Por YURI ULBRICHT*
O significado da peste no mundo Antigo
“Nulla tam detestabilis pestis est, quae non homini ab homine nascatur”.
[Nenhuma peste é tão detestável que não nasça do homem ao homem]
(Cícero, M. T. De officiis. II, 5, 16)
“Eo anno pestilentia gravis incidit per urbem”
[Nesse ano grave pestilência incide pela urbe]
(Liv. XXVII, 23)
Esse que aí está, a seu modo, a chama de chuva; seus números e os seguidores deles, de gripezinha; os empresários e os economistas que os seguem, de crise; o restante da população, de fome e de dor. Surge a controvérsia quanto ao nome, porque não se concorda quanto à coisa mesma, de modo que, como a cada um pareça ser algo, cumpre mostrar que por outro nome se há de chamá-la e que, ponderando-a por seu peso, mais facilmente se há de achar o vigor do vocábulo que a nomina, para que mais propriamente se demande o que diante disso cumpre fazer.
Pandemia aparece como o vocábulo atualmente eleito pela classe médica para chamar o que o médico, o poeta, o historiador, o orador antigos, cada um à sua maneira, denominavam peste, distinguindo-a da mera doença. Equivocam-se os que pretendem causa puramente fisiológica à peste, pois a natureza responde pela doença concernente aos cuidados do corpo, mas a causa da peste tem outra natureza. A consideração puramente médica da pandemia a toma por efeito da infecção viral, o que vela os desvairados eventos que respondem pelo ritmo, pela velocidade, pela extensão de sua propagação. Assim considerada, a potência infectante do vírus espalha-o por toda a superfície do globo, levando a doença aos homens, como se o vírus regesse o movimento de seus vetores, não a concorrência febril destes, sua circulação pandêmica. Ver a infestação da doença a partir da perspectiva puramente fisiológica, naturaliza e justifica o fundamento material histórico sobre o qual a natureza e a doença natural existem e a partir do qual os eventos infecciosos proliferam. Inverte-se o agente viral: a dinâmica acelerada da vida social, gerida e regida pelos ciclos pestilenciais de valorização do valor, aparece como conjunto de deslocamentos individuais tão esporádicos e tão aleatórios, quanto epidêmicos, de modo que os indivíduos, vetores do vírus, regidos embora pela estrutura histórica e materialmente determinada que organiza o trabalho social, apareçam como regentes da disparada da infeção. Não se explica a geração da pandemia, senão segundo a natureza da doença, o que cancela o material histórico que lhe configura, não só a proliferação, senão ainda sua existência natural, o aparato técnico de comunicação social existente e o uso vigente dessa estrutura social subordinado ao capital, lançando assim sobre as ciências naturais o peso da compreensão e o encargo contemporâneo do saneamento de manifestação concernente a contradições sociais anteriormente postas e que lhes são alheias, pois, sendo embora exógena às localidades a que sobrevém, o evento pandêmico da doença subsiste endogenamente no metabolismo social que o repercute. A desconsideração das determinações materiais e da natureza histórica subjacentes à metamorfose da doença em pandemia encaminha ações de contenção como se fosse esta a escala ampliada daquela, pois se prescinde das causas remotas e adjacentes que respondem por sua transformação qualitativa.
À medicina não concerne a vida propriamente humana, mas a atividade do corpo, ou vida animal do homem, considerada separada e singularmente, o que desconsidera o aspecto pandêmico da doença, concernente à vida da urbe, ou ao corpo da cidade. Considerando-a apenas escala ampliada de uma doença física, a terapêutica médica incide sobre pacientes individuais em escala ampliada; ela age sobre a doença e sobre os corpos doentes individualmente considerados, não sobre a pandemia mesma, cujo cuidado excede o hospitalar, pois vinculado à comunicação dos corpos nas cidades e ao corpo social em seu conjunto, de modo que o concurso universal das vontades e consciências individuais, a tão propalada conscientização, não possa servir de via para a interrupção da propagação, pois não foi o curso individual dos corpos a causa de tal disseminação; por ela responde a dinâmica social da vida, que cumpre interromper para racionalizar, de modo a romper, por via de integração social global, as linhas invisíveis pelas quais a irracionalidade capitalista gesta a vida cotidiana, transformando o tempo da vida em tempo de trabalho, e a razão útil em burocracia legal. Ruptura que implica a destituição do comando do capital sobre o conjunto do trabalho social e sobre a tecnologia, por ele transformada em força produtiva de valor, como providência ética comum em favor da libertação da vida e da ciência, de modo que a quebra do ciclo global de valorização do valor, que degrada o homem e a terra, e arrasta os trabalhadores sob a roda do carro da finança, restitua o ciclo vital do acontecer humano segundo as demandas, já não do capital, mas da vida comum.
