Uma esquerda anticientífica e contra o SUS?

Imagem: Jornal de Resenhas / Thyago Nogueira
image_pdf

Por JULIAN RODRIGUES*

Deputados federais do PC do B, PSB e a grande maioria dos petistas votaram a favor de lei que dá mais dinheiro a líderes religiosos fundamentalistas

Bibo Nunes é um deputado federal gaúcho. Orgulhosamente bolsonarista e filiado ao PSL. Nunca tinha sido nada na vida. Típica figura grotesca eleita em 2018 surfando na onda neofascista. A terceira linha de seu perfil na Wikipédia destaca o seguinte: “até abril de 2021, Bibo apresentou alinhamento de 99% com o governo Bolsonaro nas votações da Câmara”.

Nunes protocolou em 2019 um projeto de lei para regulamentar a concessão de imunidade tributária às entidades beneficentes que prestam serviços assistenciais.

O grau de especificidade somado à complexidade do projeto deixavam nítido seu caráter. Tratava-se de uma encomenda: prestação de serviço.

Bibo agradou reacionários de vária matizes ao propor a inclusão das tais comunidades terapêuticas no rol de entidades que poderiam se beneficiar de isenções tributárias. Ou seja, mais dinheiro em caixa para os empresários da fé disfarçados de salvadores dos “drogados” perdidos na vida.

Talíria Petrone, a espetacular deputada do PSOL fluminense, encaixou uma emenda retirando as comunidades terapêuticas da lista das entidades que poderiam se habilitar a ganhar o novo presentinho governamental.

Por alguma razão misteriosa (ou nem tanto) PC do B, PSB e PDT orientaram seus deputados a votar contra o destaque da Talíria! Que feio.

E o pior veio depois: o gaúcho Elvino Bohn Gass, líder do PT na Câmara dos Deputados liberou geral. Cada um que fizesse o que lhe aprouvesse.

Deu ruim. São 53 deputados federais petistas. Apenas nove seguiram a linha justa. Merecem ser citadas e citados individualmente cada um: Alexandre Padilha (SP), Arlindo Chinaglia (SP), Erika Kokay (DF), Natália Bonavides (RN), Paulão (AL), Paulo Teixeira (SP), Pedro Uczai (SC), Rogério Correia (MG) e Zé Neto (BA)(1).

Brilhou muito na batalha de plenário Erika Kokay, a deputada petista do DF – referência dos movimentos sociais – vanguarda em toda e qualquer luta das mulheres, das LGBT, por direitos humanos que nunca teve medo de enfrentar temas supostamente controversos.

Comunidades terapêuticas são a negação de tudo aquilo que os especialistas, movimentos sociais, sanitaristas, intelectuais e partidos de esquerda vem construindo nos últimos 40 anos em termos de saúde mental e políticas públicas.

Centros de doutrinação religiosa, aparelhos de líderes da direita cristã, sorvedouros de dinheiro público essas tais comunidades não fazem bem nem são pontos de apoio para a reconstrução das trajetórias de qualquer pessoa.

O PT tem em seu DNA a luta pela reforma psiquiátrica: fim dos manicômios, redução de danos, construção dos CAPS, políticas avançada de saúde mental. Paulo Delgado, Telma de Souza, David Capistrano, Roberto Tykanori, tantas e tantos lutadores. É o Partido do SUS e da redução de danos.

Parlamentar petista não poderia nunca nem ao menos cogitar apoiar algo que possa vir a beneficiar tais grupos privados – grandes exploradores da fé e da vulnerabilidade das pessoas.

O Partido dos Trabalhadores governou a cidade de São Paulo com Fernando Haddad, o criador do “Braços Abertos”: a mais avançada política pública da história brasileira focada em quem faz uso abusivo de drogas. O PT e a esquerda têm experiência e conhecimento sobre esse tema. Sabemos o que deve ser feito.

O senso comum conservador alimenta estigmas e tabus que sustentam a política de “guerra às drogas”, essa máquina de encarcerar e matar jovens pretos pobres.

Trata-se de um dos maiores nós que teremos de desatar em futuro possível terceiro governo Lula (além de reformar as PMs, descriminalizar as drogas e cessar a matança).

Que a maioria dos parlamentares do PT (além da bancada do PCdoB e do PSB) não se sente confortável ou não está convencida da necessidade de uma nova política de drogas, vá lá. É até compreensível no contexto atual.

Mas tudo tem limite. Virar base de apoio do Osmar Terra e da direita obscurantista foi meio demais. Foco e luz – ilustres companheiras e companheiros deputadas/deputados. Não nos envergonhem. E não passem vergonha.

Direitos humanos, segurança pública cidadã, reforma das polícias, novo marco legal sobre drogas, cessar agora o genocídio.

Lula Presidente é uma jornada de lutas, calcada em compromisso civilizatório e transformador.

Que a direção do PT e os nossos parlamentares reconectem-se com o fio das lutas populares.

