Walter Benjamin e a pós-verdade

Imagem: Elyeser Szturm
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Por Marco Schneider e Ricardo M. Pimenta*

Introdução

O fenômeno da pós-verdade, caracterizado pelo fato de crenças pesarem mais na formação da opinião pública do que evidências e argumentos racionais, fartamente disponíveis e acessíveis, resulta de uma atualização sócio técnica de velhas práticas fascistas de desinformação, produzidas há décadas pela indústria cultural e mais recentemente nas redes sociais digitais, com efeitos aterradores.

Para compreender e contribuir no combate ao fenômeno retomamos aqui a definição tomista da verdade, o conceito de história de Walter Benjamin, a alegoria da peste de Albert Camus, a noção de fé de Agnes Heller e a denúncia de Castro Alves do tráfico náutico de escravos.

A verdade

No século XIII, Tomás de Aquino, inspirado em Plotino, definiu a verdade como adaequatio rei et intellectus, o que pode ser traduzido como a correspondência entre as coisas e a compreensão.

O problema com a definição não é que ela seja incorreta, mas que não é suficientemente verdadeira, se apenas tivermos em mente a virada linguística na filosofia do século XX sobre as relações performáticas, expressivas e constitutivas entre a linguagem e qualquer compreensão concebível da realidade. Sabemos hoje que a linguagem não é apenas referencial, nem um instrumento transparente de comunicação: significante, significado e referente jamais se encontram em perfeito e definitivo acoplamento; ela é polissêmica e estrutura nosso senso de realidade, mesmo nosso inconsciente, se concordamos com o psicanalista francês Jacques Lacan. A realidade seja o que for só é pensável, compreensível, concebível, comunicável, através da linguagem.

No entanto, o reconhecimento do fato de que a linguagem opera a mediação de qualquer relação possível entre as coisas e a compreensão não resolve o problema da verdade. Por isso, e tendo em vista que nosso objetivo não é propriamente resolvê-lo, mas trazê-lo de volta ao centro do debate ético, político e epistemológico contemporâneo, como movimento necessário à crítica do fenômeno da pós-verdade, consideramos a hipótese de que a singela definição tomista da verdade permanece útil como ponto de partida para o combate a crenças infundadas, cuja falsidade é demonstrável, sobretudo quando articulada ao conceito de história de Benjamin, à alegoria da peste, de Camus, às noções de alienação e fé, de Heller, e à poderosa denúncia de Castro Alves do mercado náutico de escravos.

Teçamos os fios dessa meada.

A história

Sete séculos depois de Tomás de Aquino ter definido a verdade como adaequatio rei et intellectus, Walter Benjamin escreve em seu ensaio de 1940 Sobre o conceito de história: “A tradição dos oprimidos nos ensina que o “estado de exceção” em que vivemos é na verdade a regra geral. Precisamos construir um conceito de história que corresponda a essa verdade. […] com isso, nossa posição ficará mais forte na luta contra o fascismo. Este se beneficia da circunstância de que seus adversários o enfrentam em nome do progresso, considerado como uma norma histórica. – O assombro com o fato de que os episódios que vivemos no século XX “ainda” sejam possíveis, não é um assombro filosófico. Ele não gera nenhum conhecimento, a não ser o conhecimento de que a concepção da história da qual emana semelhante assombro é insustentável”.

O “estado de exceção” ao qual Benjamin se referia era o nazi-fascismo. Já o “assombro” mencionado resultava de uma compreensão equivocada da história, calcada numa concepção evolucionista e linear de “progresso”, compartilhada por positivistas, socialdemocratas, liberais e comunistas vulgares de seu tempo (diferente do assombro filosófico, que produz conhecimento). Nessa perspectiva, uma monstruosidade como o nazi-fascismo não poderia acontecer em pleno século XX, uma era de ciência, de progresso, de razão.

Por outro lado, aqueles seriamente instruídos no materialismo histórico, como Benjamin, não foram ingenuamente surpreendidos. Porque, para esses, o nazi-fascismo era uma reação em certo grau previsível (surpreendente somente por seu caráter extremo e grotesco) de certas frações das classes dominantes – aliadas a segmentos da pequena burguesia, do lumpesinato e dos grupos mais alienados dos trabalhadores – contra o crescimento dos movimentos revolucionários organizados, em meio à crise do capital e ao conflito imperialista da primeira metade do século XX. Assim, entre o início da década de 1920 e o final da década de 1940, o fascismo e o nazismo cresceram como atualizações brutais de velhas formas de opressão, gerando um “estado de exceção” sobre cuja natureza a “tradição dos oprimidos nos ensina que […] é na verdade a regra geral”.[ii]

A peste

Em 1955, um membro da resistência francesa na Segunda Guerra, futuro vencedor do prêmio Nobel de literatura de 1957, o escritor argelino Albert Camus defendeu seu romance La peste (1947), em carta a Roland Barthes, contra uma acusação deste, segundo a qual o romance era abstrato demais e, portanto, situava-se “dehors de l’histoire” (fora da história). Camus respondeu que La peste não tratava somente do fenômeno histórico (então) recente do fascismo, como, aliás, todos teriam percebido, mas também do permanente risco histórico de seu renascimento, risco este cuja consciência deveria nos deixar vigilantes.

Acontecimentos recentes na política mundial sugerem a atualidade dessa alegoria da peste. Nesse sentido, La peste lembra-nos que, como o bacilo da grande peste, o fascismo pode renascer, porque sua potência entrópica não teria sido destruída de uma vez por todas, se é que jamais possa vir a ser, apesar de sua aparente derrota em 1945.

A fé

Tendo isso em vista, e na medida em que uma das marcas do fascismo é sua capacidade de mobilizar afetos e crenças irracionais em larga escala, para entender melhor esse fenômeno recorremos a um estudo de Agnes Heller, em O cotidiano e a história, no qual a filósofa húngara, aluna de Lukács, associa a fé ao preconceito e à alienação. Para ela, a fé é o afeto do preconceito, uma expressão de alienação, que “é sempre alienação em face de algo e, mais precisamente, diante das possibilidades concretas do desenvolvimento genérico da humanidade”.

Em uma crítica vigorosa, ela define o sistema capitalista como a forma mais intensa de alienação na história, apresentando os seguintes argumentos: “Existe alienação quando ocorre um abismo entre o desenvolvimento humano-genérico e as possibilidades de desenvolvimento dos indivíduos humanos, entre a produção humano-genérica e a participação consciente do indivíduo nessa produção. Esse abismo não teve a mesma profundidade em todas as épocas nem para todas as camadas sociais; assim, por exemplo, fechou-se quase por completo nas épocas do florescimento da polis ática e do Renascimento italiano; mas, no capitalismo moderno, aprofundou-se desmesuradamente”.

