Por MARCOS SILVA*
A República como elaboração intelectual e artística segundo os caricaturistas e seus leitores
A tese “República das penas: a construção do repertório imagético da República nas páginas das revistas O Mequetrefe, Revista Ilustrada e Don Quixote (1889/1902)”, de Washington Kuklsinki Pereira, assume destaque pela boa definição temática, ao identificar a República brasileira também na condição de escrita, com maior ênfase na Caricatura, sem esquecer de imprensa textual e legislação.[i] Nesse sentido, a República é tratada como elaboração intelectual e artística, feita por diferentes setores da sociedade no Brasil – dentre eles, os caricaturistas e seus leitores.
Discutir a Imprensa periódica, que surgiu tão tardiamente em nosso país, é igualmente necessário em termos gerais da História Cultural, diante do caráter ainda mais tardio de uma indústria editorial no país voltada para a produção de livros, donde jornais e revistas ainda se constituírem, naquela época, em núcleos muito importantes de debate intelectual e artístico – além de político, é claro.
A problematização do tema, nessa tese, assume alguns limites quando prioriza personagens (presidentes da república, ministros, intendentes) e um espaço social específico (o Distrito Federal – cidade do Rio de Janeiro), deixando parcialmente de lado influentes núcleos estaduais de Economia e poder político (São Paulo, Bahia, Pernambuco, Rio Grande do Sul etc.) e concentrando a Política no espaço institucional, levando menos em conta seu fazer-se cotidiano em toda a sociedade – disputas de poder.
A ênfase na alegoria da República – a versão brasileira da francesa Marianne– a faz permanecer ainda mais presa à Política institucional. Caberia pensar sobre o uso dessa alegoria como indicador de um público habituado àquele nível de informação, que conhecia a imagem gaulesa e a transferia para a realidade do Brasil – cidadania elitizada, similar ao que se constata na inauguração do Teatro Municipal de São Paulo em 1911, descrita por Mirna Busse Pereira (o povo recepcionado no interior do prédio era a elite paulistana; os pobres da cidade ficaram em seu lado de fora)[ii]. Ainda nesse contexto, valeria a pena cotejar temas pesquisados no Brasil com seus congêneres franceses, estudados, dentre outras obras, no livro La caricature sous la IIIe. République, de Jacques Lethève, e considerar que o diálogo cultural brasileiro com similares da França era muito forte no período que essa pesquisa aborda[iii].
No estudo de Washington, não aparece mais explicitamente a figura do povo republicano, que dá nome ao regime, como se sabe – Res publica, coisa do povo. Alguns exemplos caricaturais arrolados parecem aludir aos eleitores como animais, mas povo não se confunde literalmente com aquela parcela mais pobre da população inferiorizada pela comparação. Embora indique bibliografia considerável sobre Caricatura e República no Brasil, o trabalho finda por restringir esse contato com livros e artigos a breves citações informativas, sem efetivo diálogo crítico, como se observa em sua relação com meu livro Caricata República – Zé Povo e o Brasil e com a obra Ângelo Agostini – A Imprensa Ilustrada, da Corte à Capital Federal (1864/1910), de Gilberto Maringoni. Mesmo as clássicas História da caricatura no Brasil, de Herman Lima, e História da Imprensa no Brasil, de Nelson Werneck Sodré, foram abundantemente utilizadas apenas como fontes informativas, sem reflexões sobre suas características de método – brilhante História de jornalista e arquivista-colecionador, no primeiro caso, e ótimo panorama histórico marxista, no outro. A evocação de José Murilo de Carvalho, através da noção de “bestializados” (copiada de Aristides Lobo, como se sabe), requer debate crítico, uma vez que Carvalho não enfatiza a bestialização – quem tornou aqueles seres bestas, como foi tal processo -, questão que indiquei no texto “Sobre sujeitos e histórias – Barcarola para Marilena”, quando debati o abuso, por historiadores brasileiros ou estrangeiros traduzidos entre nós, de verbos na voz passiva substantivados – vencidos, excluídos etc. Alceu do Amoroso Lima, nos anos 20, escreveu o ensaio “Política e Letras”, publicado na coletânea À margem da História da República, onde caracterizou o império brasileiro como despolitizante e avesso à formação de cidadania, o que pode oferecer pistas para aquela bestialização – problema mais do Império queda República até então, como se vê…[iv]
Na p 53 da tese, há uma referência genérica a historiadores não identificados – quem são eles? Seria conveniente citar também Moacy Cirne, importante estudioso de quadrinhos, particularmente seu livro História e crítica dos quadrinhos brasileiros, que dá grande destaque ao pioneirismo de Agostini na criação dessa linguagem no Brasil e mesmo em escala internacional[v].
