Sobre o espólio da pandemia

Imagem_Elyeser Szturm
Whatsapp
Facebook
Twitter
Instagram
Telegram

Érico Andrade*

O governo Bolsonaro tem mostrado um desdém não apenas pela pobreza, mas por tudo que não for o seu espelho

Se há uma coisa que tem se mostrado ambidestra na pandemia do Corona Vírus é o modo como lidamos com os nossos mortos. A disputa política não é apenas sobre quem pagará a conta das mortes. Sobre quem será responsabilizado pelas mortes que já começam se avolumar pelo Brasil, a despeito da flagrante subnotificação. A disputa é ainda mais grave.

Se, por um lado, é com escarnio que o presidente e seu séquito tratam as pessoas mortas pela COVID-19, retirando do Estado qualquer possibilidade de decretar um luto oficial e conferir, porquanto, institucionalidade ao sofrimento, por outro lado, parte da esquerda converte imagens de covas coletivas ou de cemitérios feitos à pressa em instrumento moral de punição dos eleitores de Bolsonaro.

Sem dúvida, são atitudes assimétricas porque o governo cumpre a função institucional de comandar o país e não pode se outorgar o direito de ridicularizar as mortes das quais ele é também responsável; no mínimo por sua omissão. Contudo, o uso das imagens das covas coletivas e do sofrimento estampado no rosto das famílias, cujo entes queridos partiram em decorrência do COVID-19, é feito livremente por certa esquerda numa lógica de merecimento. Como se cidades como Manaus, em que Bolsonaro teve uma vitória expressiva, tivessem que passar pelo sofrimento diante da pandemia.

É preciso dizer que ninguém merece morrer. Não há merecimento para a morte. O punitivismo que reina soberano na extrema direita brasileira contamina a tal ponto parte importante da esquerda que a impede de se compadecer das mortes. É quando a política não deixa espaço para o luto. Mas isso só acontece quando perdemos respeito pelos vivos.

E o governo Bolsonaro tem mostrado um desdém não apenas pela pobreza, mas por tudo que não for o seu espelho. Com isso ele sedimenta o seu eleitorado pelo ódio e pelo desprezo explícito pela vida; por conseguinte, pelos mortos.

Com efeito, a sua grande vitória é contaminar a esquerda pelo mesmo ódio que veda qualquer chance de uma política criativa e que não seja meramente uma resistência, neste caso com as mesmas armas. Quando passa a repetir o comportamento daquilo que critica a esquerda não está apenas sendo incoerente, afinal a incoerência nos atravessa como humanos. Está enterrando a possibilidade de mudar uma estrutura punitivista por se afundar num revanchismo sem fim.

*Érico Andrade é professor de filosofia na Universidade Federal de Pernambuco (UFPE).

Veja todos artigos de

10 MAIS LIDOS NOS ÚLTIMOS 7 DIAS

Arquétipos e símbolos
Por MARCOS DE QUEIROZ GRILLO: Carl Jung combinou a literatura, a narração de histórias e a psicanálise para chegar às memórias inconscientes coletivas de certos arquétipos, promovendo a reconciliação das crenças com a ciência
Apelo à comunidade acadêmica da USP
Por PAULO SÉRGIO PINHEIRO: Carta para a Agência USP de Cooperação Acadêmica Nacional e Internacional – AUCANI
O humanismo de Edward Said
Por HOMERO SANTIAGO: Said sintetiza uma contradição fecunda que foi capaz de motivar a parte mais notável, mais combativa e mais atual de seu trabalho dentro e fora da academia
O forró na construção do Brasil
Por FERNANDA CANAVÊZ: A despeito de todo preconceito, o forró foi reconhecido como manifestação nacional cultural do Brasil, em lei sancionada pelo presidente Lula no ano de 2010
O marxismo neoliberal da USP
Por LUIZ CARLOS BRESSER-PEREIRA: Fábio Mascaro Querido acaba de dar uma notável contribuição à história intelectual do Brasil ao publicar “Lugar periférico, ideias modernas”, no qual estuda o que ele denomina “marxismo acadêmico da USP
Minha infância nos porões da Bela Vista
Por FLORESTAN FERNANDES: “Eu morava lá na casa dele e queria sair de lá, eu dizia que passava mal, que comia mal, dormia mal e tudo ia mal, e ela não acreditava”
Incel – corpo e capitalismo virtual
Por FÁTIMA VICENTE e TALES AB´SÁBER: Palestra de Fátima Vicente comentada por Tales Ab´Sáber
Sofia, filosofia e fenomenologia
Por ARI MARCELO SOLON: Considerações sobre o livro de Alexandre Kojève
A ampliação do Museu de Arte de São Paulo
Por ADALBERTO DA SILVA RETTO JR.: O vão livre do MASP será um espaço inclusivo ou excludente de alguma forma? A comunidade ainda poderá ali se manifestar? O famoso “vazio” continuará sendo livre, no mais amplo sentido do termo?
A “bomba atômica” do tarifaço de Donald Trump
Por VALERIO ARCARY: Não é possível compreender o “momento Trump” do tarifaço sem considerar a pressão de mais de quarenta anos dos déficits comercial e fiscal gigantescos e crônicos nos EUA
Veja todos artigos de

PESQUISAR

Pesquisar

TEMAS

NOVAS PUBLICAÇÕES