Uma das expressões mais infames desse aprofundamento capitalista da alienação foi o nazi-fascismo; antes dele, foi o tráfico náutico de escravos.

O tráfico negreiro

Em 1869, Castro Alves publicou O navio negreiro, onze anos depois dos cabos telegráficos submarinos transcontinentais terem transmitido sua primeira mensagem da Europa para os EUA, mensagem de louvação aos céus, sob os mesmos mares sobre os quais pouco antes singravam navios negreiros. O poeta, como é sabido, dirige-se com escândalo a esses mesmos céus, inflamado pelo horror do tráfico – extinto dezenove anos antes da publicação do livro –, que indiretamente financiou a telegrafia, bisavó das redes sociais digitais.

Proclamava a mensagem telegráfica corporativa: “Glory to God in the highest, and on Earth, peace, good will to men”. Indignava-se o jovem poeta abolicionista: “Senhor Deus dos desgraçados! / Dizei-me vós, Senhor Deus! / Se é loucura… se é verdade / Tanto horror perante os céus?!”

Iremos insistir aqui na relação entre o horror sobre e sob os mares, tendo em vista a dupla vinculação entre os navios negreiros e os cabos telegráficos, ou, num sentido mais geral, entre a exploração do trabalho e o desenvolvimento tecnológico sob o capitalismo: embora cabos e escravos não fossem exatamente transportados pelos mesmos navios, o eram pelos mesmos capitais ou por capitais aparentados. Além disso, essas jornadas comerciais de pesadelo também permitiram a manutenção e o estabelecimento de novas formas e estruturas tecnológicas de exploração.

Pouco mais de um século depois, novos cabos seriam espalhados pelo mundo, substituindo o telégrafo e estabelecendo a infra-estrutura informacional e comunicacional que há alguns anos denominávamos ciberespaço. Grosso modo, juntamente com as possibilidades emancipatórias presentes nesse território digital em rede, não devemos ignorar o fato de que este permanece ancorado em um sistema que não é nada “virtual”, mas muito real.

Como lembra Ricardo Pimenta no artigo As rugosidades do ciberespaço, cabos submarinos e grandes servidores continuam a evidenciar uma antiga forma de dominação e controle socioeconômico: do monopólio da tecnologia necessária à produção e circulação de bens materiais ao monopólio da tecnologia necessária à produção, circulação e captura de informação em escala global, que desempenha um papel econômico e político decisivos na economia política global das infocomunicações, assim como a imprensa de massa, o rádio e o cinema desde o início do século XX. Do telégrafo à internet, trata-se de um conjunto de tecnologias cujo uso social permaneceu e permanece em disputa entre forças libertárias e reacionárias, junto a outros atores intermediários do espectro político.[iii]

Ética em informação e pós-verdade

Nossa abordagem da ética em informação relaciona-a à epistemologia e à política. Primeiro, na medida em que tomamos a epistemologia em sentido amplo, como o estudo que visa distinguir conhecimento, objetivo e racional, de opiniões e crenças, ficcionais e irracionais. Em última instância, embora essa não seja de modo algum uma definição canônica, entendemos que trata da verdade e da mentira.[iv] Segundo, porque verdade (seja ela o que for), opinião e crenças são sempre, embora não somente, expressões de relações sociais de poder. Sua principal dimensão política está na luta social entre o esclarecimento e a mistificação, a qual, em última instância, remete à luta entre liberdade e opressão.

Não pretendemos colocar a verdade sempre ao lado da ciência e as opiniões ou crenças ao da mentira, porque a ciência pode equivocar-se e a opinião ou crença podem ser objetivas e racionais. É por isso que dissemos que a epistemologia visa distinguir conhecimento objetivo e racional de opiniões e crenças ficcionais e irracionais.

E, de fato, podemos encontrar bons ou maus conhecimentos na ciência e na opinião. Platão, no diálogo Menon, afirma que a diferença entre episteme (ciência) e doxa (opinião) não é exatamente a distinção entre verdade e mentira, mas entre um tipo de conhecimento que reflete criticamente sobre si mesmo, que visa estabelecer sua base lógica, seus fundamentos, e outro mais prático, utilitário, que não se preocupa com esses esforços. Como esses esforços não são garantias de sucesso, podemos ter postulados falsos da ciência e opiniões verdadeiras.

No entanto, a ciência séria tem um compromisso rigoroso de produzir conhecimento verdadeiro por meio de disputas argumentativas e autocríticas, em princípio comprometidas com o ideal da racionalidade e da objetividade, diferentemente da opinião. Há, de fato, doxas científicas e pensamento crítico na cultura popular, mas as primeiras não são rigorosamente científicas além das aparências, e o último tende a ser, apesar das aparências.

Se a epistemologia lida, então, em última instância, com as formas ditas científicas de distinguir, produzir e fundamentar conhecimento verdadeiro (isto é, objetivo e racional) e refutar o falso, e a política, com liberdade e opressão, considerando o papel central que esclarecimento e mistificação ocupam nessa disputa, epistemologia e política são por isso questões centrais e conectadas da ética em informação.

Ora, razão e liberdade são as ideias mais radicais do Iluminismo. O conceito de Razão, diferentemente da razão instrumental e do mero entendimento, é necessariamente universal, mas não necessariamente contraditório com formas particulares ou singulares de entendimento, a não ser em aproximações superficiais, se pensarmos dialeticamente.

Não obstante, o grande número de barbaridades cometidas em nome da liberdade e do progresso pelos povos ditos civilizados, autoproclamados detentores da razão, com destaque para o colonialismo, o imperialismo, as duas Grandes Guerras e o colapso ambiental em curso justificam em parte a opção do pensamento dito pós-moderno de recusa a essas palavras, razão e liberdade, em maiúscula, proclamando uma ética, uma política e uma epistemologia pluralistas, mais modestas, da ordem do singular e do particular. Por outro lado, essa mesma recusa o torna frágil no enfrentamento da pós-verdade enquanto fruto totalitário de atualizações sócio técnicas de práticas informacionais fascistas, descomprometidas com as verdades e com a Verdade, inimigas das liberdades e da Liberdade.