1.
Celso ensina que, inicialmente, a ciência médica participava da filosofia, tendo dos mesmos autores nascido tanto a cura das doenças, como a contemplação das coisas da natureza, e que foi Hipócrates de Cós, que se diz ter sido discípulo de Demócrito, o primeiro a tê-la separado da filosofia[i]. Depois dele, Diocles Caristio, depois, Praxágoras, Crisipo, Herófilo, Erasístrato exerceram-na procedendo por vias diversas, tendo sido a medicina, naqueles tempos[ii], repartida em três: a que medicava pela alimentação, denominaram-na dietética; a que medicava por medicamentos, farmacêutica; a que sanava pela mão, cirúrgica[iii]. Destaca-se a primeira por terem-lhe autores ilustres reivindicado a cognição das coisas da natureza, como se sem essa disciplina racional se tornasse débil a medicina. Até que Serapião professasse nada da razão pertencer à arte, colocando-a no uso apenas, e na experiência, de modo que a dietética, a parte dificílima e ilustríssima da medicina antiga, se dividisse entre os que reivindicavam o racional e os empíricos[iv]. Essa dissensão faz com que os primeiros professem a medicina racional, na qual se faz necessário primeiro o conhecimento das causas remotas[v] e contíguas às doenças, em que se inquire de quais princípios sejam os corpos, do que seja favorável ou adverso ao estado deles, acreditando não poder curar doenças quem ignore de onde elas sejam, demandando cura diversa, se o vício é ou nos humores, ou no vento, ou se o sangue transfunde-se nos vasos dos ventos suscitando inflamação; depois, das causas evidentes[vi], em que se demanda o que deu início à doença, se foi fome ou frio, saciedade ou calor, dizendo que impedirá o vício quem não lhe ignora a origem; por fim, das ações naturais do corpo, pelas quais se traga e emite o vento, assume e cose a comida e a bebida e as leva a todas as partes dos membros, conhecimento sem o qual supõem não se poder medicar as doenças que entre essas ações nasçam e para o qual, havendo vários gêneros de dores e doenças que nascem nas partes internas, se faz necessário perscrutar as vísceras e os intestinos dos corpos dos mortos, quando não dos vivos, pois mais adequadamente se põem os remédios externos, se descobertas as sedes, as figuras, a magnitude dessas partes[vii].
Contrapõem-se os empíricos, que admitem tão somente as causas evidentes, sustentando ser supérflua a disputa acerca das causas remotas e ações naturais, pois, se a causa evidente não fornece a ciência, muito menos poderá fazê-lo o que é dúbio, dizem[viii]. Segundo estes, as vias da medicação derivam dos experimentos, segundo a resposta de cada um. Achados os remédios, teriam os homens começado a dissertar acerca da razão deles, de modo que não se tenha achado a medicina após a razão, mas após achada lhe foi esta demanda; e, se ela ensina o mesmo que a experiência, é supérflua; se algo outro, contrária à experiência; e, se incidir gênero de mal desconhecido, não por isso há o médico de cogitar de coisas obscuras, antes de tudo há de ver de que doença conhecida o mal se aproxima e tentar remédios semelhantes àqueles que frequentemente socorrem o que lhe é vizinho e, por semelhança, achar o socorro[ix].
