O reencontro entre a Águia e o Condor

Gabriela Pinilla, Camilo Torres no Teatro a Candelaria, ilustração de livro. Aquarela sobre papel, 20 X 25 cm. 2018, Bogotá, Colombia
Whatsapp
Facebook
Twitter
Instagram
Telegram

Por LEONARDO BOFF*

Ainda voaremos juntos, a Águia do Norte com o Condor do Sul sob a luz benfazeja do Sol que nos mostrará o melhor caminho

O planeta Terra devido à sistemática agressão nos últimos séculos está num franco e perigoso declínio. A intrusão do Covid-19 afetando diretamente todo o planeta e exclusivamente a espécie humana é um entre os severos sinais de que a Terra viva nos está enviando: nosso modo de vida é demasiadamente destrutivo levando à morte a milhões de seres humanos e a seres da natureza. Temos que mudar nosso modo produzir, de consumir e de morar na única Casa Comum, caso contrário podemos conhecer um armagedon ecológico-social.

Curiosamente, na contramão desse processo que alguns o veem como a inauguração de uma nova era geológica – o antropoceno e o necroceno – quer dizer, a sistemática destruição de vidas perpetradas pelo próprio ser humano, irrompem os povos originários, portadores de uma nova consciência e de uma vitalidade, reprimida por séculos. Estão se refazendo biologicamente e surgindo como sujeitos históricos. Sua maneira de se relacionar amigavelmente com a natureza e a Mãe Terra fazem-se nossos mestres e doutores. Sentem-se tão unidos a estas realidades que defendendo-as estão se defendendo a si próprios.

Foi grande o equívoco dos invasores europeus de chamá-los de “indios” como se fossem habitantes de uma região da Índia que todos buscavam.Eles, na verdade, se chamavam por vários nomes:Tawantinsuyo, Anauhuac, Pindorama entre outros. Prevaleceu o nome de Abya Yala dada pelo povo Kuna do norte da Colômbia e do Panamá que significava “terra madura, terra viva, terra que floresce”. Eram povos com seus nomes como taínos, tikunas, zapotecas, astecas, maias, olmecas, toltecas, mexicas, aimaras,incas quíchuas tapajós, tupis, guaranis, mapuches e centenas de outros. A adoção de nome comum Abya Yala faz parte da construção de uma identidade comum, na diversidade de suas culturas e expressão das articulações que os unem num imenso movimento que vai do norte ao sul do continente americano. Em 2007 criaram a Cúpula dos Povos de Abya Yala.

Mas sobre eles pesa uma vasta sombra que foi o extermínio infligido pelos invasores europeus. Ocorreu um dos maiores genocídios da história. Foram mortos por guerras de extermínio ou por doenças trazidas pelos brancos contra as quais não possuíam imunidade, por trabalhos forçados e mestiçagem forçada, cerca de 70 milhões de representantes destes povos. Os dados mais seguros foram levantados pela socióloga e educadora Moema Viezzer e pelo sociólogo e historiador canadense radicado no Brasil Marcelo Grondin. O livro, impressionnte, com prefácio de Ailton Krenak leva como título Abya Yala: genocídio, resistência e sobrevivência dos povos originários das Américas (Editora Bambual, Rio de Janeiro 2021). Recolhem os dados do genocídio das duas Américas.

Damos um pequeno resumo: “No Caribe em 1492 quando chegaram os colonizadores, havia quatro milhões de indígenas. Anos após não havia mais nenhum. Todos foram mortos especialmente no Haiti. No México em 1500 havia 25 milhões de indígenas (Astecas, toltecas e outros) depois de 70 anos restaram apenas dois milhões. Nos Andes existiam em 1532 15 milhões de indígenas, em poucos anos restou apenas um milhão. Na América Central em 1492 na Guatemala, Honduras, Belize, Nicarágua, El Salvador, Costa rica e Panamá havia entre 5,6-13 milhões de indígenas, dos quais 90% foram mortos”.

“Na Argentina, no Chile, na Colômbia e no Paraguai morreram em média, em alguns países mais em outros menos, cerca cerca de um milhão de indígenas. Nas Antilhas menores como nas Bahamas, Barbados.Curaçao,Granada, Guadalupe, Trinidad- Tobago e Ilhas Virgens conheceram o mesmo extermínio quase total”.

“No Brasil quando os portugueses aportaram nestas terras, havia cerca de 6 milhões de povos originários de dezenas de etnias com suas línguas. O desencontro violento os reduziu a menos de um milhão. Hoje, infelizmente, devido ao descuido por parte das autoridades, esse processo de morte continua, vítimas do coronavírus. Um sábio da nação yanomami, o pajé Davi Kopenawa Yanomamy relata no livro A Queda do Céu o que os xamãs de seu povo estão entrevendo: a corrida da humanidade está rumando na direção de seu fim”.

“Nos Estados Unidos da América viviam em 1607 cerca de 18 milhões de povos originários e tempos depois sobreviveram apenas dois milhões.

No Canadá havia em 1492 dois milhões de habitantes originários e em 1933 se contavam apenas 120 mil”.

O livro não narra apenas a incomensurável tragédia, mas especialmente as resistências e modernamente as várias cúpulas organizadas entre esses povos originários, do sul e do norte das Américas. Com isso se reforçarem mutuamente, resgatam a sabedoria ancestral dos xamãs, as tradições e as memórias.

Uma lenda-profecia expressa o reencontro desses povos: aquela entre a Águia, representando a América do Norte e o Condor a América do Sul. Ambos foram gerados pelo Sol e pela Lua. Viviam felizes voando juntos. Mas o destino os separou. A Águia dominou os espaços e quase levou ao extermínio o Condor.