Devemos acrescentar que, assim como a definição de verdade não é fácil, a de liberdade tampouco o é. Por outro lado, achamos que não é muito difícil afirmar o que jamais poderiam ser: mentira e opressão, precisamente as essências política e epistemológica do fascismo. Porque o fascismo – mais do que qualquer outro sistema social conhecido – deliberadamente, grosseiramente converte mentiras em verdades, opressão política e econômica no direito dos mais fortes, dos mais ricos, da “raça superior pura” sobre o fraco, o inválido, o “inferior”, em seus próprios termos mistificadores. Além do seu caráter perverso, o faz sem qualquer fundamento racional.

O nazi-fascismo é um exemplo puro do que a verdade e a liberdade jamais podem ser.

A rude e famosa declaração de Goebbels, “Repita uma mentira com frequência suficiente e ela se torna a verdade”, expõe perversamente o núcleo do problema ético, epistemológico e político da informação do fascismo, seja o original, sejam suas aproximações contemporâneas. Uma mentira que se torna verdade para a opinião pública é ideologia, na acepção negativa do termo, como uma falsa consciência que racionaliza (ainda que toscamente) e legitima a exploração, através de generalizações, ignorância ou simples mentiras, convertidas em crença, em fé; em seus limites, como no caso nazista, mas não só neste caso, legitima até mesmo a eliminação física de civis em números aterrorizantes, diretamente ou não.

Não importa o que os nazistas dissessem, simplesmente não era verdade que os judeus fossem a causa do comunismo e do capitalismo, apesar da existência de capitalistas e comunistas judeus influentes. Não era verdade que houvesse uma conspiração judaica para conquistar o mundo. O plano nazista chamado de “solução final”, sobre o extermínio de todos os judeus, além do fato de ser eticamente uma abominação, não pode ser levado a sério, nem em seus próprios termos, porque, ainda que fosse bem-sucedido, não interromperia em nada a exploração capitalista, tampouco o crescimento do socialismo real. No entanto, mentiras repetidas, má informação, tornam-se verdade para tantas pessoas, como opinião pública, como crenças, como preconceito, como fé, que se tornam uma força material, no lugar da teoria séria.

Sobre a fé, a filósofa húngara Agnes Heller, como vimos brevemente acima, entende que é o afeto do preconceito. Esse elemento afetivo é fundamental para entendermos o fascismo.

Para ela, só se pode compreender o preconceito com base na vida cotidiana, a partir dos traços da vida cotidiana: caráter momentâneo dos efeitos, natureza efêmera das motivações, rigidez do modo de vida, pensamento fixado na experiência empírica e ultra-generalizante. Chegamos a ultra-generalizações por estereótipos. Ultra-generalizações podem vir tanto da tradição quanto das atitudes que se opõem a ela.

Outra fonte de preconceito é o conformismo, que ela distingue da noção de conformidade:

Todo homem necessita […] de certa dose de conformidade. Mas essa conformidade converte-se em conformismo quando […] as motivações de conformidade da vida cotidiana penetram nas esferas não cotidianas de atividade, sobretudo nas decisões morais e políticas.

Para Heller, a gênese (contingente, isto é, não necessária) dos preconceitos está em juízos provisórios, Heller argumenta: “Os juízos provisórios refutados pela ciência […] mas que se conservam inabalados contra todos os argumentos da razão, são os preconceitos. […] Temos sempre uma fixação afetiva no preconceito. Por isso, era ilusória a esperança dos iluministas de que o preconceito pudesse ser eliminado à luz da esfera da razão. Dois diferentes afetos podem nos ligar a uma opinião, visão ou convicção: a fé e a confiança. O afeto do preconceito é a fé”.

Nesse ponto, Heller desenvolve essa importante distinção entre fé e confiança, e o preconceito é o elemento diferenciador. A análise é desenvolvida em três níveis, o antropológico, o epistemológico e o ético, permanecendo no nível antropológico a função básica dos demais.

No nível antropológico, a fé se refere à particularidade individual e a confiança à individualidade consciente; no epistemológico, a fé é um conhecimento que resiste ao conhecimento e à experiência, ao passo que a confiança é baseada no conhecimento aberto à mudança; no nível ético, finalmente, a marca da fé é a intolerância emocional; a da confiança, a abertura potencial à tolerância.

Os preconceitos, além disso, constituem um sistema indispensável à coesão social ameaçada: “O sistema de preconceitos não é imprescindível a qualquer coesão enquanto tal, mas apenas à coesão ameaçada. A maioria dos preconceitos, embora nem todos, são produtos das classes dominantes, mesmo quando essas pretendem […] contar com uma imagem do mundo isenta de preconceitos […] O fundamento dessa situação é evidente: as classes dominantes desejam manter a coesão de uma estrutura social que lhes beneficia e mobilizar em seu favor inclusive os homens que representam interesses diversos (e até mesmo, em alguns casos, as classes dominadas e antagônicas). Com a ajuda dos preconceitos, apelam à particularidade individual, que – em função de seu conservadorismo, de seu comodismo e de seu conformismo, ou também por causa de interesses imediatos – é de fácil mobilização contra os interesses de sua própria integração e contra a práxis orientada no sentido do humano-genérico”.

A coesão da sociedade burguesa foi, desde o primeiro momento, mais instável que as da Antiguidade ou do feudalismo clássico. Por isso, os chamados preconceitos de grupo (os preconceitos nacionais, raciais, étnicos) só aparecem no plano histórico, em seu sentido próprio, com a sociedade burguesa.

O desprezo pelo “outro”, a antipatia pelo diferente, são tão antigos quanto a própria humanidade. Mas, até a sociedade burguesa, a mobilização de sociedades inteiras contra outras sociedades, mediante sistemas de preconceitos, não constituiu jamais um fenômeno típico.

Por outro lado, o elemento dialético presente no pensamento de Heller impede que sua análise conduza a becos sem saída, pois embora reconheça a impossibilidade de uma completa eliminação de preconceitos, “eliminar a organização dos preconceitos em um sistema” permanece, na visão dela, algo factível: “[…] os preconceitos poderiam deixar de existir se desaparecessem a particularidade que funciona com inteira independência do humano-genérico, o afeto da fé, que satisfaz essa particularidade, e, por outro lado, toda integração social, todo grupo e toda comunidade que se sintam ameaçados em sua coesão”.

Acreditamos que tal desaparecimento não é de modo algum utópico, pois se revela como possibilidade a ideia de uma sociedade na qual cada homem possa chegar a ser indivíduo, possa configurar por si mesmo a condução da vida, e na qual a particularidade deixe de funcionar “independentemente” do humano-genérico. “Numa sociedade desse tipo, não seriam suprimidos os falsos juízos provisórios, mas desapareceria a adesão a eles, ditada pela fé, ou seja, desapareceria sua cristalização em preconceito. […] Mas […] como a possibilidade de elevar-se à condição de indivíduo real é dada tão somente a cada ente singular (o que de nenhum modo significa que todo ente singular chegue a ser indivíduo), torna-se então evidente que os preconceitos não podem ser totalmente eliminados do desenvolvimento social. Mas é possível, em troca, eliminar a organização dos preconceitos em sistema, sua rigidez e – o que é mais essencial – a discriminação efetivada pelos preconceitos”.