Essa antiga dissensão entre a medicina racional e os empíricos repercute nas modernas divisões da medicina. Como se tenha anteposto a eficácia como o critério imparcial garantidor do conhecimento científico moderno, elegeu-se a causa eficiente o modo privilegiado da explicação científica das doenças. Institui-se a medicina, preponderantemente, como prática médica e ciência experimental, o que a remete aos empíricos e a Serapião, que a punham no uso e na experiência, e a circunscreviam às causas evidentes. Mas à proporção em que a ótica, a física, a matemática, a química aplicadas às técnicas e à engenharia expandem o que se vê, estende-se a consideração das causas eficientes, de modo que a ampliação do visível, projete o conhecimento médico das doenças a partir da consideração das causas eficientes tornadas evidentes, ainda que em algumas áreas da medicina moderna, na epidemiologia, na psicologia, na psiquiatria, em algumas partes da virologia, da imunologia, e sobretudo entre os sanitaristas não raro se recorra também às causas remotas, próprias da antiga medicina racional. Mas, como sejam elas latentes e frequentemente dúbias e incertas, demanda-se o gênero de causas que se pode explorar por via da experiência[x]. Assim, a ciência médica experimental ou pesquisa médica ocupa-se do descobrimento, por via de experimentos, das causas eficientes evidentes de gêneros de males desconhecidos; já a prática da medicina, da identificação das causas eficientes evidentes dos gêneros conhecidos das doenças, e a utilização dos socorros previstos a cada um. Mas há que se compreender que absolutamente nada se faz a partir de uma única causa, mas se toma por causa o que mais parece responder pelo efeito[xi]. Fazendo cessar a causa da doença cuja causa eficiente se conhece, a prática médica efetua a cura; procurando a causa eficiente da doença cuja causa se ignora, acha a pesquisa a prática; quando, porém, a doença desconhecida se torna pandemia ou peste, faz-se evento: a causa eficiente, demandada embora pela pesquisa, não é a que responde pelo devir, em que despontam as remotas, isto é, a sucessão de causas latentes não necessárias e contíguas que envolvem a causa eficiente adstrita à doença no evento pandêmico, manifestação em que a subsistência das causas remotas comuns insiste na existência comum da doença.
O corpo mortal ou existe são, ou existe doente, pois a inexistência da saúde ou da doença implica o não existir do corpo, assim como, inexistente este, inexistem aquelas, de modo que ambas consistam em modos da existência mortal. O são devém doente a partir do advento de corpo estranho à saúde, porquanto adoecer coincida com alteração corporal contrária que impede a manutenção, plena ou não, do estado existente. Envolve a geração da alteração o evento em que a oportunidade do local e a ocasião cômoda concorrem para o choque entre os corpos de que decorre o estado alterado. A doença existe, enquanto o efeito do choque insistir no corpo vivo. Gera-se mais frequentemente a partir do advento de corpos vivos mínimos, o que a diferencia da lesão decorrente dos choques com corpos maiores. Os eventos em que os corpos estranhos convergem chocando-se aparecem, não como força incidente, pois, incorporais, eles não têm a força do efetuar, mas como aquilo sem o que o choque, mesmo mínimo, não se efetua, podendo devir quietos, inativos ou inertes em relação à geração da doença, ou aduzir alguma ajuda, ainda que não necessária, como o fio que se estende dando o caminho por onde a primavera trepe, sem o qual ela cai. Se consiste a doença no modo alterado como se tem o corpo, a ela concerne a tenência do corpo existente, de modo que os incorporais adjacentes implicados na efetuação da alteração do estado excedam a doença, pois envolvem a dinâmica entre os corpos, a qual subsiste da mútua implicação dos existentes. A força corporal natural viva que efetua o doente depende do incorporal, fortuito ou não, sem o qual a doença não se efetiva, de modo que no doente existente subsista o advento da doença.
O aparecimento repentino de eventos sucessivos e incessantes em que a doença advém consiste na aparição da peste, cuja via de propagação coincide com a dinâmica de circulação dos corpos. A pandemia ou peste incide estranha sobre os corpos mortais de modo incessante, por ser a insistência reiterada do evento que gera o estado doente, súbita profusão de eventos geradores de alteração no modo como o corpo são não se tem a si. Para a gênese da doença como estado de padecimento corporal existente, e da peste como evento incorporal subsistente no doente, cumpre recuperar-lhes as gerações.
2.
A palavra grega loimós, que latinamente se diz pestis, que propriamente dizemos peste, aparece inicialmente nos cantos e nas tragédias gregas, insinuando-se aqui e ali pela arte médica, pela oratória e pela história, gêneros em que doença, nósos ou nósēma, vigora mais. No canto I da Ilíada, Aquiles:
“oÔmou: po√lemo√ß te dama:≥ kai; loimo;ß ∆Acaiou√ß`”[xii]
[conjuntamente com a guerra doma a peste os aqueus];
simultaneamente assolam o homem a guerra e a peste, sendo a guerra o modo humano de arrasar o homem, a peste, o divino. Pela desonra na guerra, Febo Apolo lança doença má, nósos kakē, sobre o exército dos aqueus; ela passa para os povos e os perde, por isso peste: doença que se espalha[xiii]. Mas então a peste não se estremava da doença, pois aí se aprende que, assim como as pestes, também as doenças eram atribuídas à ira dos deuses imortais, aos quais soíam os mortais pedir socorro. Podalírio e Machaão, os dois filhos de Esculápio que acompanham Agamêmnon na guerra de Tróia, tendo embora prestado não pequeno socorro aos companheiros, não auxiliaram na pestilência e nos vários gêneros de doenças, senão nas lesões, as quais medicavam com ferro e medicamentos, o que mostra terem sido estas as mais antigas partes da medicina[xiv], as que tratavam dos choques com corpos maiores. Lendo Homero, Cornélio Celso propõe que, ante nenhum auxílio à saúde adversa, acontecia de a de muitos se tornar boa pelos bons costumes, não viciados nem na luxúria nem na preguiça[xv], o que vinculava a saúde à conduta.