No entanto, quis esse mesmo destino que a partir da década de 1990, ao se iniciarem as grandes cúpulas entre os distintos povos originários, do sul e do norte, o Condor e a Águia se reencontraram e começaram a voar juntos. Do amor de ambos, nasceu o Quetzal da América Central, uma das mais belas aves da natureza, ave da cosmovisão maia que expressa a união do coração com a mente, da arte com a ciência, do masculino com o feminino. É o começo do novo tempo, da grande reconciliação dos seres humanos entre si, como irmãos e irmãs, cuidadores na natureza, unidos por um mesmo coração pulsante e habitando na mesma e generosa Pachamama, a Mãe Terra.

Quem sabe, no meio das tribulações do tempo presente em que nossa cultura encontrou seus limites intransponíveis e se sente urgida a mudar de rumo, esta profecia possa ser a antecipação de um fim bom para todos nós. Ainda voaremos juntos, a Águia do Norte com o Condor do Sul sob a luz benfazeja do Sol que nos mostrará o melhor caminho.

*Leonardo Boff é ecoteólgo e filósofo. Autor, entre outros livros, de O Casamento entre o Céu e a Terra: contos dos povos indígenas do Brasil (Mar de Ideias).

 

Veja neste link todos artigos de

AUTORES

TEMAS

10 MAIS LIDOS NOS ÚLTIMOS 7 DIAS

Lista aleatória de 160 entre mais de 1.900 autores.
Eleonora Albano Marcelo Guimarães Lima Anderson Alves Esteves Vladimir Safatle Eliziário Andrade Ronald Rocha Luiz Roberto Alves Anselm Jappe Lincoln Secco Henri Acselrad Antonino Infranca Alysson Leandro Mascaro Bernardo Ricupero Fábio Konder Comparato Daniel Brazil Marcus Ianoni Vinício Carrilho Martinez Fernão Pessoa Ramos Luiz Marques Gilberto Lopes Ronald León Núñez Luis Felipe Miguel José Costa Júnior Plínio de Arruda Sampaio Jr. Milton Pinheiro Manuel Domingos Neto Afrânio Catani Carlos Tautz Armando Boito Manchetômetro Jorge Branco Francisco Pereira de Farias Luís Fernando Vitagliano Alexandre de Lima Castro Tranjan Michael Roberts Ricardo Fabbrini Eleutério F. S. Prado João Lanari Bo Fernando Nogueira da Costa Osvaldo Coggiola Alexandre de Freitas Barbosa André Singer Érico Andrade Dênis de Moraes Flávio R. Kothe Antonio Martins Sandra Bitencourt Heraldo Campos José Geraldo Couto Jean Marc Von Der Weid Atilio A. Boron Berenice Bento Tarso Genro Boaventura de Sousa Santos José Micaelson Lacerda Morais Paulo Nogueira Batista Jr Daniel Afonso da Silva Paulo Fernandes Silveira Sergio Amadeu da Silveira Bruno Fabricio Alcebino da Silva Francisco de Oliveira Barros Júnior Otaviano Helene Luiz Carlos Bresser-Pereira Mário Maestri Leda Maria Paulani Luiz Werneck Vianna Maria Rita Kehl Eugênio Bucci Elias Jabbour Valerio Arcary Eugênio Trivinho Daniel Costa Luiz Renato Martins Samuel Kilsztajn Ricardo Musse Eduardo Borges Leonardo Sacramento Luiz Bernardo Pericás Bruno Machado João Paulo Ayub Fonseca Celso Favaretto Ricardo Abramovay João Carlos Loebens Antônio Sales Rios Neto Luciano Nascimento Michael Löwy Denilson Cordeiro Bento Prado Jr. Chico Whitaker Ronaldo Tadeu de Souza Gilberto Maringoni Lorenzo Vitral André Márcio Neves Soares João Carlos Salles José Raimundo Trindade Ricardo Antunes Claudio Katz Dennis Oliveira Alexandre Aragão de Albuquerque José Dirceu Paulo Sérgio Pinheiro Marilia Pacheco Fiorillo Andrew Korybko Gabriel Cohn Jean Pierre Chauvin Walnice Nogueira Galvão Jorge Luiz Souto Maior Leonardo Boff Lucas Fiaschetti Estevez Benicio Viero Schmidt Rubens Pinto Lyra Carla Teixeira Liszt Vieira Kátia Gerab Baggio Leonardo Avritzer Henry Burnett Flávio Aguiar Luiz Eduardo Soares Julian Rodrigues Yuri Martins-Fontes Chico Alencar Renato Dagnino Everaldo de Oliveira Andrade Vanderlei Tenório Gerson Almeida Igor Felippe Santos José Machado Moita Neto Francisco Fernandes Ladeira Slavoj Žižek Salem Nasser Ladislau Dowbor Tadeu Valadares Tales Ab'Sáber Celso Frederico Priscila Figueiredo João Sette Whitaker Ferreira Marcos Aurélio da Silva Marcos Silva Marcelo Módolo João Feres Júnior Alexandre de Oliveira Torres Carrasco Andrés del Río Paulo Martins Juarez Guimarães Annateresa Fabris Ari Marcelo Solon Paulo Capel Narvai Michel Goulart da Silva Rafael R. Ioris Marilena Chauí João Adolfo Hansen Mariarosaria Fabris Thomas Piketty Rodrigo de Faria Airton Paschoa Remy José Fontana José Luís Fiori Caio Bugiato Matheus Silveira de Souza Marjorie C. Marona

NOVAS PUBLICAÇÕES