Propomos pensar sobre a pós-verdade, a Palavra do Ano de 2016 do Oxford Dictionaries, também através desta lente. Pós-verdade é “um adjetivo definido como ‘relacionado a ou denotando circunstâncias em que os fatos objetivos são menos influentes na formação da opinião pública do que apelos à emoção e crença pessoal’.”[v] A pós-verdade também tem uma particularidade sócio técnica muito importante: fruto e fonte de circulação massiva de desinformação, de forma ubíqua e com finíssima capilaridade social, em nichos de massa, graças aos desempenhos de alguma forma articulados da indústria cultural e da inteligência artificial aplicada em algoritmos e robôs, promovendo novas formas de captura e retroalimentação dirigida dos gostos[vi], mediante o monitoramento dos likes do Facebook e todas as formas de vigilância da navegação e das trocas de mensagens nas redes digitais, passando pelas compras e pelo próprio deslocamento no espaço não digital.

Em outras palavras, enquanto a Indústria Cultural pode propagar “apelos à emoção e crença pessoal” em larga escala, os algoritmos e robôs são capazes de produzir efeitos ainda mais surpreendentes, também em larga escala, mas para diferentes grupos de clientes e com mais precisão. Esses dispositivos identificam e reforçam as crenças, opiniões e gostos, mediante processos onipresentes de vigilância digital, do Google, Amazon, Facebook etc., no sentido de ganhar adesão e aumentar a circularidade entre usuários de redes sociais na internet para as mesmas causas.

Em uma era digital, o dilúvio de dados atravessa o próprio tempo, comprimido entre nuances do presente (cada vez mais fugaz) e futuro (cada vez mais urgente, mais repentino). O tempo perde reflexividade, sua passagem sendo oprimida por armadilhas informacionais ultra tecnológicas aceleradas e ubíquas. É em tal cenário que a desinformação que alimenta a pós-verdade é produzida. A pós-verdade converte-se então em capital, político e econômico, ambos crescentemente controlados por aqueles que regulam a produção, circulação e consumo de informação.

Neste novo jogo de informação, a manipulação do tempo também se torna meio de exploração e agente de propaganda e desinformação.

O fenômeno da pós-verdade torna, portanto, legítimo que se resgate a noção tomista de verdade como correspondência das coisas e da compreensão. Acrescentamos que o que media a verdade e a compreensão é a informação, que é, entre outras coisas, a ativação da potência da linguagem – no limite, em direção ao esclarecimento ou à mistificação, à liberdade ou à opressão.

Não há espaço aqui para aprofundarmos muito o debate em torno dos limites da definição tomista de verdade, se apenas tivermos em mente, como visto acima, a virada linguística na filosofia do século XX. Porém, se partirmos da definição de verdade como correspondência das coisas e da compreensão, mas formos além, tendo em mente a distinção de Hegel (2010) entre entendimento  (compreensão mais particular, superficial e fixa) e razão (compreensão profunda, dinâmica e universal, em intercurso dialético mutuamente constitutivo com o particular e o singular), e entre existência (contingente) e realidade / efetividade (necessária), em seus desenvolvimentos históricos, então arriscamos reelaborar a definição tomista em novos termos, talvez promissores: a verdade torna-se a correspondência entre razão e realidade / efetividade, em uma relação dialética dinâmica, mediada pela linguagem, tanto enquanto estrutura quanto ativada em informação, em conjunto com as experiências de vida não discursivas dos sujeitos, com suas cargas e processos informacionais não linguísticos singulares: experiências, percepções, emoções, ações.

Dando um passo adiante, também propomos articular essa noção de verdade com a dialética histórica entre o ser social e a consciência social. Uma vez que se estabelece a divisão das sociedades humanas em proprietários e não proprietários dos meios de produção, e com ela a divisão do trabalho (e de seus frutos) entre comando e execução, a luta contra ou a favor da liberdade tornou-se o leitmotiv da realidade histórica, seu motor, a principal mediação entre o ser e a consciência social. Ora, dada a centralidade da divisão da propriedade e do trabalho nessa luta, outro nome que se pode lhe dar é luta de classes.

A verdade, então, como a correspondência entre razão e realidade, em uma dialética mediada pela linguagem (enquanto estrutura ou ativada em informação) e pelo conjunto das experiências de vida não discursivas dos sujeitos, que por sua vez tem na luta de classes a principal mediação entre ser e consciência social, remete à proposição ética, política e epistemológica de Benjamin sobre como a história não deve ser conceptualizada apenas como uma sequência narrativa evolutiva não ficcional de qualquer evento histórico factual (existente), apontando para um futuro melhor (o progresso), baseado em um conceito vazio de tempo, mas como uma narrativa explicativa não ficcional, cujo foco são os eventos de uma temporalidade especial, que revelam a luta a favor ou contra a opressão como a realidade essencial da existência social em sua contradição interna, em sua racionalidade própria, com novos e ricos conceitos de tempo, especialmente o tempo messiânico, sobre o qual voltaremos a seguir.[vii]

Colombo! Fecha a porta dos teus mares

Castro Alves (1847-1871) publicou em 1869 O navio negreiro. A última sentença do poema é: “Colombo! Fecha a porta dos teus mares!”

Por que Colombo deveria fechar a porta dos seus mares?

Todos conhecemos bem as contradições das esperanças ocidentais e as calamidades que ocorreram durante os últimos três séculos. O mercado negro de escravos dos séculos XVII, XVIII e XIX foi provavelmente o exemplo mais abjeto dessas calamidades. O poema de Castro Alves denunciou com veemência o momento de circulação deste mercado, o tráfico náutico de escravos. Talvez isso possa ser tomado como uma metonímia dos piores resultados das contradições do século XIX, de alguma forma como Auschwitz em relação ao século XX: duas expressões extremas da peste do preconceito e da opressão.

Vamos reproduzir abaixo alguns versos do poema de Castro Alves, por sua beleza única e poder expressivo, e como corolário dos argumentos que desenvolvemos acima, principalmente porque os eventos do poema eram contemporâneos e relacionados a uma grande conquista sócio técnica da informação, a rede telegráfica intercontinental submarina – que tornou-se possível, de alguma forma, devido ao tráfego náutico de homens negros, parte necessária da divisão internacional do trabalho e grande fonte de lucro no período ascendente do capitalismo.