Em Os trabalhos e os dias, ensinando ao irmão Perses acerca da divisão dos bens paternos, Hesíodo:
Oi»ß d= u”briß te me√mhle kakh; kai; sce√tlia e“rga,
toi:ß de; di√khn Kroni√dhß tekmai√retai eu∆ru√opa Zeu√ß`
polla√ki kai; xu√mpasa po√liß kakou: ajndro;ß ajphu√ra,
o”ß tiß ajlitrai√nh≥ kai; ajta√sqala mhcana√atai`
toi:sin d= oujrano√qen me√g= e∆ph√gage ph:ma Kroni√wn,
limo;n oÔmou: kai; loimo√n` ajpofqinu√qousi de; laoi√,
oujde; gunai:keß ti√ktousin, minu√qousi de; oi\koi[xvi]
Aos que a soberba má toca, e cruéis obras,
justiça lhes determina Zeus Cronida altissonante;
e não raro toda a cidade com o mau varão se perde,
com aquele que peca e pernícies maquina;
sobre eles lança do céu grande dano o Cronida,
fome juntamente com peste; e perecem os povos,
e as mulheres não procriam, e as casas diminuem;
o justiçamento divino corrige a desmedida do homem e o excesso, expondo-o à fome e à peste trágica, ambas procedentes de causa divina, ambas decorrentes do desvio de um único, que muitos toca. Sobre soberbos recai miserável a punição celestial, que lhes rarefaz o povo, interrompendo-lhes a geração. Na tragédia Os persas, o espectro do rei Dario pergunta à viúva como se arruinou o negócio dos persas:
Ti√ni tro√pw≥~ loimou: tiß h«lqe skhpto;ß, h] sta√siß po√lei~[xvii]
De que modo? À cidade sobreveio algum raio de peste ou sedição?
Ou cai do céu peste fulminante ou a contenda entre os homens prevalece, para que o negócio se perca. No Édipo Rei, diz o sacerdote a Édipo:
e∆n d= oÔ purfo√roß qeo;ß
skh√yaß e∆lau√nei, loimo;ß e“cqistoß, po√lin,
uÔf= ou» kenou:tai dw:ma Kadmei:on`[xviii]
o deus porta-fogo,
lançada inimicíssima peste, abate a cidade,
por ela se esvazia a casa cadmeia;
a peste incendiária lançada pelo deus é como inimigo, lança-se sobre a cidade e as moradas, sobre exércitos e negócios. Ela encolhe casas, leva os seres, pois não anda só: sobrevém não a um, mas a muitos.
A aparição poética da peste gera-se iteradamente com o advento da guerra e da fome, pólemos e limós, cujo léxico, aliás, guarda correspondência fônica com loimós, peste, que completa a tríade. Para o trágico espectro do rei Dario, a peste é raio lançado do céu pelo deus porta-fogo; já para o ungido cuja regência atual segue crenças trágicas é chuva que cai; e, assim como, antigamente, a contenção da peste envolvia ritual expiatório que aplacasse o deus, assim, agora, demandam-se sacrifícios coletivos para aplacar o mito contemporâneo personificado nas vontades de Messias.
3.
