Por OSVALDO COGGIOLA*
Prefácio do autor ao livro recém-editado.
Em sua obra-prima, O capital, Marx partiu da análise da mercadoria. No livro que o leitor ora tem em mãos, de caráter introdutório à máxima obra do pensador alemão, partimos da experiência imediata do trabalhador para tornar os conceitos marxistas mais acessíveis. O procedimento de Marx não foi arbitrário nem devido ao acaso: a era do capital se caracteriza pela produção generalizada de mercadorias.
A mercadoria é uma forma fenomênica da produção material; o capital é a relação social correspondente a essa forma quando ela se torna preponderante. Quando isso acontece, produz-se um incremento em relação ao valor original – um mais-valor – mediante a exploração (uso) da força de trabalho, transformada ela própria em mercadoria.
Diversos autores postularam que a troca comercial faz parte da “natureza humana”, deduzindo dessa premissa a naturalidade da busca e da obtenção do lucro, forma transmutada do mais-valor. Uma conclusão com dois pressupostos: (a) a consideração não histórica da troca; (b) a eliminação do caráter específico da troca na sociedade dominada pelo capital, que inclui o comércio (troca) da força de trabalho. Em carta a Friedrich Engels, Marx resumiu a inovação teórica de sua obra principal, O capital: “O que há de melhor no meu livro é: (1) (e é sobre isso que repousa toda a compreensão dos fatos) sublinhar, desde o primeiro capítulo, o duplo caráter do trabalho segundo ele se expresse como valor de uso ou como valor de troca; (2) a análise do mais-valor, independentemente de suas formas particulares: lucro, juros, renda da terra, etc”.
A produção generalizada de mercadorias, em que todas as coisas úteis se revestem da forma mercantil, exigiu como base histórica que a própria força de trabalho fosse uma delas.
A relação capitalista pressupõe a separação entre os trabalhadores e a propriedade das condições da realização do trabalho. […] O processo que cria a relação capitalista não pode ser senão o processo de separação entre o trabalhador e a propriedade das condições de realização de seu trabalho, processo que, por um lado, transforma em capital os meios sociais de subsistência e de produção e, por outro, converte os produtores diretos em trabalhadores assalariados.
A sociedade capitalista é aquela em que a força é transformada, de modo geral, em mercadoria. O segredo da produção capitalista é a produção de mais-valor, valor-a-mais, base do lucro capitalista, obtido no processo de produção pelo uso da mercadoria força de trabalho, cuja qualidade específica consiste em ser a única mercadoria que cria novo valor, valores superiores àqueles necessários para produzir e reproduzi-la. A transformação geral da força de trabalho em mercadoria é específica ao capitalismo; o valor como conceito ou abstração econômica é também específico desse regime social. O capital designa o valor medido como trabalho alheio coagulado sob a forma de dinheiro ou de mercadorias, incluindo a própria força de trabalho. Capital é o valor suscetível de produzir mais-valor; ele “não é uma coisa, mas uma determinada relação social de produção, que pertence a uma determinada formação histórico-social, representa-se numa coisa e confere a esta um caráter especificamente social”.
Marx escreveu que a produção de mercadorias só pode ser a forma normal e dominante da produção quando ocorre no âmbito da produção capitalista. Em sua forma universal e absoluta, ela é a produção capitalista de mercadorias; pois “é apenas quando o trabalho assalariado constitui sua base que a produção de mercadorias se impõe a toda a sociedade”. “O capital”, por sua vez, “é trabalho morto, que, como um vampiro, vive apenas da sucção de trabalho vivo, e vive tanto mais quanto mais trabalho vivo suga”. O capital apresenta-se sob a forma de terras, dinheiro, lojas, máquinas ou crédito. O agricultor, o comerciante, o industrial e o banqueiro, donos do capital, controlam o processo de produção, contratam ou demitem os trabalhadores, conforme sua conveniência. Os trabalhadores, que não possuem nada além de sua força de trabalho, vendem-na em troca de um salário, pois não lhes resta outra saída para sobreviver.
