Socialismo – revolução ou evolução sistêmica?

Imagem: George Becker
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Por FERNANDO NOGUEIRA DA COSTA*

A identidade de classe e a consciência de classe se manifestam de maneiras diferentes em locais de trabalho mais diversificados e fragmentados

O socialismo, conforme teorizado por Karl Marx, deveria ser entendido como uma fase de transição entre o capitalismo e o comunismo. O socialismo seria alcançado através do desenvolvimento das forças produtivas até o ponto no qual a escassez material fosse superada e, simultaneamente, a desigualdade eliminada. A quantidade de conquistas alteraria a qualidade da sociedade.

A sociedade teria a capacidade de produzir bens suficientes para atender às necessidades básicas de todos os seus membros. Reinaria a abundância!

Com a superação da escassez, o trabalho deixaria de ser alienante, pois os trabalhadores não mais estariam sujeitos à exploração capitalista. Em vez disso, o trabalho seria uma atividade criativa e autorrealizadora.

A abolição da propriedade privada dos meios de produção levaria à redistribuição dos recursos, eliminando a desigualdade econômica. A propriedade coletiva garantiria os benefícios de a produção serem compartilhados equitativamente.

O socialismo eliminaria as classes sociais, promovendo a igualdade em termos de oportunidades e resultados. Não se obteria apenas a igualdade econômica, mas também a igualdade em termos de acesso à educação, saúde e outros serviços essenciais.

Na visão original marxista, a superação da escassez e a eliminação da desigualdade seriam interdependentes. Isto porque a escassez cria condições para a competição e a desigualdade, enquanto a desigualdade mantém a escassez ao restringir o acesso equitativo aos recursos e oportunidades.

O socialismo era visto como uma fase de transição onde a sociedade ainda trabalharia para superar a escassez e eliminar a desigualdade. Esta fase requereria um planejamento econômico centralizado e a ditadura do proletariado para reorganizar a economia e a sociedade.

Na prática, os regimes socialistas do século XX enfrentaram dificuldades em superar tanto a escassez (pobreza) quanto a desigualdade. As economias planejadas centralmente não conseguiram alcançar a eficiência necessária para eliminar a escassez, enquanto a criação de uma nova elite burocrática perpetuou formas de desigualdade.

A China adaptou suas práticas socialistas ao incorporar elementos de economia de mercado, buscando superar a escassez através do crescimento econômico e inovação. Em contrapartida, isso reintroduziu a desigualdade social.

Na teoria marxista, o socialismo é uma evolução sistêmica progressiva em busca de superar a escassez e eliminar a desigualdade. Estas duas condições estão interligadas.

A ideologia do socialismo visa criar uma sociedade onde os recursos serão abundantemente disponíveis e equitativamente distribuídos, preparando o caminho para o comunismo, onde o Estado e as classes sociais desaparecerão completamente. A realização prática desse ideal, entretanto, foi anacrônico diante ter sido tentado em países com baixo desenvolvimento no modo de produção capitalista, conforme as circunstâncias históricas e contextuais de cada qual.

Para agravar o anacronismo diante a atual realidade, com a robotização substituta do trabalho operário e a automação do processo de produção não desaparece o sujeito revolucionário capaz da condução da sociedade ao socialismo?

Essa questão sobre o papel do trabalhador como agente revolucionário no contexto da robotização e automação da produção é interessante e complexa.

De fato, com o avanço da robotização e automação, muitas tarefas anteriormente realizadas por trabalhadores humanos estão sendo substituídas por máquinas e inteligência artificial. Isso tem impactos significativos na estrutura do emprego, especialmente em setores de manufatura e produção.

A tradicional base de trabalhadores industriais historicamente desempenhou um papel central em movimentos sindicais e lutas trabalhistas. Agora, está diminuindo em tamanho e influência, devido à automação. O sindicalismo está decadente.

Enquanto alguns empregos são substituídos, estão surgindo novas oportunidades em setores relacionados à tecnologia, programação, manutenção de máquinas etc. Estes novos trabalhadores desenvolverão uma consciência de classe e interesses compartilhados?

Os trabalhadores qualificados em setores emergentes, como tecnologia da informação e serviços digitais, se organizarão e mobilizarão em torno de questões trabalhistas específicas, como salários, condições de trabalho e segurança no emprego? Ou simplesmente cada qual mudará de emprego caso fique insatisfeito?

Em outros casos, como na “urberização”, a fragmentação do mercado de trabalho e a proliferação de empregos precários e temporários podem dificultar a organização e a mobilização dos trabalhadores em torno de interesses comuns.

A noção de “trabalhador” está mudando, para “microempreendedores” e/ou “pejotizados”, porque novos tipos de ocupações surgem. A identidade de classe e a consciência de classe se manifestam de maneiras diferentes em locais de trabalho mais diversificados e fragmentados.

A automação e a robotização estão transformando as relações de produção, criando contradições e antagonismos entre capital e trabalho como a superexploração em jornadas extensas em home office. No entanto, o surgimento de uma classe trabalhadora revolucionária depende da capacidade dos trabalhadores de se organizarem e se mobilizarem em torno de interesses comuns.

A revolução socialista não se basearia exclusivamente na classe trabalhadora industrial, como Marx previu. Novos sujeitos sociais e formas de luta surgiram, incluindo trabalhadores do conhecimento, ativistas ambientais, comunidades marginalizadas e outros grupos identitários.

Portanto, a robotização e a automação estão mudando a paisagem do trabalho e desafiando concepções tradicionais sobre a classe trabalhadora e sua capacidade de conduzir a transformação social. Enquanto alguns aspectos do sujeito revolucionário podem estar mudando, a luta por justiça social, igualdade e emancipação continua, e novas formas de organização e mobilização surgem em resposta às oportunidades apresentadas pela mudança tecnológica e econômica.

Indivíduos detentores de capital humano, como profissionais altamente qualificados, especialistas em tecnologia, consultores, entre outros, demonstram ter uma relação ambígua com a consciência de classe trabalhadora e o empreendedorismo. Muitos supervalorizam suas habilidades e conhecimentos especializados, e sua identidade profissional estar mais ligada à sua expertise em vez de sua posição como parte da classe trabalhadora tradicional.

Profissionais com capital humano elevado se sentem, cultural e socialmente, distantes de trabalhadores em empregos menos qualificados. Isso dificulta sua identificação com uma consciência de classe comum.

Alguns desses profissionais se envolvem em empreendedorismo de conhecimento, iniciando suas próprias empresas com base em suas habilidades especializadas. Eles então se identificam mais como empreendedores em vez de como trabalhadores assalariados.

Profissionais com capital humano significativo valorizam a independência e a autonomia obtidas com a criação de suas próprias empresas. Leva-os a se identificar mais com a figura do empreendedor diante a classe trabalhadora.

A identidade de classe é apenas uma parte da identidade de um indivíduo, influenciada por outros aspectos como gênero, raça, etnia, orientação sexual etc. A interseccionalidade dessas identidades influencia como os indivíduos se veem e se identificam.

A consciência de classe não é estática por ser moldada por experiências pessoais, sociais e políticas. A consciência de classe trabalhadora depende de uma variedade de fatores, entre os quais, suas experiências no local de trabalho, suas crenças políticas e sua compreensão das relações de poder na sociedade. Podem reconhecer sua posição dentro das relações de classe e poder – e se envolver em lutas trabalhistas e movimentos sociais em busca de justiça e igualdade.

*Fernando Nogueira da Costa é professor titular do Instituto de Economia da Unicamp. Autor, entre outros livros, de Brasil dos bancos (EDUSP). [https://amzn.to/3r9xVNh]


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