Proveniente dos cantos e das representações, não sendo vocábulo propriamente médico, a peste aparece esporadicamente na arte médica hipocrática como modo de disseminação de uma doença, o que da doença a distingue, como se lê em Da dieta das [doenças] agudas:
“Esti de; tau:ta ojxe√a, oJkoi:a wjno√masan oiÔ ajrcai:oi pleuri:tin, kai; peripleumoni√hn, kai; freni:tin, kai; lh√qargon, kai; kau:son, kai; ta[lla noush√mata oÔko√sa toute√wn ejco√mena√ ejstin, w|n oiÔ puretoi; to; e∆pi√pan xunece√eß. ”Otan ga;r mh; loimw√deoß nou√sou tro√poß tiß koino;ß e∆pidhmh√sh≥, ajlla; spora√deeß e“wsin aiJ nou:soi kai; paraplh√sioi, uÔpo; toute√wn tw:n noushma√twn ajpoqnh√skousi ma:llon h] uÔpo; tw:n a[llwn tw:n xumpa√ntwn.[xix]
São agudas aquelas a que os antigos denominaram pleurite[xx], peripneumonia, delírio, letargia, aestus[xxi], e as mais enfermidades quantas se têm a partir delas, nas quais as febres contínuas são regra. Pois, não se tendo difundido sobre o povo um modo comum de doença pestilenta, havendo apenas as doenças esporádicas e semelhantes, por essas enfermidades [agudas] morrem mais do que por todas as outras juntas.
A doença que se faz pestilenta vem de fora, sendo assim estranha, e se espalha de modo comum e continuamente insistente pelo povo; diferentemente das outras enfermidades, ela não é esparsa: à medida que se espalha, não se dispersa, acumula-se, de modo que se dilate sem acalmar-se. A pestilência aparece como modo epidêmico da doença, isto é, como a chegada de doença que ataca de modo público toda a cidade. Invariavelmente vinculada às febres, a peste médica aparece em Dos sopros:
Prw:ton de; ajpo; koinota√tou nosh√matoß a[rxomai, puretou:` tou:to ga;r to; no√shma pa:sin e∆fedreu√ei toi:sin a[lloisin noush√masi, ma√lista de; flegmonh:≥` dhloi: de; ta; gino√mena prosko√mmata` a{ma ga;r th:≥ flegmonh≥: eujqu;ß boubw;n kai; pureto;ß e”petai. “Esti de; dissa; ei[dea puretw:n, wJß tau√th≥ dielqei:n` oÔ me;n koino;ß a{pasi kaleo√menoß loimo√ß` oÔ de; dia; ponhrh;n di√aitan i∆di√h≥ toi:si ponhrw:ß diaiteome√noisi gino√menoß` ajmfote√rwn de; toute√wn ai[tioß oÔ ajh√r. ÔO me;n ou\n koino;ß pureto;ß dia; tou:to toiou:to√ß e∆stin, o”ti pneu:ma twujto; pa√nteß e”lkousin` oÔmoi√ou de; oÔmoi√wß tou: pneu√matoß tw:≥ sw√mati micqe√ntoß, o”moioi kai; oiÔ puretoi; gi√nontai.[xxii]
Primeiramente pela mais comum enfermidade inicio: a febre. Pois esta enfermidade incide com todas as outras enfermidades, e maximamente com a inflamação[xxiii], haja vista as recorrentes lesões; pois junto com a inflamação vêm imediatamente o bubão e a febre. Para discorrer sobre isso, há duas espécies de febres: a que é comum a todos se chama peste; e a que se gera por má dieta em particular nos que se nutrem mal; sendo a causa de ambas o ar. E, por isso, a febre comum é tal, porque todos tragam o mesmo vento; e tendo sido semelhantemente misturado no corpo semelhante vento, também semelhantes se geram as febres.
Chama-se peste não a mesma febre, mas febre que acomete igualmente a todos que o mesmo ar respiram, tornando-se febre comum, de modo a ser pestilento o caminhar da doença, não a doença mesma. A proveniência celestial e divina da peste poética, ligada aos maus costumes, é substituída pela transmissão aérea da febre, causa que faz com que a peste médica circule quente e úmida, por via da inspiração do vento compartilhado.