Em que se baseia a extração de mais-valor, base do lucro que movimenta a sociedade capitalista? No fato de que aquilo que o trabalhador vende ao capitalista, em troca do salário, não é seu trabalho, mas sua força de trabalho: “O valor de uso que o trabalhador tem para oferecer ao capitalista, portanto, que em geral ele tem para oferecer a outros, não está materializado em um produto, não existe de qualquer maneira fora dele, logo, não existe realmente, mas só potencialmente, como sua capacidade”. O capitalism (o modo de produção baseado na hegemonia do capital sobre as outras relações sociais) não é qualquer sistema econômico dinamizado pela procura de lucro, mas só aquele baseado nas relações de produção em que o lucro se origina do mais-valor extorquido na e pela exploração da força de trabalho, contratada e remunerada por um salário: “Para o capital, o trabalhador não é uma condição de produção, mas só o trabalho. Se ele puder realizá-lo por meio de máquinas ou até por meio da água, do ar, tanto melhor. E o capital não se apropria do trabalhador, mas do seu trabalho – não diretamente, mas pela mediação da troca”.
O capital não teria valor nenhum se não fosse acionado pelo trabalho para criar mercadorias que, vendidas no mercado, realizam o lucro do capitalista, o que lhe permite incrementar o capital, produzir mais mercadorias, aumentar os lucros, numa perpétua concorrência com os outros capitais.
A produção estende-se tanto para além de si mesma na determinação antitética da produção, como sobrepõe-se aos outros momentos. É a partir dela que o processo sempre recomeça. É autoevidente que a troca e o consumo não podem ser predominantes. Da mesma forma que a distribuição como distribuição dos produtos. No entanto, como distribuição dos agentes da produção, ela própria é um momento da produção. Uma produção determinada, portanto, determina um consumo, uma troca e uma distribuição determinados, bem como relações determinadas desses diferentes momentos entre si.
Produção, distribuição e consumo são “elementos de uma totalidade, diferenças dentro de uma unidade”. O capital “fixo” nada mais é que trabalho vivo coagulado, valor capitalizado. O capital oculta por meio de sua aparência reificada sua real condição: a de ser uma relação social em cujos polos dinâmicos estão o proprietário do capital e o trabalhador assalariado. O capitalismo é um modo de produção da vida social que se caracteriza pelas forças produtivas que suscita e mobiliza e pelas relações de podução sobre as quais se assenta.
Modo de produção é o conceito que designa as formas sociais historicamente existentes para produzir e reproduzir a sociedade. Cada modo de produção corresponde a um nível específico de desenvolvimento das forças produtivas (meios de produção, técnicas e organização do trabalho) e a determinadas relações sociais de organização da produção, ou seja, relações entre classes e grupos sociais no processo produtivo.
Se a história do capital pode ser rastreada a partir de tempos remotos, a história do capitalism (o modo de produção dominado pelo capital) é bem mais recente, remontando ao século XVI. Sua relação social fundante é a existente entre trabalho assalariado e capital. A diferença que o modo capitalista de produção impõe ao trabalho está em sua forma de exploração: pela venda da capacidade (ou potencialidade) de trabalho para outros. O trabalho assalariado é a manifestação socialmente determinada da venda força de trabalho. A história das sociedades contemporâneas está determinada pelas relações estabelecidas com base nesse fundamento, por sua dinâmica e suas contradições. “Modernidade”, mobilidade social, carreira baseada em mérito, vínculo entre educação e ascensão social, igualdade formal de oportunidades, flexibilidade profissional, mercantilização geral, egoísmo hedonista, entre outras, são suas manifestações derivadas.
De modo geral, o estágio da produção de mercadorias, com o qual tem início a civilização, é caracterizado economicamente pela introdução: (1) do dinheiro de metal e, desse modo, do capital monetário, do juro e da usura; (2) dos comerciantes como classe intermediadora entre os produtores; (3) da propriedade fundiária privada e da hipoteca e (4) do trabalho escravo como forma dominante de produção.
Essa produção não era uma produção capitalista, embora fosse direcionada ao mercado, pois não estava alicerçada em relações capitalistas de produção.
Falar de “capitalismo” antigo ou medieval porque havia financistas em Roma ou mercadores em Veneza é um abuso de linguagem. Esses personagens jamais dominaram a produção social de sua época, assegurada em Roma pelos escravos e na Idade Média pelos camponeses, sob os diversos estatutos da servidão. A produção industrial da época feudal era obtida quase exclusivamente sob a forma artesanal ou corporativa. O mestre-artesão comprometia seu capital e seu trabalho e alimentava em sua casa seus companheiros e seus aprendizes. Não há separação entre os meios de produção e o produtor, não há redução das relações sociais a simples laços de dinheiro: portanto, não há capitalismo.
