Por ANTÔNIO DAVID*
Considerações sobre o ataque de Jair Bolsonaro a Marília Moschkovich
No último dia 10 de maio, Jair Bolsonaro atacou a socióloga Marília Moschkovich nas redes sociais, associando-a ao que ele chamou de “extrema esquerda” que visa à “destruição de tudo para então se colocar como a única solução para o caos”. Desde então, a professora da USP vem compartilhando em suas redes sociais relatos dos lamentáveis desdobramentos do ataque em sua vida pessoal.
Como pesquisadora, Marília Moschkovich realiza estudos de gênero, sexualidade e família, temas que ela vem abordando da ótica das relações de poder, e tanto seus trabalhos acadêmicos como seus posicionamentos públicos têm um inequívoco viés anticonservador, logo antibolsonarista. Não surpreende, portanto, que ela tenha sido alvo de um ataque vindo de Jair Bolsonaro: pelos temas de pesquisa, pelas ideias e tomadas de posição, e pelo fato de ela ser mulher – uma mulher, como ela próprio anunciava em uma rede social, “contra a moral, a família e os bons costumes”.
Não é de menor importância que o ataque teve lugar apenas alguns dias depois do show de Madonna no Rio de Janeiro: de maneira calculada ou não, Jair Bolsonaro aproveitou-se da ocasião aberta pela grande circulação de mensagens conservadoras associadas a esses mesmos temas nos dias que sucederam ao show para, elegendo um alvo adequado, “surfar na onda”. Uma ocasião possivelmente favorável a ganhar corações e mentes indecisos, de pessoas que não sendo bolsonaristas convictas podem, todavia, pender ao bolsonarismo.
Quero, contudo, chamar a atenção para outra motivação do mencionado ataque, isto é, de por que Jair Bolsonaro a elegeu como alvo, complementar àquelas. Como já destaquei, Marília Moschkovich é socióloga e professora universitária. É plausível que ela tenha se tornado um alvo “perfeito” de Jair Bolsonaro e do bolsonarismo por conjugar, ao mesmo tempo, esses três fatores: por tomar as posições que toma e defender as ideias que defende sobre temas caros ao bolsonarismo, por ser mulher e por ser uma acadêmica, pesquisadora e professora de universidade pública.
A conjunção desses fatores torna cada um deles mais demoníaco aos olhos do bolsonarismo. É imperativo reconhecer, portanto, que o ataque não teve viés apenas conservador e misógeno, mas possuiu também um marcado componente obscurantista.
Como sabemos, é sobretudo contra professores (por extensão, cientistas, pesquisadores e intelectuais) e contra ideias que o obscurantismo despeja sua munição. Mas isso não explica tudo em se tratando do ódio e repulsa do bolsonarismo às universidades públicas. Para o compreender, penso ser necessário levar em conta um dado que há tempos vem chamando minha atenção em pesquisas nacionais de opinião, sobre o qual pouco se escreve e se fala.
Religião, juventude e ensino superior
Após 2018, o instituto Datafolha incluiu a religião entre os recortes de sua amostra em pesquisas de opinião – o que não ocorreu nas pesquisas realizadas durante a eleição de 2018 e nas anteriores.[i] Ainda que haja pesquisas mais recentes contendo o recorte “religião” na amostra, tomarei como referência aqui a pesquisa nacional realizada na véspera do segundo turno da eleição presidencial em 2022, nos dias 28 e 29 de outubro daquele ano, por conta de sua amostra bastante representativa (8.308 entrevistados). Na pesquisa em questão, a divisão da população segundo a religião era a seguinte:
Religião | Total |
Católica | 55% |
Evangélica TOTAL | 25% |
Evangélica Pentecostal | 12% |
Evangélica Protestante | 4% |
Evangélica Neopentecostal | 2% |
Outras respostas Evangélicas | 5% |
Não frequenta nenhuma igreja | 1% |
Espírita | Kardecista | 3% |
Umbanda | 1% |
Adventista | 1% |
Candomblé | 1% |
OUTRAS RELIGIÕES | 5% |
NÃO TEM RELIGIÃO/ SEM RELIGIÃO | 9% |
Esse dado importa não apenas pelo que revela, mas também, e sobretudo, pela realidade que esconde. Ao cruzá-lo com outros recortes da mesma pesquisa (especificamente, faixa etária e escolaridade), o resultado é surpreendente:
Religião | Faixa etária | Escolaridade | ||||||
16 a 24 anos | 25 a 34 anos | 35 a 44 anos | 45 a 59 anos | 60 anos ou mais | Funda-mental | Médio | Superior | |