Paroxismo de alienação e brutalidade nesta fase ascensional, tanto os escravos quanto os cabos cruzaram os mares transportados por navios com propósitos semelhantes: servirem aos donos do capital de então, considerada a divisão internacional do trabalho vigente. Pois a escravidão negra moderna, como todos sabemos, serviu principalmente às plantações da América do Norte e da América do Sul – algodão, tabaco, açúcar, café –, além de outras lucrativas atividades de extração e comércio a esta altura: prata, ouro, borracha; e os cabos submarinos eram estratégicos para a troca de informações comerciais transcontinental, inclusive para a configuração da bolsa internacional.[viii]

Em tempos de capital novo, existem novas formas de colonização. E apontar o episódio dos telégrafos parece instrutivo para entender em perspectiva a gênese de como hoje o capital informacional, na forma de dados, tornou-se um dos meios mais intensos de exploração.

O poema de Castro Alves principia com a imagem de um navio singrando rapidamente o azul indistinto de céu e oceano. O poeta expressa sua vontade de ser um albatroz, “águia dos mares”, para ver de perto a cena. Quando se aproxima, no entanto, emerge o horror do tráfico náutico de escravos:

[…] Mas que vejo eu aí… Que quadro d’amarguras! 
É canto funeral! … Que tétricas figuras! … 
Que cena infame e vil… Meu Deus! Meu Deus! Que horror!

IV

Era um sonho dantesco… o tombadilho  
Que das luzernas avermelha o brilho. 
Em sangue a se banhar. 
Tinir de ferros… estalar de açoite…  
Legiões de homens negros como a noite, 
Horrendos a dançar…
Negras mulheres, suspendendo às tetas  
Magras crianças, cujas bocas pretas  
Rega o sangue das mães:  
Outras moças, mas nuas e espantadas,  
No turbilhão de espectros arrastadas, 
Em ânsia e mágoa vãs!
E ri-se a orquestra irônica, estridente… 
E da ronda fantástica a serpente  
Faz doudas espirais… 
Se o velho arqueja, se no chão resvala,  
Ouvem-se gritos… o chicote estala. 
E voam mais e mais…
Presa nos elos de uma só cadeia,  
A multidão faminta cambaleia, 
E chora e dança ali! 
Um de raiva delira, outro enlouquece,  
Outro, que martírios embrutece, 
Cantando, geme e ri!
No entanto o capitão manda a manobra, 
E após fitando o céu que se desdobra, 
Tão puro sobre o mar, 
Diz do fumo entre os densos nevoeiros: 
“Vibrai rijo o chicote, marinheiros! 
Fazei-os mais dançar!…”
E ri-se a orquestra irônica, estridente. . . 
E da ronda fantástica a serpente 
Faz doudas espirais… 
Qual um sonho dantesco as sombras voam!… 
Gritos, ais, maldições, preces ressoam! 
E ri-se Satanás!…”

V

Senhor Deus dos desgraçados! 
Dizei-me vós, Senhor Deus! 
Se é loucura… se é verdade 
Tanto horror perante os céus?! 
Ó mar, por que não apagas 
Co’a esponja de tuas vagas 
De teu manto este borrão?… 
Astros! noites! tempestades! 
Rolai das imensidades! 
Varrei os mares, tufão!

O fim do tráfico de escravos no Brasil ocorreu a partir de 1850, com a promulgação da Lei Eusébio de Queirós. Embora tenha exercido pressão por seu fim (diz-se que por razões comerciais), a Inglaterra lucrou bastante com ele entre os séculos XVII e XIX: “As estimativas dão conta de que pelo menos 1,5 milhão de africanos tenham sido transportados da África para a América por embarcações que partiram de Liverpool. Esse contingente consiste em mais de 10% do total de escravos vendidos de que se tem conhecimento.”[ix]

Esse lucro certamente contribuiu para a Revolução Industrial, que favoreceu a criação do telégrafo submarino transcontinental, o bisavô da Internet.

Quase simultaneamente, o navio negreiro navegava pelos mares sob os quais a comunicação a distância era estabelecida em tempo real, na primeira forma de telegrafia transcontinental:

A invenção da telegrafia por Samuel Morse em 1843 incentivou a ideia de serem lançados cabos atravessando o Atlântico para utilizar a nova tecnologia. O norte-americano Charles Field e os britânicos Charles Bright e os irmãos John e Jacob Brett fundaram uma empresa para lançar o primeiro cabo submarino telegráfico intercontinental.

No ano seguinte, dois navios, um britânico e um americano, transportaram 2.500 milhas náuticas (4.630 km) de cabo, partindo da Irlanda. O cabo se rompeu quanto já haviam sido lançados cerca de 750 km. Nova tentativa foi feita em 1858 e novo rompimento ocorreu quando somente 250 km haviam sido lançados.

Ainda em 1858 houve uma terceira tentativa. Essa foi bem-sucedida, os navios partiram do meio do Atlântico e atingiram portos em lados opostos sem nenhuma ocorrência de rompimento. A mensagem “Glory to God in the highest, and on Earth, peace, good will to men” foi enviada.

Esse sucesso teve, porém, curta duração, pois poucas semanas depois desse pioneiro sucesso, o cabo por problemas das voltagens utilizadas veio a falhar. Somente 8 anos depois garantiram-se operações confiáveis nessa comunicação entre América do Norte e Europa.[x]

Assim, como sabemos, três anos após o início das operações confiáveis, Castro Alves publicou O navio negreiro, cujos versos finais são:

Auriverde pendão de minha terra,
Que a brisa do Brasil beija e balança,
Estandarte que a luz do sol encerra
E as promessas divinas da esperança…
Tu que, da liberdade após a guerra,
Foste hasteado dos heróis na lança
Antes te houvessem roto na batalha,
Que servires a um povo de mortalha!…
Fatalidade atroz que a mente esmaga!
Extingue nesta hora o brigue imundo
O trilho que Colombo abriu nas vagas,
Como um íris no pélago profundo!
Mas é infâmia demais! … Da etérea plaga
Levantai-vos, heróis do Novo Mundo!
Andrada![xi] arranca esse pendão dos ares!
Colombo! fecha a porta dos teus mares!