Quase quatro séculos depois da morte de Hipócrates, Celso preceitua em latim como proceder diante das diferentes febres. Tendo discernido genericamente as febres cotidianas, que têm início ou a partir do calor, cujo fervor pode ser tolerável ou ingente, ou do frio, em que as partes extremas dos membros se enregelam, ou do horror[xxiv], em que todo o corpo treme, trata propriamente da febre ardente a que chama pestilenta, distinguindo-a:
Quomodo pestilentes febres curari debeant
Desiderat etiam propriam animadversionem in febribus pestilentiae casus. In hac minime utile est, aut fame, aut medicamentis uti, aut ducere alvum. Si vires sinunt, sanguinem mittere optimum est; praecipueque si cum dolore febris est: si id parum tutum est, ubi febris levata est, vomitu pectus purgare. Sed in hoc maturius, quam in aliis morbis, ducere in balneum opus est; vinum calidum et meracius dare, et omnia glutinosa; inter quae carnem quoque generis eiusdem. Nam quo celerius eiusmodi tempestates corripiunt, eo maturius auxilia, etiam cum quadam temeritate, rapienda sunt. Quod si puer est, qui laborat, neque tantum robur eius est, ut sanguis mitti possit, siti ei utendum est; ducenda alvus vel aqua, vel ptisanae cremore; tum demum levibus cibis nutriendus. Et ex toto non sic pueri, ut viri, curari debent. Ergo, ut in alio quoque genere morborum, parcius in his agendum est: non facile sanguinem mittere, non facile ducere alvum, non cruciare vigilia, fameve, aut nimia siti, non vino curare. Vomitus post febrem eliciendus est; deinde dandus cibus ex levissimis; tum is dormiat; posteroque die, si febris manet, abstineat; tertio, ad similem cibum redeat. Dandaque opera est, quantum fieri potest, ut inter opportunam abstinentiam cibo opportuno, omissis ceteris, nutriatur.
Si vero ardens febris extorret, nulla medicamenti danda potio est, sed in ipsis accessionibus oleo et aqua refrigerandus est, quae miscenda manu sunt, donec albescant; eo conclavi tenendus, quo multum et purum aerem trahere possit, neque multis vestimentis strangulandus, sed admodum levibus tantum velandus est. Possunt etiam super stomachum imponi folia vitis in aqua frigida tincta. Ac ne siti quidem nimia vexandus est. Alendus maturius est, id est a die tertio; et ante cibum iisdem perungendus. Si pituita in stomacho coiit, inclinata iam accessione, vomere cogendus est; tum dandum frigidum holus, aut pomum ex iis quae stomacho conveniunt. Si siccus manet stomachus, protinus vel tisanae, vel halicae, vel orizae cremor dandus est, cum quo recens adeps cocta sit. Cum vero in summo incremento morbus est, utique non ante quartum diem, magna siti antecedente, frigida aqua copiose praestanda est, ut bibat etiam ultra satietatem. Cum iam venter et praecordia ultra modum repleta satisque refrigerata sunt, vomere debet. Quidam ne vomitum quidem exigunt, sed ipsa aqua frigida tantum ad satietatem data pro medicamento utuntur. Vbi utrumlibet factum est, multa veste operiendus est, et collocandus ut dormiat; fereque post longam sitim et vigiliam, post multam satietatem, post infractum calorem plenus somnus venit; per quem ingens sudor effunditur, idque praesentissimum auxilium est, sed in is tamen, in quibus praeter ardorem nulli dolores, nullus praecordiorum tumor, nihil prohibens vel in thorace vel in pulmone vel in faucibus, non ulcera, non deiectio, non profluvium alui fuit. Si quis autem in huiusmodi febre leviter tussit, is neque vehementi siti conflictatur, neque bibere aquam frigidam debet, sed eo modo curandus est, quo in ceteris febribus praecipitur.[xxv]
De que modo se devam curar febres pestilentas
O caso da pestilência requer entre as febres advertência própria. Nesta, é minimamente útil usar ou da fome, ou de medicamentos, ou induzir a evacuação. Se as forças permitirem-no, o melhor é tirar sangue, principalmente se for febre com dor; se isso for pouco seguro, quando a febre se elevar, purgar o peito vomitando. Mas aqui, mais cedo do que nas outras doenças, faz-se mister conduzir ao banho, dar vinho quente e sem mistura, e todas as coisas glutinosas, entre as quais também a carne desse mesmo gênero. Pois quanto mais rapidamente tais tempestades diminuem, tanto mais cedo se há de receber os auxílios, ainda que com alguma temeridade. Se porventura é um menino que padece, e o rubor dele não é tanto que se lhe possa tirar sangue, há de se usar da sede, induzir a evacuação, ou com água, ou com creme de tisana e, por fim, nutri-lo com comidas leves. E, em geral, não se deve curar meninos como varões. Logo, como em todo outro gênero de doenças, também neste se há de agir com mais parcimônia: não tirar facilmente sangue, não induzir facilmente a evacuação, não atormentar com a vigília, ou com a fome, ou com sede demasiada, não curar com vinho. Após a febre, há de se provocar o vômito; depois, dar comida, das levíssimas; que ele, então, durma; e, no dia seguinte, se a febre permanecer, que fique abstinente; que, no terceiro, retorne a semelhante comida. É mister que se faça, o quanto for possível fazê-lo, com que, omitindo o mais, entre a oportuna abstinência se nutra de comida oportuna.