Católica | 41% | 48% | 53% | 61% | 66% | 64% | 52% | 50% |
Evangélica TOTAL | 27% | 27% | 27% | 24% | 21% | 26% | 27% | 22% |
Evangélica Pentecostal | 13% | 12% | 13% | 13% | 10% | 14% | 13% | 8% |
Evangélica Protestante | 3% | 5% | 6% | 4% | 4% | 2% | 5% | 6% |
Evangélica Neopentecostal | 3% | 2% | 2% | 2% | 3% | 3% | 2% | 2% |
Outras respostas Evangélicas | 7% | 7% | 5% | 4% | 3% | 5% | 6% | 4% |
Não frequenta nenhuma igreja | 1% | 2% | 1% | 1% | 0% | 1% | 1% | 2% |
Espírita | Kardecista | 1% | 2% | 3% | 3% | 4% | 1% | 2% | 5% |
Umbanda | 2% | 1% | 1% | 1% | 1% | 0% | 1% | 2% |
Adventista | 1% | 2% | 1% | 2% | 0% | 1% | 1% | 1% |
Candomblé | 1% | 1% | 1% | 0% | 0% | 0% | 1% | 1% |
Outras religiões | 7% | 6% | 6% | 4% | 4% | 3% | 6% | 7% |
Não tem religião / sem religião | 19% | 13% | 9% | 5% | 4% | 5% | 10% | 13% |
Como se pode observar, entre os mais jovens o percentual dos que declaram não ter religião é nada menos que o dobro da média nacional.[ii] A tabela sugere ainda – o que só pesquisas podem confirmar – que o crescimento da população que não tem religião tem sido mais acelerado do que o tão falado crescimento das confissões evangélicas: se na população mais velha 66% declaram-se católicos, e entre os mais jovens esse percentual cai para 41%, a diferença (25%) distribui-se desigualmente (evangélicos são 21% entre os mais velhos e 27% entre os mais jovens – uma diferença de 6% –, ao passo que os que não têm religião são apenas 4% entre os mais velhos e 19% entre os mais jovens – uma diferença de 15%). Sabe-se que uma parcela destes se converterá no futuro; ainda assim, a desigual distribuição é significativa e reveladora de uma possível tendência, que merece ser pesquisada e melhor compreendida.
Quando olhamos para a escolaridade, vemos um quadro semelhante, marcado pela significativa discrepância nessa resposta entre aqueles que têm ensino fundamental, ensino médio e ensino superior: e se, entre os mais jovens, 19% declaram não ter religião, esse percentual é sem dúvida maior entre os jovens com ensino superior, o que é significativo em um quadro de aumento consistente e prolongado de matrículas no ensino superior.[iii]
Não tenho ciência de publicações acadêmicas sobre a clara correlação entre a resposta em questão, faixa etária e escolarização. Em 2022 tive a oportunidade de conversar pessoalmente com o cientista político Vinícius Valle, especialista em estudos de religião (com ênfase em evangélicos) e pesquisador do Observatório Evangélico, e na ocasião ele declarou desconhecer estudos sobre o assunto. Há algumas reportagens e textos na internet, como a reportagem da jornalista Thais Carrança publicada na BBC News Brasil em 09 de maio de 2022, “Jovens ‘sem religião’ superam católicos e evangélicos em SP e Rio”, e que mostra um quadro ainda mais surpreendente nas grandes cidades.
A correlação entre faixa etária e escolarização é conhecida: como se sabe, aumenta dos mais velhos aos mais jovens, haja vista o significativo aumento de matrículas no ensino superior nos últimos trinta anos (e no ensino superior público nos governos encabeçados pelo PT). O que aqui vemos é algo distinto: uma correlação entre faixa etária, escolarização e religião. Qual é a natureza da correlação, é uma questão para se pesquisar. Uma hipótese, a ser igualmente testada em pesquisas e debatida, é que não ter religião tem bastante a ver com o ambiente universitário.
A mutação
É instrutivo ouvir o relato da pastora carioca Raquel Prado, eleitora e apoiadora de Bolsonaro, que em maio de 2022 foi entrevistada pela jornalista Nathalia Passarinho, da BBC News Brasil, para a reportagem “Como pensam evangélicas, que podem definir eleição para presidente”. Questionada pela repórter sobre o que exatamente coloca em risco “a família” – razão principal pela qual Raquel Prado declarara apoiar Jair Bolsonaro –, ela respondeu: “Eu vejo pessoas entrando para a faculdade, jovens entrando para a faculdade e famílias perdendo seus filhos por causa das ideologias esquerdistas que se aplicam lá dentro, que se obriga lá dentro. Pessoas mudadas, transformadas”.
