Por PLÍNIO DE ARRUDA SAMPAIO JR.*
A omissão do debate público sobre o que fazer para enfrentar a epidemia de coronavírus e a depressão econômica, deixa a classe trabalhadora desarmada para enfrentar o novo ciclo de ofensiva do capital
Encerrado o mundo da fantasia reinante durante o período eleitoral, impõe-se a dura realidade de uma sociedade em plena crise civilizatória. A omissão do debate público sobre o que fazer para enfrentar a epidemia de coronavírus e a depressão econômica – problemas centrais da conjuntura nacional – deixa a classe trabalhadora desarmada para enfrentar o novo ciclo de ofensiva do capital.
Por medo de tocar em temas espinhosos que pudessem contrariar o senso comum, os candidatos ocultaram criminosamente a gravidade da epidemia de coronavírus. Ainda que, desde a segunda semana de novembro, médicos e epidemiologistas viessem alertando repetidas vezes que o número de infecções e mortes decorrentes do coronavírus estava aumentando sistematicamente.1 A consequência de ignorar a realidade é que a crise sanitária se transformou numa verdadeira bomba-relógio programada para explodir nas festas do final de ano.
Nas cidades do Rio de Janeiro e São Paulo, onde a disponibilidade de leitos de UTIs se aproximava perigosamente do ponto de saturação, a irresponsabilidade e a impostura foram explícitas. Mal as urnas do segundo turno esfriaram, governantes que até então negavam de pés juntos o recrudescimento vertiginoso das infecções e a urgência de limitar a circulação das pessoas anunciaram, com ares compungidos, medidas improvisadas para a ampliação dos leitos hospitalares e tímidas providências para restringir a aglomeração da população.
No governo federal, a incompetência e a desfaçatez são imbatíveis. Com vinte e dois estados registrando taxa de reprodução das infecções por coronavírus superior a 1 – dezessete deles com tendência de aceleração –, o Ministério da Saúde recusa-se a reconhecer a urgência de adotar medidas de isolamento social. Mesmo apostando todas as fichas na “imunidade de rebanho” como estratégia sanitária, o governo Bolsonaro sequer dispõe de um plano nacional de vacinação. Antes de cuidar da saúde da população, o Presidente da República dedica-se à inglória “guerra da vacina” com seus desafetos e a instigar seus apoiadores a zombar da morte com a campanha #VaiTerNatalSim.²
Ao esconder da população a gravidade da crise econômica e seus efeitos catastróficos sobre as finanças públicas, expediente muito conveniente para quem prometia mundos e fundos aos eleitores, o debate eleitoral deixou a população completamente desnorteada para enfrentar a tormenta que se avizinha. Mesmo com a recuperação parcial das perdas provocadas pelas medidas de quarentena, que levou à queda de quase 12% no PIB do segundo trimestre de 2020 em relação ao mesmo período do ano anterior, a economia brasileira permanece deprimida.
A injeção de mais de 8% do PIB em gastos públicos, financiados pelo orçamento de guerra votado pelo Congresso Nacional, não impediu que, no terceiro trimestre, o nível de atividade ficasse 5% abaixo do observado no mesmo período do ano anterior, nem tampouco que o mercado de trabalho continuasse deprimido, deixando praticamente um a cada três integrantes da força de trabalho desempregado, subempregado (trabalhando menos do que gostaria) ou simplesmente desalentado (desistindo de procurar emprego).
Para surpresa geral, a recessão veio acompanhada de expressivo aumento no custo de vida. Mesmo com o índice oficial da inflação estabilizado em torno de 3,5 a 4% ao ano, a maxidesvalorização do Real em relação ao dólar e o deslocamento da oferta de alimentos para o mercado externo levaram o aumento nos preços dos componentes da cesta básica de alimentos ao patamar de dois dígitos percentuais, corroendo de forma drástica o já combalido poder efetivo de compra das famílias.
Ao contrário do sugerido pelos sacerdotes da ordem, que ano após ano preveem uma retomada do crescimento que nunca se realiza, a recessão da economia brasileira é profunda e não tem data para terminar. Enquanto a crise sanitária mundial não for superada, o que, segundo o cenário de base do FMI, só deve ocorrer no final de 2022, não há nenhuma possibilidade de uma retomada um pouco mais sustentável do crescimento da economia mundial.3
Mas mesmo após o fim da pandemia, não estará garantida a recuperação da economia brasileira. A crise em curso não é uma continuidade linear da estagnação que se arrasta desde 2015, mas sua metástase numa crise estrutural que coloca em questão a própria estabilidade do modelo econômico.
O gigantesco desequilíbrio das finanças públicas e a crescente vulnerabilidade do setor externo colocam em questão as premissas macroeconômicas do regime de metas inflacionárias e austeridade fiscal que balizam a política econômica. O aprofundamento da crise social reforça o risco de uma rebelião das classes subalternas. Infelizmente, nada disso foi objeto do debate eleitoral.
O agravamento das crises sanitária, econômica e social coloca em perspectiva um forte acirramento da luta de classes. É o que se viu na última semana, por exemplo, na Guatemala e na Índia, onde trabalhadores protagonizaram manifestações sem precedentes contra o ajuste neoliberal. Apoiar as lutas de resistência à ofensiva do capital contra o trabalho, debater a urgência de um projeto de ofensiva do trabalho contra o capital e construir organizações revolucionárias que estejam à altura dos desafios históricos são as tarefas fundamentais do próximo momento.
*Plínio de Arruda Sampaio Jr. é professor aposentado do Instituto de Economia da Unicamp. Autor, entre outros livros, de Entre a nação e a barbárie – dilemas do capitalismo dependente (Vozes).
Notas
1 https://susanalitico.saude.gov.br/extensions/covid-19_html/covid-19_html.html
2 covid19