Tirano Banderas

Imagem: Eduardo Berliner
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Por WALNICE NOGUEIRA GALVÃO*

Comentário sobre o livro, de 1926, de Ramón Maria Del Valle-Inclán

As ditaduras latino-americanas – ai de nós – despertam há muito as atenções da literatura e espicaçam a escrita de romances. A maioria nasce dos filhos da terra e podem até ter doído em sua própria pele. Pois as ditaduras costumam ter por alvo intelectuais e artistas, considerando que pensar com a própria cabeça é o pior dos crimes.

Um ancestral remoto desses romances é Nostromo, de Joseph Conrad, cujo protagonista, oriundo de fora, aliás italiano como um condottiere do Renascimento, acaba tomando o poder na imaginária república caribenha de Costaguana.

O autor, polonês naturalizado inglês, foi marinheiro da marinha mercante por muitos anos. Seus livros se passam de preferência em águas asiáticas, como Malásia, Indonésia, Bali, ou mesmo na África. É o caso de um dos principais, O coração das trevas, tremenda radiografia dos males do colonialismo, mostrando como, enquanto extermina os nativos, apodrece por dentro seus praticantes. Acabou inspirando um grande filme, Apocalypse now, de Francis Ford Coppola, ajuste de contas com o estrago moral e político causado no tecido social norte-americano pela invasão do Vietnã pelos Estados Unidos, que ceifou cerca de três milhões de vidas vietnamitas, a maioria civis.

No entanto, aquele que parece ser o pai direto de todos os outros é de um autor também forasteiro, talvez menos forasteiro que Conrad. O espanhol Ramón de Valle-Inclán, autor de Tirano Banderas, viajou longamente por nosso continente. Era membro da afamada “Geração de 1898” na Espanha, brilhante advento de jovens que renovaram a literatura e a modernizaram, extirpando-lhe o ranço novecentista. Escreveu poesia e prosa simbolista e decadentista. Era personagem conhecido da boemia artística e da vida noturna madrilena, dizem que mitômano e impostor: ou seja, devia ser muito divertido.

É de sua invenção, ou pelo menos teorização, a estética do “esperpento”, vocábulo polivalente que indica o grotesco aliado ao fantástico em arte e literatura. Ele pregava seu uso, porque tais efeitos de choque retiram o leitor/espectador da pasmaceira com que recebe o que lhe dão, fazendo-o cair em si e pensar. Há detalhes na revista eletrônica El Pasajero, dedicada exclusivamente a este autor.

Essa mescla volátil de anarquismo político com plataforma estética daria origem a uma linhagem poderosa, de grife inconfundível, facilmente identificável nas artes espanholas: o surrealismo, Dalí, Buñuel, Almodóvar. Todos eles com a bossa do desrespeito: iconoclastas, petroleiros, dinamitadores das convenções burguesas.

Tirano Banderas passa-se na locação imaginária de Santa Fe de Tierra Firme, no Oceano Pacífico. Exercita prosa modernista, enxuta, telegráfica, de grande síntese e concentração, com metáforas lancinantes. Os títulos da linhagem são os que seguem, todos muito instrutivos.

El señor presidente (1946), de Miguel Ángel Astúrias, da Guatemala, que se baseou no ditador Estrada Cabrera, no início do séc. XX. Yo el Supremo (1974), de Roa Bastos, do Paraguai, tem como modelo o ditador Francia, do séc. XIX. “El Supremo” era seu título na vida real. Foi escrito no exílio.

El otoño del patriarca (1975), de Gabriel Garcia Márquez, da Colômbia, põe em cena um velho general ditador, num país do Caribe, no séc. XX, mas focaliza especialmente o aparelho de terror de Estado que criou e que o sustentou. A festa do bode (2000), de Vargas Llosa, do Peru, concentra-se na República Dominicana e no assassinato de seu ditador Trujillo, esmiuçado em três narrativas entrelaçadas.

Destes quatro autores, três receberam o Nobel, prova da popularidade do Realismo Mágico hispano-americano à época. Devido à pouca penetração da língua portuguesa, ninguém lembrava que Macunaíma e Grande sertão: veredas já pertenciam ao Realismo Mágico antes que essa categoria estética fosse inventada.

Tirano Banderas é literariamente o mais realizado de todos, porque sua narrativa é criativa e não propriamente realista. Pratica a “desgeograficação” que Mário de Andrade preconizava, generalizando para toda a América Latina costumes, paisagens e sobretudo linguagens de diferentes países. É mesmo um precursor, um fundador de linhagem.

*Walnice Nogueira Galvão é Professora Emérita da FFLCH da USP. Autora, entre outros livros, de Lendo e relendo (Senac/Ouro sobre azul).

 

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