Por JOSÉ MAURÍCIO DOMINGUES*
Trecho, selecionado pelo autor, da Introdução do livro recém-lançado
Não há como não reconhecer que o Brasil entrou nos últimos anos em uma espiral descendente, da qual parece não haver saída. A política nas mãos da extrema-direita, a economia capturada por um neoliberalismo rude que tem inspiração na ditadura de Pinochet no Chile. Ao mesmo tempo, a esquerda tem, após anos de equívocos, derrotas e transformações sociais subjacentes poderosas, enorme dificuldade para se contrapor aquilo que há alguns poucos anos era meramente folclórico, no pior sentido do termo, e mobilizar a sociedade contra essa maré de direita, com seu projeto de futuro restrito, sua visão retrógrada e seus afetos tristes e destrutivos.
A crise do coronavírus, que atingiu o governo Bolsonaro em cheio, poderia ter devolvido a iniciativa política à esquerda, mas isso está longe de acontecer. Na verdade, os problemas da República brasileira vêm de larga data. Por seu turno, sua esquerda mostrou ao longo dos últimos anos enorme fragilidade, envolvendo-se em equívocos profundos.
A partir dessas constatações dolorosas iniciais, este livro se coloca basicamente dois objetivos. Ela se inicia por situar a conjuntura brasileira presente, altamente transformada nos últimos anos e na qual predominam a direita e a extrema-direita, assim como pensar em como sair do buraco em que aquela espiral cada vez mais nos enterra. Mas seu objetivo é sobretudo pensar a esquerda de uma maneira bastante ampla e ao mesmo tempo específica, em que a busca pelo socialismo e seu binômio comunismo, seja lá o que significaram ontem e significam hoje,se repõe.
Em outra publicação me debruço sobre o chamado “socialismo real”. Trato de forma breve essa questão aqui, uma vez que meu objetivo é acima de tudo pensar a esquerda politicamente, em termos de sua ação, em termos estratégicos. Ou seja, seus objetivos vão muito além da conjuntura, de eleições e candidaturas que se ponham no campo da esquerda e da centro-esquerda nesta hora dramática de nossa história, mesmo quando toca questões que se relacionam diretamente com a conjuntura.
O livro compõe-se de sete capítulos. Abre o volume uma avaliação da conjuntura e do governo Bolsonaro, contra o pano de fundo de uma discussão dos regimes políticos e da evolução da democracia liberal. Os capítulos seguintes mergulham em alguns aspectos centrais da trajetória da esquerda mundial, mas sempre olhando de algum modo para a América Latina e o Brasil.
Discute-se em particular como abrir o horizonte dos possíveis inéditos, tarefa de extrema urgência em nosso presente, tratando de questões da estratégia, assim como da questão do “consequencialismo” filosófico – trocando em miúdos, a ideia de que os meios justificam os fins –, que é tão profundamente arraigada na esquerda. Enfim, como traduzir a política de uma esquerda socialista na prática e com radicalidade, sem deixar de tecer alianças que enfrentam os problemas do aqui e agora, atravessa e concluiu a discussão deste livro.
O livro é parte e abre a coleção “Esquerda em movimento”, da editora Mauad, visando mobilizar a discussão em particular da esquerda do Rio de Janeiro. A coleção parte da premissa de que o pensamento crítico e de esquerda no mundo todo, e no Brasil em particular, enfrenta impasses profundos no momento presente. É consenso, ou pelo menos concordância entre muitos, que precisa se renovar. Ele é plural e o diálogo entre as suas diversas vertentes tem de ser parte dessa renovação.
Muitas das discussões sobre este tema tem-se concentrado, porém, em temas mais imediatos ou da conjuntura, ou ainda em uma repetição ora exegética ora retórica dos clássicos marxistas. As derrotas do século XX e as questões que se põem para o século XXI precisam ser enfrentadas de maneira sistemática e criativa por uma reflexão crítica capaz também de justificar seus fundamentos e existência.
Alguns temas se perfilam como fundamentais e esta coleção os privilegiará, sem prejuízo de outras temáticas que ponham. A ideia de teoria crítica enquanto tal e em seu sentido mais amplo é uma delas, assim como o socialismo, que volta aos poucos a ser discutido e a talvez ganhar centralidade.
A eles se somam a questão ambiental e da mudança climática, confluindo por vezes para as transições ecossociais e o ecosocialismo. Outras questões incluem o capitalismo e o anticapitalismo, o futuro do trabalho e do Estado, o racismo e o antirracismo, o sexismo e o feminismo, os movimentos sociais e de contestação política de modo geral. Propostas que tratem estas questões em si ou contemplem seu cruzamento, a partir de uma pluralidade das vertentes, serão bem-vindas.
*José Maurício Domingues é professor no Instituto de Estudos Sociais e Políticos da UERJ. Autor, entre outros livros, de Emancipação e história: o retorno da teoria social (Civilização Brasileira).
Referência
José Maurício Domingues. Uma esquerda para o século XXI. Horizontes, estratégias e identidades. Rio de Janeiro, Mauad, 2021, 168 págs.