Sobre o alcance de tais revistas fora do Distrito Federal (p 87), em termos de distribuição, valeria a pena comentar meios e vias de transporte na época (navios, trens, poucas rodovias) e discutir o ensaio de Monteiro Lobato “A caricatura no Brasil”, incluído no volume Ideias de Jeca Tatu, que aponta o fazendeiro como leitor daquela Imprensa, mais o artigo de Max Fleiuss também intitulado “A caricatura no Brasil”, publicado na Revista do Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro de 1916, pioneiro balanço histórico do tema, que inaugurou entre historiadores brasileiros o interesse por esse gênero artístico e jornalístico (precedido pelos críticos de artes visuais, como o próprio Monteiro Lobato e Gonzaga Duque, o último em artigos de periódicos depois reunidos no volume póstumo Contemporâneos).No caso de Fleiuss, autor, dentre outras obras, de uma História administrativa do Brasil, fica claro o olhar da pesquisa histórica para a referida documentação entre nós, que alguns historiadores continuam a negar mais de cem anos depois![vi]
A tese entende prioritariamente, portanto, a República brasileira em sentido político restrito, refletindo menos sobre suas dimensões econômicas, culturais e sociais. A menção ao café, em alegórica homenagem visual ao herói republicano Benjamin Constant(p 163),evoca a ênfase daquele universo artístico e cultural na Economia e mesmo em suas conexões com o poder político e a identidade nacional, para não falar no regime.
Como em todo trabalho desse gênero, ocorreram erros de digitação (“sexto” no lugar de “cesto”, p 208), de vocabulário e de concordância, além de trechos aparentemente incompreensíveis (“pois o caricaturista, assim como o poeta, tem o poder de deixar em seu texto verbal e/ou não verbal.” – p 25. Deixar o quê?). Na p 27, João, o regente do trono português, é identificado como “VI”, ordinal cabível apenas depois que ele se tornou rei de Portugal– 1816, de maneira informal, quando sua mãe morreu, e 1818, quando ocorreu a sagração. A p 77 termina com um trecho talvez truncado (“o policial na cabeça dos escravos” – o primeiro fazia o que na cabeça dos outros, é uma metáfora para indicar poder psicológico do primeiro?). Na p 218, há um engano de identificação, numa imagem caricatural, entre Floriano Peixoto e São Longuinho, quando as referências imagéticas remetem claramente para o pensador grego da Antiguidade Diógenes de Sinope (a lanterna, o barril), caracterizando o governante como filósofo em busca de um homem honesto para ser o Prefeito do Distrito Federal – de passagem, Floriano Peixoto surge como pensador e avalista da honestidade alheia.
Metade do volume é dedicada à consolidação da Caricatura na Imprensa brasileira do século XIX, tema importante porque remete para compreender a formação de público e de produtores artísticos (imagem e texto) num país com Imprensa muito tardia quando comparado às demais colônias americanas, mas essa justificativa fica pouco clara na argumentação apresentada, poderia aparecer desde o título, passando por resumo e introdução. O título, por sua vez, sugere uma concentração em três revistas que, efetivamente, só ocorre na segunda metade da tese. Ele é adequado em termos de conteúdo, mas excessivo na extensão e carente de algumas especificações. Tal título poderia ser abreviado, com alterações, para “República das penas: o repertório caricatural da República brasileira nos periódicos O Mequetrefe, Revista Ilustrada e Don Quixote (1889/1902).