A repórter então pergunta: “Perdendo de que forma?”. Raquel Prado responde: “Perdendo a sua identidade, a sua identidade sendo roubada por uma ideologia criada, por uma mutação, eu chamo de mutação. Eu não chamo daquilo que é original. A ideologia que você pode fazer o que quer e não assumir as consequências. Eu faço o que eu quero, vivo do jeito que eu quero”.
A correlação entre religião, faixa etária e escolarização tem possivelmente menos a ver com as “ideologias esquerdistas” do que com as aspirações e modos de vida ensejados na e pela escolarização, sobretudo de nível superior. Ainda assim, o relato é rico e interessa na medida em que atesta uma aguda percepção do que está realmente acontecendo, de processos bastante reais e concretos, independentemente de como (e com que recursos) se interpreta isso que é percebido. Sabe-se, por exemplo, que entre as mulheres que ingressam no ensino superior o interesse ou a disposição em constituir família e ter filhos é menor. É plausível que fenômenos como esse informem a percepção de pessoas como a pastora Raquel.
Nesse sentido, e resguardadas as diferenças, o relato da pastora lembra o temor de Maria Fernandes, mãe de Florestan Fernandes: em diversas entrevistas e depoimentos, Florestan declarou que sua mãe, uma empregada doméstica analfabeta, não queria que ele estudasse pelo temor de que ele se afastasse dela. O afastamento, no caso, pode ser tanto físico como simbólico. Fenômenos como esse, de real afastamento ou o mero temor de afastamento, podem ter tido (e ainda ter) peso na produção e reprodução do bolsonarismo – hipótese que só a pesquisa acadêmica de base empírica pode confirmar ou descartar.
Mais do que representativa, essa percepção talvez seja constitutiva mesmo do bolsonarismo, pois uma ideologia só nasce e ganha extraordinária força quando um determinado chão social permite que exista, ou a exige. De volta, a ideologia oferece (melhor seria dizer, reforça) um repertório coerente capaz de colocar ordem no caos, de interpretar. Uma coisa é certa: não há dúvida de que o bolsonarismo é expressão de experiências bastante concretas, vividas e percebidas por pessoas comuns.
A experiência de quem vê muito de perto o que parece ser um crescente afastamento de jovens (filhos, netos, sobrinhos, filhos de vizinhos, amigos dos filhos etc.) em relação a modos de vida associados à religião, e não gosta do que vê, tem muito pouco a ver com os professores, menos ainda com ideologias esquerdistas. Entretanto, tudo indica que tem muito a ver com o ensino superior. E se essa hipótese se confirmar, faz todo o sentido que professores, cientistas e intelectuais sejam alvo do bolsonarismo.
Caso se confirme uma tendência ao aumento de jovens sem religião, associada ao aumento das matrículas no ensino superior, talvez o mais correto seja dizer não que o Brasil está caminhando para se tornar um país majoritariamente evangélico, como se tornou lugar comum, mas sim que o Brasil está caminhando para se tornar um país polarizado entre essa maioria e um também crescente – e talvez mais acelarado – aumento da não religião entre os mais jovens, sobretudo com nível superior.
Talvez o fortalecimento de posições de direita e extrema direita entre os primeiros seja em parte resposta ao silencioso avanço dos segundos – novamente, hipótese que apenas a pesquisa empírica pode confirmar. De todo modo, no caso das igrejas neopentecostais, a tabela mostra que o percentual de jovens adeptos é igual ao percentual de adeptos entre os mais velhos: 3%. Há muito mais jovens aderindo à não religião do que ao neopentecostalismo.
Sob esse pano de fundo, o ataque de Jair Bolsonaro a Marília Moschkovich era até previsível. Afinal, além de defender publicamente certas ideias e de ser mulher, Marília Moschkovich é acadêmica. E como se não bastasse, é professora justamente na Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas (FFLCH) da USP, a Sodoma e Gomorra do meio universitário brasileiro.
*Antônio David é doutor em Filosofia pela USP e doutorando em História Social na mesma instituição.
Notas
[i]Na ausência dos dados atualizados do Censo, o Datafolha realiza pesquisas para definir a amostra.
[ii]Cabe aqui a advertência: a resposta “não tem religião/sem religião” não é indicador de ateísmo.
[iii]Apenas a tabela divulgada pelo Datafolha não permite realizar esse cruzamento. Para tanto, seria necessário ter acesso às planilhas da pesquisa.
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