Se, porém, ardente febre o torra, nenhuma bebida se há de dar como medicamento, mas durante os acessos mesmos se há de refrigerá-lo com óleo e água, que se hão de misturar com a mão, até que embranqueçam; há de ser ele mantido em um quarto em que possa tragar muito ar puro; e se não há de sufocá-lo com muitas roupas de cama, mas tão somente velá-lo com as mais leves. Podem ainda ser postas sobre o estômago folhas de videira tingidas em água fria. E se não deve vexá-lo com sede demasiada. Há de ser alimentado mais cedo, isto é, a partir do terceiro dia, e, antes do repasto, ser ungido do mesmo modo. Se juntar pituíta[xxvi] no estômago, tendo já baixado o acesso, há de se obrigar a vomitá-la; dar-lhe, então, hortaliça fria ou pomo, dos que convêm ao estômago. Se o estômago permanecer seco, dar imediatamente creme, ou de tisana[xxvii], ou de espelta[xxviii], ou de oriza[xxix], com o qual se tenha cozinhado banha recente. Quando, porém, a doença está em sumo crescimento, certamente não antes do quarto dia, antecedendo grande sede, há de se oferecer água fria copiosamente, para que beba além da saciedade. Quando, porém, o ventre e o diafragma estiverem repletos além da medida e suficientemente refrigerados, deve vomitar. Há quem não exija o vômito, mas use como medicamento apenas da própria água fria dada à saciedade. Tendo-se feito seja qual for, há de ser coberto com muita veste, e colocado para dormir; quase sempre, após longa sede e vigília, após muita saciedade, após interrompido o calor, vem sono pleno; pelo qual se verte ingente suor, e é isso proveitosíssimo auxílio, mas apenas naqueles em que, além do ardor, nenhumas dores, nenhum tumor dos diafragmas, nada estorvando, ou no tórax, ou no pulmão, ou nas fauces, não há úlcera, abatimento, diarreia. Se, porém, alguém durante tal febre tossir levemente, esse, nem o aflige sede veemente, nem deve beber água fria, mas se há de curar daquele modo que se preceitua para as outras febres.
A peste manifesta-se de modo diverso em corpos diversos, havendo embora estado febril comum cujo suor e ardor a tornam doença quente e úmida, demandando a refrigeração do corpo e a troca do ar. Mas antecede ao modo como se há de curar a febre a conduta que se há de seguir, enquanto ainda se está são, um regime contra a manifestação pestífera:
Regimen contra pestem
Est etiam observatio necessaria: qua quis in pestilentia utatur adhuc integer, quum tamen securus esse non possit. Tunc igitur oportet peregrinari, navigare: ubi id non licet, gestari, ambulare sub divo, ante aestum, leniter; eodemque modo ungi: et, ut supra comprehensum est, vitare fatigationem, cruditatem, frigus, calorem, libidinem: multoque magis se continere, si qua gravitas in corpore est. Tunc neque mane surgendum, neque pedibus nudis ambulandum est, minimeque post cibum, aut balneum; neque jejuno, neque coenato vomendum est; neque movenda alvus; atque etiam, si per se mota est, comprimenda est; abstinendum potius, si plenius corpus est. Itemque vitandum balneum, sudor, meridianus somnus, utique si cibus quoque antecessit; qui tamen semel die tum commodius assumitur; insuper etiam modicus, ne cruditatem moveat. Alternis diebus invicem, modo aqua, modo vinum bibendum est. Quibus servatis, ex reliqua victus consuetudine quam minimum mutari debet. Quum vero haec in omni pestilentia facienda sint, tum in ea maxime, quam austri excitarint. Atque etiam peregrinantibus eadem necessaria sunt, ubi gravi tempore anni discesserunt ex suis sedibus, vel ubi in graves regiones venerunt. Ac si cetera res aliqua prohibebit, utique abstinere debebit: atque ita a vino ad aquam, ab hac ad vinum, eo, qui supra positus est, modo, transitus ei esse.[xxx]
Regime contra peste
Há ainda observação necessária, de que use quem durante a peste ainda estiver íntegro, embora não possa todavia estar seguro. Será então oportuno viajar, navegar; não o sendo lícito, ser levado em liteira, perambular sob o céu, antes da calma, ligeiramente, e de igual modo ungir-se; e, como compreendido acima, evitar a fadiga, a crueza, o frio, o calor, a luxúria; e se conter muito mais, se houver algum agravamento no corpo. Nem se há de levantar cedo, nem perambular com os pés nus, menos ainda após o repasto ou o banho; nem se há de vomitar em jejum ou tendo ceado; nem se há de soltar o intestino; e, ainda que se solte por si só, ainda assim se há de contraí-lo; mais grosso está o corpo, mais se há de abster. E, assim, se há de evitar o banho, o suor, a sesta, sobretudo se anteceder ao repasto, que então convém tomar uma única vez ao dia e, ainda assim, módico, para não promover crueza. Em dias alternados, se há de beber sucessivamente ora água, ora vinho. Mantendo-o; quanto ao restante costume alimentar, deve-se mudá-lo minimamente. Havendo embora de fazê-lo em toda pestilência, maximamente na que o austro tenha excitado. Também aos viajantes o mesmo é necessário, tendo eles deixado suas sedes em gravoso tempo do ano, ou vindo a regiões agravadas. E, se alguma outra coisa o proibir, de todo modo deverá se abster do que se propôs acima e assim transitar do vinho à água, desta ao vinho.