Falta também diálogo com a Literatura da época que problematizou a República brasileira nascente, em especial, Euclides da Cunha e Lima Barreto, podendo abranger criticamente, nesse passo, o livro Literatura como missão, de Nicolau Sevcenko, sem perder de vista o contexto político e historiográfico de seu lançamento em 1983: a caracterização, por essa última obra, da geração dos “mosqueteiros intelectuais” se deu na passagem da ditadura de 1964/1985 para a “redemocratização” (tempo de greves, grandes manifestações públicas contra a ditadura, ostensiva presença de intelectuais na cena política), articulada à definição, naquele presente, de intelectuais diferentes dos que criticavam a ditadura agonizante (v. entrevista desse historiador à revista Veja, 803, 25.1.1984, que inclui a chamada “Os engajamentos e acomodações que limitam a produção cultural brasileira, na visão de um jovem e inquieto historiador”)[vii]. Cunha, republicano, denunciou o tratamento que o ainda novo regime deu ao povo na Guerra de Canudos (1896/1897) – ao invés de Saúde e Educação, balas. Lima Barreto apresentou a violência cotidiana contra pobres e negros ou mulatos, mesclada à ideologia de branqueamento do Brasil. Estamos diante de capa-e-espada(mosqueteiros), em sentido pejorativo e banal, ou responsabilidade intelectual e política daqueles dois escritores e cidadãos diante de grandes problemas sociais? O diálogo com panoramas descritivos de Literatura e sociabilidade dos literatos pelo memorialismo jornalístico, como A vida literária no Brasil – 1900, de Brito Broca, e Estrutura social da república das letras, de A. L. Machado Neto, também beneficiaria a tese, ajudando a entender contextos intelectuais e artísticos das caricaturas[viii].
A noção de “República das penas” pode ser interpretada ao menos em três sentidos: 1) República escrita pelos bicos de pena em diferentes gêneros textuais e imagéticos (adotado pela tese). 2) República das punições (caricatura como gênero punitivo – ridendo castigat mores). 3) República dos sofrimentos (quem sofria com essas ou nessas punições?). A opção feita pela tese é legítima, mas a polissemia daquela expressão não pode ser ignorada no campo do riso, que tanto apela para deslizamentos de significações.
Essa questão da polissemia se manifesta em diferentes imagens comentadas e nem sempre foi suficientemente abordada pela obra. A figura de uma cabeça de porco, p. ex., inclui lágrima naquele pedaço de cadáver suíno, articula a Ideologia do Progresso (o cortiço – Cabeça de porco – deve ser destruído) a uma dimensão de acolhimento (o povo pobre – habitante da Cabeça de porco – sofre) – p 216. Essa caricatura é de 1893 e poderia ser comparada ao romance O cortiço, de Aluísio de Azevedo, muito expressivo sobre sofrimento de uns diante do enriquecimento de outros[ix].
As relações das caricaturas com fatos e verdade (pp 91/92) merecem ser nuançadas, levando em conta os vieses de crítica e intencional deformação próprios àquela linguagem artística. Embora ela nem sempre exija a leitura textual (p 93), vale realçar que engloba códigos, alegorias, simbologias, diferenciando-se de uma relação imediata e direta: trata-se de uma escrita (as penas…), a ser decifrada.
A tese tende a trabalhar as revistas como quase somente de caricaturas, embora registre a presença de outros materiais (gêneros de escrita e imagem) em suas páginas. Valeria a pena enfatizar que muitas imagens ali impressas assumiram o teor de alegorias receptivas, quando não de ilustrações no sentido descritivo e informativo mais tradicional – retratos de personagens públicos, por exemplo, como é indicado na identificação de membros do governo, em verdadeiras galerias. Mesmo nas caricaturas explícitas, há riso de exclusão e riso de acolhimento (existe registro de caricaturas elogiosas na p 14 da obra), conforme a tipologia de Dupreèl[x],convidando a análise a diversificar suas conclusões.