A ideia da “força messiânica”, de Benjamin, também reivindica, a seu modo, que Colombo feche a porta dos seus mares; ele também afirma, à sua maneira, “Levantai-vos, heróis do Novo Mundo!”, dirigindo-se à humanidade de seu tempo, que ainda é o nosso tempo, conclamando-a a interromper o tempo vazio de um fluxo contínuo de calamidade. Esse fluxo atravessa todas as eras, mas algumas delas têm um vislumbre do tempo messiânico.

“Tempo messiânico” e “força messiânica”, em Benjamin, não representam utopias teológicas idealistas requentadas, mas uma releitura do messianismo judaico em seus termos materialistas mais inspiradores, como uma expressão necessária da potência humana para nunca se submeter, de uma vez por todas, à opressão, e de oxalá superá-la de uma vez por todas, ao menos em suas formas mais brutais. É uma expressão da necessidade humana criativa e combativa de liberdade, solidariedade e mesmo sensualidade.

Nas palavras de Benjamin: “O passado traz consigo um índice misterioso, que o impele à redenção. Pois não somos tocados por um sopro do ar que foi respirado antes? Não existem, nas vozes que escutamos, ecos de vozes que emudeceram? Não têm as mulheres que cortejamos irmãs que elas não chegaram a conhecer? Se assim é, existe um encontro secreto, marcado entre as gerações precedentes e a nossa. Alguém na terra está à nossa espera. Nesse caso, como a cada geração, foi-nos concedida uma frágil força messiânica para a qual o passado dirige um apelo. Esse apelo não pode ser rejeitado impunemente. O materialista histórico sabe disso.”

Por que o materialista histórico sabe disso? Porque: “A luta de classes […] é uma luta pelas coisas brutas e materiais, sem as quais não existem as refinadas e espirituais. Mas na luta de classes essas coisas espirituais não podem ser representadas como despojos atribuídos ao vencedor. Elas se manifestam nessa luta sob a forma da confiança, da coragem, do humor, da astúcia, da firmeza, e agem de longe, do fundo dos tempos. Elas questionarão sempre cada vitória dos dominadores. Assim como as flores dirigem sua corola para o sol, o passado, graças a um misterioso heliotropismo, tenta dirigir-se para o sol que se levanta no céu da história. O materialismo histórico deve ficar atento a essa transformação, a mais imperceptível de todas”.

O “tempo messiânico” é a antecipação ou a efetivação do “sol que está surgindo no céu da história”. Em termos menos poéticos, significa o vislumbre ou a efetivação do fim da prática do mais violento dos processos sociais, a transformação de sujeitos em objetos, de seres humanos em coisas, forma matricial de todas as outras violências.

Dito nesses termos, se trata de uma ideia que tem suas raízes pelo menos em Kant. Kant afirmou que devemos categoricamente proibir a redução de sujeitos a objetos, porque isso bloqueia seus poderes internos de liberdade, ou seja, de alcançar a boa vontade para agir de acordo com a razão.

Hegel foi o primeiro a pensar este problema e sua possível solução em perspectiva sócio histórica, concluindo que essa boa vontade, ou, nos seus termos, a vontade livre que quer a vontade livre, só pode ser efetivada através de leis e instituições que permitam e favoreçam seu florescimento.

A crítica necessária às contradições entre as “grandes narrativas” ocidentais e os eventos históricos traumáticos que as reivindicaram não deveria nos levar a abandonar o que ainda é justo e verdadeiro nas esperanças ocidentais universais de liberdade e razão. No entanto, a maior parte da intelligentsia dos dias de hoje não parece estar seriamente comprometida com essa perspectiva totalizante. Neste ponto, somos descaradamente fracos, teórica e praticamente, em comparação com os grandes pensadores críticos e estrategistas da modernidade.

Considerações finais

Certamente todas as culturas, com suas visões de mundo particulares, enfrentaram e ainda enfrentam, expressaram e ainda expressam, viveram e ainda vivem, discursiva e extra discursivamente, o drama do bem e do mal, que englobam verdade e mentira, liberdade e opressão, com todo o seu complexo gradiente. No entanto, o conhecimento acumulado de que dispomos nos permite vislumbrar o todo numa perspectiva mais ampla. E com um compromisso urgente.

A filosofia do sujeito, do cogito de Descartes às críticas kantianas, substituiu a tradicional questão ontológica metafísica sobre o que é real pelo problema epistemológico sobre o que podemos conhecer, que se tornou hegemônico na filosofia acadêmica desde então (Ilyenkov, 1977). Advogamos aqui a importância de se reintroduzir no debate sério a questão sobre o que é a realidade, partindo da noção metafísica de verdade como correspondência entre as coisas e o entendimento para reformulá-la nos termos de correspondência entre razão e realidade, mediada pela linguagem e pelo conjunto de experiências não discursivas dos sujeitos, em sua dinâmica histórica, que tem na luta de classes seu leitmotiv.

O fizemos porque entendemos que o fenômeno da pós-verdade torna vital insistir no fato óbvio de que nem todas as narrativas são igualmente verdadeiras ou mesmo aceitáveis, sendo várias delas extrema e deliberadamente falsas e perniciosas. Precisamos de critérios racionais para estabelecer a distinção entre umas e outras, e de força política para impedir que a alucinação conduza a opinião pública.

Nossa cultura, em sua vertente crítica, parece incapaz de enfrentar os desenvolvimentos informacionais entrópicos em curso sem antes superar o relativismo pós-moderno e sua negação das “grandes narrativas”. Sua concentração fragmentária nas políticas identitárias, cujo valor não negamos, é expressão disso. A crítica necessária às “grandes narrativas” tradicionais não deve conduzir a sua rejeição completa. Pelo contrário, talvez precisemos, mais do que nunca, de novas, emancipatórias e convincentes “grandes narrativas”. E devemos enriquecê-las com todos os tipos de mediações culturais particulares e experiências singulares, mas devemos articular essas experiências singulares e mediações particulares em novos – cuidadosa e efetivamente desenvolvidos – programas emancipatórios universais.

Definimos informação neste artigo como linguagem ativada, como a atualização da potência da linguagem, seja em discursos orais, textos escritos, filmes, memes digitais e assim por diante. A realidade é uma experiência discursiva e extra discursiva, bem como uma pressuposição da função referencial da própria linguagem, não podendo ser fundamentada nem em preconceitos nem em crenças, mas racionalmente e empiricamente.

A linguagem é tanto uma estrutura dinâmica de produção de sentido, criação do humano-genérico, como um veículo para os nossos sentimentos e pensamentos, particulares e singulares, possibilitando alguma relação inteligente com o mundo, ou o contrário; através da informação, é também performática, expressão, comunicação, praxis. Se a linguagem é uma criação social humana, quando e onde o mundo social forem tensionados pela luta de classes, a linguagem e a informação serão tanto uma expressão desta luta quanto armas em meio a ela.

