária – COPOM em cada uma das suas reuniões. Na realidade a composição do COPOM é a diretoria do Banco Central. O senso comum é o de que essa é a taxa que vale para as transações com títulos públicos. Mas não é bem assim. Ela representa mais um parâmetro que uma taxa efetiva.

As instituições financeiras realizam várias transações, inclusive de empréstimos, ao longo do dia. Se essas transações usarem títulos da dívida pública como lastro, ou garantia, essa transação é obrigada a ser registrada no SELIC que passa a ter a custódia dos títulos usados como lastro. Essa transação pode ser feita usando uma taxa de juros acordada pelos participantes. E pode ou não ser a taxa SELIC vigente.

Resumidamente, o Banco A pede R$1.000 emprestado ao Banco B e dá como garantia de que vai pagar títulos públicos, o lastro da operação. E eles acertam uma taxa de juros para isso. Como essa operação é registrada no SELIC o BCB fica sabendo o valor e a taxa de juros acertada e trava esses títulos em nome do Banco A como garantia. O Banco A não pode usar esses títulos nem para vender e nem para obter novo empréstimo. Eles estão sob a guarda, ou custódia, do Banco Central. No final do dia o SELIC calcula a média ponderada de todas as taxas de juros usadas nas transações. Essa é a taxa SELIC Over. O nome vem de um tipo de aplicação, o overnight, usado nos tempos de inflação alta. Era o que rendia o dinheiro aplicado de um dia para o outro.

Historicamente, como pode ser visto na tabela abaixo, a taxa Over é ligeiramente mais baixa que a taxa Meta. E é a taxa Over que é usada como base para as transações com os títulos da dívida pública tanto pelo Tesouro Nacional, quanto pelo Banco Central e pelas instituições financeiras. A taxa Meta é usada quando as instituições financeiras precisam pegar dinheiro emprestado com o Banco Central. São as operações de Redesconto. Nessa situação a taxa de juros aplicada sobre o Redesconto é a Meta. Funciona como uma espécie de penalização para quem não consegue fechar as contas com suas próprias pernas.

Abaixo um exemplo da totalização das operações realizadas no SELIC, com volumes e estatísticas, de dez dias em 2024 comparados a dez dias em 2023. A convergência da taxa Over para a taxa Meta é grande. O desvio padrão muito baixo indica uma baixa dispersão dos valores considerados. No dia 10/07/2024 a maioria dos valores das taxas negociadas está somente a 0,029 pontos percentuais do valor médio.

O COPOM fixa a taxa de juros Meta para cumprir com a sua obrigação básica como autoridade monetária de manter o valor da moeda fazendo a inflação convergir para a meta. Informações de várias origens são usadas para esse fim. Após cada reunião é liberada uma ata informando o debate que levou a fixação da taxa. Mais detalhes sobre isso podem ser vistos aqui. A meta da inflação é fixada pelo Conselho Monetário Nacional – CMN, instância máxima do sistema financeiro do Brasil, formado pelos ministros do Planejamento e da Fazenda e pelo presidente do Banco Central.

A SELIC serve como parâmetro para a fixação de todas as taxas de juros no mercado financeiro. Não é usada para as operações que uma pessoa comum faz, seja de crédito seja de aplicação financeira. O movimento de subir e descer mexe com as taxas praticadas nos financiamentos e aplicações. Se a SELIC sobe a tendência é o aumento da taxa de juros por toda a economia. O efeito é sempre reduzir a atividade econômica. O movimento inverso ao reduzir a carga de juros contribui para o aumento da atividade.

Na visão dos economistas hoje no centro das decisões sobre política econômica e monetária esse movimento tende a controlar a inflação. A lógica é que se atividade diminui os preços também diminuem e vice-versa. Mas essa visão ignora os custos sociais da manutenção de taxas no nível em que está a SELIC hoje. O custo para o país é imenso. Só no pagamento de juros da dívida pública foram gastos R$816 bilhões em 2023. O país fica aprisionado em uma lógica que estrangula o investimento público e privado. Os efeitos da política monetária na política econômica, guiada pela mesma lógica neoliberal, é o de redução não somente na capacidade de investimento, mas também nos recursos disponíveis para pagar as contas de todos os gastos públicos, inclusive saúde e educação.

Entender como funciona essa máquina cruel de gestão hoje entregue a doutos economistas é fundamental para que o povo, a sociedade como um todo, tomem conhecimento de como decisões que afetam suas vidas são tomadas. Não podemos permitir que decisões tão importantes sejam tomadas por meia dúzia de iluminados que montam sistemas e processos muitas vezes explicitamente com a intenção de torná-los de difícil compreensão e cercados de segredos. O Banco Central não publica informações abertas ao nível dos participantes de suas operações e bases de informações.

*Luís Sérgio Canário é mestrando em economia política na UFABC.


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