O estudo apresenta, em síntese, contribuições de interesse, merecendo uma maior divulgação.
*Marcos Silva é professor do Departamento de História da FFLCH-USP.
Notas
[i] PEREIRA, Washington Kuklinski. República das penas: a construção do repertório imagético da República nas páginas das revistas O Mequetrefe, Revista Ilustrada e Don Quixote(1889/1902).Tese de Doutorado em História, defendida na PUC/SP. São Paulo: digitado, 2016.
[ii] PEREIRA, Mirna Busse. Cultura e cidade: Prática e Política cultural na São Paulo do século XX. Tese de Doutorado em História, defendida na PUC/SP. São Paulo: digitado, 2005.
[iii] LETHÈVE, Jacques.La caricature sous la IIIe. République. Paris: Armand Colin, 1986.
[iv] SILVA, Marcos. Caricata República – Zé Povo e o Brasil. São Paulo: Marco Zero/CNPq, 1990, 100 pp (Onde está a República?).Essa publicação retoma, de forma abreviada, Dissertação de Mestrado em História Social do mesmo Autor, datada de 1981.
MARINGONI, Gilberto. Ângelo Agostini – A Imprensa Ilustrada da Corte à Capital Federal (1864/1910). São Paulo: Devir Livraria, 2011.Essa publicação retomaTese de Doutorado em História Social do mesmo Autor, datada de 2006.
LIMA, Hermann. História da caricatura no Brasil. Rio de Janeiro: José Olympio, 1963.
SODRÉ, Nelson Werneck. História da Imprensa no Brasil. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1966.
CARVALHO, José Murilo de. Os bestializados – O Rio de Janeiro e a República que não foi. São Paulo: Cia. das Letras, 1987.
SILVA, Marcos.“Sobre sujeitos e histórias – Barcarola para Marilena”, in: PAOLI, Maria Celia (Org.). Diálogos com Marilena Chauí. São Paulo: Discurso/Barcarola, 2011, pp 57/70.
LIMA, Alceu do Amoroso. “Política e Letras”, in: CARDOSO, Vicente Licínio (Org.). À margem da História da República- Inquérito por escritores da geração nascida com a República. 3ª ed. Recife: Massangana, 1990. pp 209-256 (1ª ed.: 1924).
[v] CIRNE, Moacy. História e crítica dos quadrinhos brasileiros. Rio de Janeiro: FUNARTE, 19 .
[vi] MONTEIRO LOBATO, José Bento. “A caricatura no Brasil”, in: Ideias de Jeca Tatu. São Paulo: Brasiliense, 1959, pp 3/21.
FLEIUSS, Max. “A caricatura no Brasil”. Revista do Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro. Rio de Janeiro: IHGB, 80: 584/609, 1916.
GONZAGA DUQUE, Luiz. Contemporâneos – Pintores e escultores. Rio de Janeiro: Benedito de Souza, 1929.
FLEIUSS, Max. História administrativa do Brasil. São Paulo: Melhoramentos, 1932 (1ª ed.: 1923).
[vii]CUNHA, Euclides da. Os sertões. São Paulo: Três, 1984 (1ª ed.: 1902).
LIMA BARRETO, Afonso Henriques de. Numa e a ninfa. São Paulo: Brasiliense, 1961 (Obras de Lima Barreto — III) (1ª ed. 1915).
SEVCENKO, Nicolau. Literatura como missão. São Paulo Brasiliense 1985.Essa publicação retoma Tese de Doutorado em História Social do mesmo Autor, datada de 1981
[viii]BROCA, Brito.A vida literária no Brasil, 1900. Rio de Janeiro MEC, 1956.
MACHADO NETO, A. L. Estrutura social da república das letras. São Paulo: EDUSP, 1973.
[ix] AZEVEDO, Aluísio de. O cortiço. São Paulo: Klick, 1997 (1ª ed.: 1890).
[x] DUPRÈL, E. “Le problème sociologique du rire”. Revue Philosophique de la France et de l’ Étranger. Paris: F. Alcan, 106, set/out 1928.