É ingênuo pensar que jogos performativos desinteressados de informação – produção, registros, circulação, acesso, recuperação, organização, uso etc. – constituam a maior parte do campo da informação. Não devemos ignorar que forças sociais poderosas controlam suas tecnologias, regras legais e tácitas, até mesmo seus usos populares, até certo ponto. Não compreender esses fatos, deixa-nos desarmados para lutar contra o renascimento do fascismo em sua forma de pós-verdade midiática e digital. Então novos e poderosos Goebbels (e seus aliados), com seus jornais, canais de televisão, algoritmos, dispositivos de vigilância digital e bots, vencerão a batalha discursiva, e não apenas esta, através de seu desempenho sombrio. Infelizmente eles já estão vencendo.

Isso traz um desafio ético informacional muito sério. Porque o bacilo da peste fascista está crescendo, mesmo nos cantos mais inesperados da “civilização”, através de inúmeras formas e vias, principalmente digitais, de repetir mentiras, informações referenciais falsas, que sustentam crenças forjadas e às vezes fé cega, que legitimam ideologicamente, enquanto ignoram, os processos de reificação cada vez mais entrópicos em curso. Da concentração de fortunas, até um ponto em que poucos indivíduos possuem o mesmo que bilhões de outros, a novas estratégias de marketing espúrias para vencer as eleições ao redor do mundo.

O fascismo, tomado num sentido amplo e alegórico, como uma peste, como o paroxismo de violência, irracionalidade, particularismo, opressão, extermínio brutal de seres humanos, conjunto de crenças estúpidas, sempre esteve presente, com intensidade variável. Os oprimidos do mundo, como Benjamin denunciou, sempre viveram sob violência e abuso; mas a esperança moderna da civilização ocidental de superar evolutivamente o poder entrópico dessa peste talvez esteja mais fraca do que nunca.

Um dos principais desafios ético políticos dos dias de hoje é a pós-verdade, em todas as suas variedades bizarras, racionalizações espúrias, expressões vitoriosas fragmentárias e quase onipresentes, das múltiplas formas contemporâneas de crença e fé que sustentam um sistema social estruturalmente excludente e sem saída, sem mesmo entender seu significado. Esse problema e qualquer teorização ética que o ignora ou evita são sintomas do renascimento do bacilo da peste fascista.

Temos alguma esperança realista e racional, apontando para um futuro melhor, até mesmo para reduzir as calamidades em curso? O fato das calamidades serem a regra, como lembra Benjamin, não libera cada geração de sua responsabilidade particular.

Estamos vivendo em meio a um tipo estranho de niilismo hedonista, mascarado com dramas onipresentes da indústria cultural, narcisismo do Facebook e tagarelagem tola e frequentemente perigosa no whatsapp. Estamos diante da destruição do futuro como espetáculo, no Youtube e em tantos filmes americanos distópicos sobre guerras, cometas, zumbis, pragas e assim por diante, fenômeno que tanto recorda a exaltação estética da guerra pelos futuristas / fascistas italianos nas primeiras décadas do século XX.

Essa estética dominante de pesadelo, aliada à falta de esperança e estratégia, racional e realista, para uma vida melhor e comum entre os seres humanos e o planeta, não é um sintoma do renascimento da peste? Não deveríamos concentrar nossa praxis neste ponto? Não deveria este sintoma, catalisado na celebridade de hoje da noção de pós-verdade, nos alertar que a repetição de mentiras – má informação, crenças perigosas, ignorando amplamente até mesmo as referências mais óbvias e conhecidas – foi longe demais?

O tráfico negreiro e Auschwitz são frutos venenosos da contradição central do Iluminismo, um projeto formal cuja vertente vitoriosa, à direita do espectro político, subtraiu aos imperativos humanistas republicanos de liberté, egalité, fraternité as transformações radicais necessárias no regime de propriedade burguês, indispensáveis para torná-los universalmente efetivos.

A perpetuação desse regime e seus desdobramentos caóticos fazem as contradições entre o singular (indivíduos), o particular (classes sociais e outros grupos sociais, religiosos, étnicos, nacionais) e os interesses universais (humanidade) cada vez mais entrópicas. Somente a ideia de “tempo messiânico”, como a efetividade de seu conceito, aponta para a superação dessa contradição.

A degeneração do Iluminismo no positivismo está no centro da bandeira brasileira: “Ordem e progresso”. O governo Temer reativou essa sentença como sua insígnia, substituindo as duas anteriores, do governo do Partido dos Trabalhadores, deposto: “Brasil, Pátria Educadora” e “Um país rico é um país sem pobreza”.

Essa substituição discursiva veio acompanhada de uma mudança geral das políticas oficiais, com destaque para o desvio dos recursos preciosos do pré-sal, dos serviços públicos de saúde e educação para sua privatização, juntamente com a privatização de outros setores públicos fundamentais. Ordem e progresso, na realidade contemporânea brasileira, significa entrega dos recursos naturais e do patrimônio público ao interesse privado, mormente de grandes corporações transnacionais, aliada à destruição dos direitos sociais, à repressão dos movimentos sociais, ao combate contra a educação crítica.

Além dos notáveis avanços sociais produzidos pelo deposto Partido dos Trabalhadores no Brasil, seu governo tinha sérios problemas e contradições, incluindo o envolvimento de alguns de seus membros com a corrupção mais comum, embora em número comprovadamente inferior ao dos membros de outros partidos, em especial daqueles que apoiaram o golpe.

Por outro lado, a plutocracia cleptocrática (ou seria cleptocracia plutocrática?) do Brasil, com seus velhos e novos atores, é mais uma vez totalmente coerente, nos termos particulares da racionalidade instrumental de seu projeto neoliberal. Suas contradições dizem respeito apenas a quem recebe a maior parte do butim ou escapa da prisão.

Diante desse quadro, devemos atualizar a força e a busca do tempo messiânicos de Benjamin contra o tempo vazio do positivismo e do neoliberalismo, para além do relativismo pós-moderno, muito vulneráveis ao bacilo da peste. Ao fazer isso, talvez possamos contribuir para tornar efetivas as afirmações de Castro Alves: “Colombo, fecha a porta dos teus mares!” Não para todo o pensamento ocidental, mas para o imperialismo, o fascismo, o neoliberalismo, a pós-verdade.

*Marco Schneider é professor adjunto do Departamento de Comunicação da Universidade Federal Fluminense (UFF).

*Ricardo M. Pimenta é professor no Programa de Pós-graduação em Ciência da Informação (PPGCI/IBICT-UFRJ).

