Um herói da ditadura

Bill Woodrow, Enxofre, 1994.
Whatsapp
Facebook
Twitter
Instagram
Telegram

Por WAGNER ROMÃO*

Sobre a revogação do título de “doutor honoris causa”, concedido pela Unicamp a Jarbas Passarinho em 1973

Na próxima terça-feira, 28 de setembro, o Conselho Universitário da Unicamp terá a chance de reparar uma decisão contrária à formação científica e cidadã que nossa Universidade tem a missão de transmitir a nossas e nossos estudantes e à sociedade.

Em 1973, no período mais violento da ditadura militar, a Unicamp concedeu ao então ministro da Educação, o coronel Jarbas Passarinho, o título de Doutor Honoris Causa.

O Estatuto da Unicamp, no capítulo “Dignidades Universitárias” prevê que sejam agraciadas com esse título “pessoas que tenham contribuído, de maneira notável, para o progresso das ciências, das letras ou das artes” e, ainda, “aos que tenham beneficiado, de forma excepcional, a humanidade ou tenham prestado relevantes serviços à Universidade”.

Além do coronel Passarinho, a Unicamp já agraciou com o Doutor Honoris Causa homens como os físicos Gleb Wataghin e Cesar Lattes, o professor Antonio Cândido de Mello e Souza, os escritores Mário Quintana e Ernesto Sábato, o político André Franco Montoro, o arquiteto Oscar Niemeyer, os bispos Dom Paulo Evaristo Arns e Dom Pedro Casaldáliga, o químico Otto Gottlieb, o médico Willy Jean Malaisse, o engenheiro Cristiano Amon, o marechal-do-ar Casimiro Montenegro Filho.

Apenas no mês passado, a demógrafa Elza Berquó se tornou a primeira mulher a receber o título, o que também deve nos causar revolta, tantas são as cientistas, artistas e literatas dignas deste título em nosso país e fora dele.

Todas essas pessoas são lembradas por sua dedicação às ciências, às artes, à universidade e à humanidade de modo mais geral. Não é o caso do coronel Passarinho.

Passarinho é lembrado por ter sido um dos artífices do Ato Institucional número 5, o “golpe dentro do golpe”, que escancarou o autoritarismo e a perseguição aos opositores da ditadura militar. Professores, técnicos-administrativos e estudantes foram perseguidos, aposentados compulsoriamente, exilados, torturados, assassinados. A universidade brasileira foi um dos principais alvos do AI-5.

O título foi proposto pelo reitor Zeferino Vaz na primeira sessão extraordinária do Conselho Diretor da Unicamp – ainda não existia o Conselho Universitário com sua diversidade de representações – no dia 30 de novembro de 1973. Cinco dias depois, Passarinho participaria de uma formatura na Unicamp como paraninfo de turma e lhe seria entregue o título.

Quem lê a ata da sessão acima citada, percebe como aquela homenagem “de ocasião” – feita às pressas, no contexto de um regime de exceção e numa universidade ainda frágil – era parte da estratégia de Zeferino Vaz para proteger a Unicamp, que ele estava construindo.

A concessão deste título a um herói da ditadura – que mandou “às favas os escrúpulos de consciência” na edição do AI-5 – marca um período de sombras na história da Universidade no Brasil, em que dirigentes das universidades concediam honrarias aos seus próprios algozes como estratégia de sobrevivência política.

É para que essa mácula não mais nos pese, para honrar as outras pessoas que já receberam o Doutor Honoris Causa pela Unicamp e pela afirmação da autonomia da Universidade pública brasileira – nestes tempos em que a democracia novamente é ameaçada por integrantes do poder central – que votarei a favor da revogação deste título.

*Wagner Romão é professor de ciência política e representante docente no Conselho Universitário da Unicamp.

 

Veja todos artigos de

10 MAIS LIDOS NOS ÚLTIMOS 7 DIAS

Arquétipos e símbolos
Por MARCOS DE QUEIROZ GRILLO: Carl Jung combinou a literatura, a narração de histórias e a psicanálise para chegar às memórias inconscientes coletivas de certos arquétipos, promovendo a reconciliação das crenças com a ciência
Apelo à comunidade acadêmica da USP
Por PAULO SÉRGIO PINHEIRO: Carta para a Agência USP de Cooperação Acadêmica Nacional e Internacional – AUCANI
O marxismo neoliberal da USP
Por LUIZ CARLOS BRESSER-PEREIRA: Fábio Mascaro Querido acaba de dar uma notável contribuição à história intelectual do Brasil ao publicar “Lugar periférico, ideias modernas”, no qual estuda o que ele denomina “marxismo acadêmico da USP
Fundamentos da análise social
Por FABIO DE OLIVEIRA MALDONADO: Apresentação à edição brasileira do livro recém-lançado de Jaime Osorio
O martírio da universidade brasileira
Por EUGÊNIO BUCCI: A nossa universidade precisa se preparar e reforçar suas alianças com suas irmãs do norte. O espírito universitário, no mundo todo, só sobrevive e se expande quando sabe que é um só
A biblioteca de Ignacio de Loyola Brandão
Por CARLOS EDUARDO ARAÚJO: Um território de encantamento, um santuário do verbo, onde o tempo se dobra sobre si mesmo, permitindo que vozes de séculos distintos conversem como velhos amigos
A ampliação do Museu de Arte de São Paulo
Por ADALBERTO DA SILVA RETTO JR.: O vão livre do MASP será um espaço inclusivo ou excludente de alguma forma? A comunidade ainda poderá ali se manifestar? O famoso “vazio” continuará sendo livre, no mais amplo sentido do termo?
Ideologias mobilizadoras
Por PERRY ANDERSON: Hoje ainda estamos em uma situação onde uma única ideologia dominante governa a maior parte do mundo. Resistência e dissidência estão longe de mortas, mas continuam a carecer de articulação sistemática e intransigente
O fenômeno Donald Trump
Por DANIEL AARÃO REIS: Donald Trump 2 e seus propósitos “iliberais” devem ser denunciados com a maior ênfase. Se a política de potência se afirmar como princípio nas relações internacionais será funesto para o mundo e para o Brasil em particular
Minha infância nos porões da Bela Vista
Por FLORESTAN FERNANDES: “Eu morava lá na casa dele e queria sair de lá, eu dizia que passava mal, que comia mal, dormia mal e tudo ia mal, e ela não acreditava”
Veja todos artigos de

PESQUISAR

Pesquisar

TEMAS

NOVAS PUBLICAÇÕES