Na peste não se pode estar seguro, aos que podem, o conselho é ir para longe, aos que ficam se conter, de todo modo a vida de todos muda, sobretudo quando despertada pelo vento quente e úmido soprado do sul.
*Yuri Ulbricht é mestre em filosofia pela USP
Notas
[i] Cels. Med. I, pr., 6.
[ii] c. III a.C.
[iii] Cels. Med. I, pr., 8-9: “una esset, quae victu; altera, quae medicamentis; tertia, quae manu mederetur. Primam diaithtikh√n, secundam farmakeutikh√n, tertiam ceirourgikh√n Graeci nominarunt”.
[iv] Cels. Med. I, pr., 10-11.
[v] Cels. Med. I, pr., 14: “abditas causas vocant, in quibus requiritur, ex quibus principiis nostra corpora sint, quid secundam, adversam valetudinem faciat”.
[vi] Cels. Med. I, pr., 18: “evidentes vero eas appellant, in quibus quaerunt, initium morbi calor attulerit, an frigus; fames, satietas; et quae similia sunt; occursurum enim vitio dicunt eum, qui originem non ignorarit”.
[vii] Cels. Med. I, pr. 19: “naturales vero corporis actiones appellant, per quas spiritum trahimus et emittimus; cibum potionemque et assumimus et concoquimus: itemque per quas eadem haec in omnes membrorum partes digeruntur”.
[viii] Cels. Med. I, pr., 27.
[ix] Cels. Med. I, pr., 36-37.
[x] Cels. Med. I, pr., 52.
[xi] Cels. Med. I, pr., 59.
[xii] Il. I, 61.
[xiii] Il. I, 8-11.
[xiv] Cels. Med. I, proemium.
[xv] Cels. Med. I, proemium.
[xvi] Hes. Op. 238-244.
[xvii] A. Pers. 715.
[xviii] Soph. Oid. 27-29.
[xix] Hipp. PERI DIAITHS OXEWN. 2.
[xx] Ou pleurisia, inflamação aguda da pleura.
[xxi] Febre ardente.
[xxii] Hipp. PERI FUSWN. 6.
[xxiii] Cels. Med. I, pr.: “inflammationem, quam Graeci flegmonh√n nominant, excitat, eaque inflammatio talem motum efficit, qualis in febris est, ut Erasistrato plauit”.
[xxiv] Cels. Med. III, 3.
[xxv] Cels. Med. III, 7.
[xxvi] Bluteau, R. Vocabulario portuguez & latino. “PITUITA. (Termo de Medico) Hum dos quatro humores, que compoem o temperamento do corpo animal. A pituita he branca, & fria, & he excremento da primeira cocção. Quando diz Galeno que a pituita não tem particular receptaculo, falla na Pituita, que se derrama pelas veas, & arterias, & se mistura com a massa sanguinaria. Pituita, & fleima vem a ser o mesmo, se não queremos entender por Pituita a que cahe do nariz, & por fleima a que se escarra. Pituita, ae. Fem. Cic“.
[xxvii] Cevada mondada.
[xxviii] Triticum spelta; trigo-vermelho.
[xxix] Arroz.
[xxx] Cels. Med. I, 10.