Referências

ADORNO Theodore; HORKHEIMER, Max. Dialética do Esclarecimento. Rio de Janeiro: Zahar, 1985.

ALVES, Castro. O Navio Negreiro.

BENJAMIN, Walter. Sobre o conceito de história.

BOITO Jr., Armando. A terra é redonda e o governo Bolsonaro é fascista. In: https://aterraeredonda.com.br/a-terra-e-redonda-e-o-governo-bolsonaro-e-fascista/. BORON, Atilio. Caracterizar o governo de Jair Bolsonaro como “fascista” é um erro grave. https://www.brasildefato.com.br/2019/01/02/artigo-or-caracterizar-o-governo-de-jair-bolsonaro-como-fascista-e-um-erro-grave/.

CAMUS, Albert. Lettre à Roland Barthes.

CAMUS, Albert. La Peste. Paris: Gallimard, 1947.

HASHIZUME, Maurício. Arquivo mostra como escravidão enriqueceu os ingleses. Repórter Brasil. Opera Mundi

http://operamundi.uol.com.br/conteudo/noticias/27477/arquivo+mostra+como+escravidao+enriqueceu+os+ingleses.shtml#.

HEGEL, G.W.F. Filosofia do Direito. São Leopoldo/RS: Unisinos, 2010.

HELLER, Agnes. O Cotidiano e a História. São Paulo: Paz e Terra, 2004.

ILYENKOV, Evald (1977). Dialectical Logic.

KANT, Immanuel. Fundamentação da Metafísica dos Costumes e outros escritos. São Paulo: Martin Claret, 2002.

KLEE, Paul. Angelus Novus.

PIMENTA, Ricardo M. As rugosidades do ciberespaço: um contributo teórico aos estudos dos web espaços informacionais. Informação & Sociedade: Estudos, João Pessoa, v.26, n.2, p. 77-90, maio/ago. 2016.

PLATÃO. Diálogos: Menon-Banquete-Fedro. 2ª.Rio de Janeiro: Globo, 1950.

SCHNEIDER, Marco. A Dialética do Gosto: informação, música e política. Rio de Janeiro: Circuito / Faperj, 2015. 

SCHNEIDER, Marco. Economia política da comunicação, estudos culturais e ciência da informação: uma entrevista com Armand Mattelart. Revista Mídia e Cotidiano. N. 10, Dez. 2016.

SCHNEIDER, Marco; PIMENTA, Ricardo M. Walter Benjamin’s concept of history and the plague of post-truth. International Review of information ethics, v. 26, 2017, p. 61-77.

TURNER, J.M.W. The Slave Ship.

WIKIPEDIA. Cabo Submarino. https://pt.wikipedia.org/wiki/Cabo_submarino..

WILLIAMS, Raymond. Televisão: tecnologia e forma cultural. Sâo Paulo: Boitempo, 2016.

Notas


[i] Este artigo foi originalmente publicado em inglês na International Review of Information Ethics, em 2017. Trata-se aqui de uma versão revisada e ampliada, inédita em português.

[ii] Há controvérsias quanto a este uso por assim dizer genérico do termo “fascismo”. Argumenta-se que não se deve perder de vista as especificidades do fenômeno em sua singularidade histórica, a despeito de diversos traços que compartilha com outros regimes autoritários anteriores e posteriores. Ver, por exemplo, Boron (2019) e Boito Jr. Sem ignorar esse argumento, entendemos que, para os fins da presente exposição, interessa destacar o que há de comum entre o fascismo dos anos 1920-40 e tendências políticas emergentes ao redor do mundo hoje, sobretudo aquelas cujo sucesso, ainda que provisório, parece em grande parte devido ao que denominamos de atualização sócio técnica de velhas práticas informacionais fascistas.

[iii] Não mencionamos aqui a televisão por duas razões: ainda não havia se popularizado nos anos 1930 e 1940, nem é o foco da presente análise. Não obstante, cabe registrar que talvez tenha sido o mais influente dispositivo de reprodução ideológica da segunda metade do século XX, ainda ocupando uma posição de destaque no momento atual. Para um aprofundamento do debate em torno da TV, em particular, e do desenvolvimento e uso social das tecnologias como um todo, ver Williams, 2016.

[iv] A epistemologia, embora evite o recurso à noção de “verdade”, por sua carga metafísica, preocupa-se com os critérios que permitam produzir e definir conhecimento do tipo científico, isto é, racional, objetivo e não enganoso. Seria absurdo definir esse tipo de conhecimento como verdadeiro? 

[v] Ver https://en.oxforddictionaries.com/word-of-the-year/word-of-the-year-2016.

[vi] A noção de captura do gosto foi originalmente desenvolvida em Schneider, 2015. (Este livro está disponível em PDF para acesso gratuito neste link)

[vii] Da nota do tradutor de uma versão em inglês de Sobre o Conceito de História, que também consultamos para a elaboração deste trabalho: “Jetztzeit was translated as ‘here-and-now,‘ in order to distinguish it from its polar opposite, the empty and homogenous time of positivism. Stillstellung was rendered as ‘zero-hour‘, rather than the misleading ‘standstill‘; the verb ‘stillstehen‘ means to come to a stop or standstill, but Stillstellung is Benjamin’s own unique invention, which connotes an objective interruption of a mechanical process, rather like the dramatic pause at the end of an action-adventure movie, when the audience is waiting to find out if the time-bomb/missile/terrorist device was defused or not).“

See https://www.marxists.org/reference/archive/benjamin/1940/history.htm.

[viii] Em entrevista concedida a um dos autores deste artigo, em Cuba, Armand Mattelart (2016) faz menção a um livro, cujo título não se recordava, de Manuel Fraginals, sobre o qual nos informa: “O livro é muito interessante. É uma história da construção da economia do açúcar. Esse livro me inspirou muito, pois mostra como o telégrafo e o cabo submarino, no fim do século XIX, foram determinantes na configuração da bolsa internacional”.

[ix] Ver Hashizume, 2013. Disponível em: https://operamundi.uol.com.br/noticia/27477/arquivo-mostra-como-escravidao-enriqueceu-os-ingleses. Acesso em 04.01.2019.

[x] https://pt.wikipedia.org/wiki/Cabo_submarino.

[xi] José Bonifácio de Andrada e Silva (Santos, 13 de junho de 1763 — Niterói, 6 de abril de 1838) foi um naturalista, estadista e poeta luso-brasileiro, conhecido pelo epíteto de Patriarca da Independência por seu papel decisivo na Independência do Brasil.

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