O presente é prenhe de esperanças – que todos se preparem para ajudar a construir um amanhã radicalmente transformador.

Quem não quiser se reposicionar (pegar carona na cauda desse cometa), não tem problema. Mas, please, abram alas – que o novo sempre vem!.

*Julian Rodrigues é professor, jornalista e ativista do movimento LGBTI e de Direitos Humanos.

 

Nota


(1) O deputado Rui Falcão (PT-SP) estava em licença médica. Em e-mail ao autor garantiu que teria votado como os nove.

Veja todos artigos de

MAIS LIDOS NOS ÚLTIMOS 7 DIAS

1
A rede de proteção do banco Master
28 Nov 2025 Por GERSON ALMEIDA: A fraude bilionária do banco Master expõe a rede de proteção nos bastidores do poder: do Banco Central ao Planalto, quem abriu caminho para o colapso?
2
A poesia de Manuel Bandeira
25 Nov 2025 Por ANDRÉ R. FERNANDES: Por trás do poeta da melancolia íntima, um agudo cronista da desigualdade brasileira. A sociologia escondida nos versos simples de Manuel Bandeira
3
O filho de mil homens
26 Nov 2025 Por DANIEL BRAZIL: Considerações sobre o filme de Daniel Rezende, em exibição nos cinemas
4
A arquitetura da dependência
30 Nov 2025 Por JOÃO DOS REIS SILVA JÚNIOR: A "arquitetura da dependência" é uma estrutura total que articula exploração econômica, razão dualista e colonialidade do saber, mostrando como o Estado brasileiro não apenas reproduz, mas administra e legitima essa subordinação histórica em todas as esferas, da economia à universidade
5
A disputa mar e terra pela geopolítica dos dados
01 Dec 2025 Por MARCIO POCHMANN: O novo mapa do poder não está nos continentes ou oceanos, mas nos cabos submarinos e nuvens de dados que redesenham a soberania na sombra
6
Colonização cultural e filosofia brasileira
30 Nov 2025 Por JOHN KARLEY DE SOUSA AQUINO: A filosofia brasileira sofre de uma colonização cultural profunda que a transformou num "departamento francês de ultramar", onde filósofos locais, com complexo de inferioridade, reproduzem ideias europeias como produtos acabados
7
Raduan Nassar, 90 anos
27 Nov 2025 Por SABRINA SEDLMAYER: Muito além de "Lavoura Arcaica": a trajetória de um escritor que fez da ética e da recusa aos pactos fáceis sua maior obra
8
A feitiçaria digital nas próximas eleições
27 Nov 2025 Por EUGÊNIO BUCCI: O maior risco para as eleições de 2026 não está nas alianças políticas tradicionais, mas no poder desregulado das big techs, que, abandonando qualquer pretensão de neutralidade, atuam abertamente como aparelhos de propaganda da extrema-direita global
9
O empreendedorismo e a economia solidária
02 Dec 2025 Por RENATO DAGNINO: Os filhos da classe média tiveram que abandonar seu ambicionado projeto de explorar os integrantes da classe trabalhadora e foram levados a desistir de tentar vender sua própria força de trabalho a empresas que cada vez mais dela prescindem
10
Totalitarismo tecnológico ou digital
27 Nov 2025 Por CLAUDINEI LUIZ CHITOLINA: A servidão voluntária na era digital: como a IA Generativa, a serviço do capital, nos vigia, controla e aliena com nosso próprio consentimento
11
Walter Benjamin, o marxista da nostalgia
21 Nov 2025 Por NICOLÁS GONÇALVES: A nostalgia que o capitalismo vende é anestesia; a que Benjamin propõe é arqueologia militante das ruínas onde dormem os futuros abortados
12
Biopoder e bolha: os dois fluxos inescapáveis da IA
02 Dec 2025 Por PAULO GHIRALDELLI: Se a inteligência artificial é a nova cenoura pendurada na varinha do capital, quem somos nós nessa corrida — o burro, a cenoura, ou apenas o terreno onde ambos pisam?
13
O arquivo György Lukács em Budapeste
27 Nov 2025 Por RÜDIGER DANNEMANN: A luta pela preservação do legado de György Lukács na Hungria de Viktor Orbán, desde o fechamento forçado de seu arquivo pela academia estatal até a recente e esperançosa retomada do apartamento do filósofo pela prefeitura de Budapeste
14
Argentina – a anorexia da oposição
29 Nov 2025 Por EMILIO CAFASSI: Por que nenhum "nós" consegue desafiar Milei? A crise de imaginação política que paralisa a oposição argentina
15
O parto do pós-bolsonarismo
01 Dec 2025 Por JALDES MENESES: Quando a cabeça da hidra cai, seu corpo se reorganiza em formas mais sutis e perigosas. A verdadeira batalha pelo regime político está apenas começando
Veja todos artigos de

PESQUISAR

Pesquisar

TEMAS

NOVAS PUBLICAÇÕES