O valor não é intrínseco a uma mercadoria isolada, ele reflete uma divisão do trabalho entre produtores independentes de mercadorias; a natureza social do trabalho deles só se revela no ato da troca. O valor tem, portanto, uma realidade apenas social, cuja forma se revela na troca. A distinção entre valor de uso e de troca já existia na filosofia grega, embora ela não desdobrasse todas as suas consequências. Esses desdobramentos apareceram plenamente só no capitalismo, o modo de produção em que a tensão existente na forma mercadoria se exterioriza na forma de valor como dinheiro (forma fenomênica do valor) e, simultaneamente, como mercadoria (forma fenomênica do valor de uso).
No capitalismo, a mercadoria é uma forma social que comporta tanto o valor de troca como o valor de uso, mas essa forma aparece só como valor de uso material. O dinheiro, por sua vez, aparece como portador exclusivo do valor, como a manifestação da abstração da mercadoria, sendo, porém, só a forma fenomênica da dimensão de valor da própria mercadoria. As relações sociais do capitalismo aparecem fundadas na oposição entre a abstração monetária do valor e a concretude da natureza material da produção. O valor de troca supõe a existência de um padrão de medida comum a todas as mercadorias.
Tomemos, ainda, duas mercadorias, por exemplo, trigo e ferro. Qualquer que seja sua relação de troca, ela é sempre representável por uma equação em que uma dada quantidade de trigo é igualada a uma quantidade qualquer de ferro, por exemplo, 1 quarter de trigo = a quintais de ferro. O que mostra essa equação? Que algo comum e de mesma grandeza existe em duas coisas diferentes, em 1 quarter de trigo e em a quintais de ferro. Ambas são, portanto, iguais a uma terceira, que, em si mesma, não é nem uma nem outra. Cada uma delas, na medida em que é valor de troca, tem, portanto, de ser redutível a essa terceira. […] Esse algo em comum não pode ser uma propriedade geométrica, física, química ou qualquer outra propriedade natural das mercadorias. Suas propriedades físicas importam apenas na medida em que conferem utilidade às mercadorias, isto é, fazem delas valores de uso. Por outro lado, parece claro que a abstração dos seus valores de uso é justamente o que caracteriza a relação de troca das mercadorias.
O trabalho concreto não fornece a medida de valor das mercadorias, pois o que se destaca nele são suas características qualitativas. Para encontrar a medida do valor, deve-se abstrair o trabalho de sua forma concreta. Para a economia política moderna, um valor de uso ou um bem possuía valor apenas porque nele estava objetivado ou materializado trabalho humano. Para tirar disso todas as consequências, devia-se estabelecer que o trabalho que produz as mercadorias tem um caráter tão dual e contraditório quanto a própria mercadoria. Para Karl Marx, “o erro de Ricardo é que ele está interessado somente na magnitude do valor. O que Ricardo não investiga é a forma específica na qual o trabalho se manifesta como o elemento comum nas mercadorias”. Desse modo, Marx considerou a distinção do trabalho produtor de mercadorias entre trabalho concreto e trabalho abstrato, distinção ausente na economia política clássica e expressão da contradição própria da mercadoria, seu diferencial e sua base para uma teoria do valor baseada no trabalho.
O capitalismo, assim, nasceu da apropriação da esfera da produção social pelo capital: “A subordinação da produção ao capital e o aparecimento da relação de classe entre os capitalistas e os produtores devem ser considerados o divisor de águas entre o velho e o novo modo de produção”. Nas sociedades em que os trabalhadores eram proprietários de seus instrumentos de trabalho (ou seja, de seus meios de produção), o direito à propriedade aparecia fundado no próprio trabalho. Bastou que entre a propriedade e o trabalho se interpusesse o capital para que “a lei da apropriação ou lei da propriedade privada, fundada na produção e na circulação de mercadorias, se transformasse, obedecendo a sua dialética própria, interna e inevitável, em seu direto oposto”.
O direito à propriedade fundamentado no próprio trabalho se transformou desse modo no direito à propriedade fundado no trabalho de outrem, ou seja, na propriedade burguesa. Quando um trabalhador se encontra completamente despojado de seus instrumentos de trabalho, suas faculdades físicas e mentais não apresentam para ele nenhum valor de uso, pois mesmo possuindo tais faculdades, não poderá produzir nada. Essas faculdades são postas à venda no mercado e o patrão (o “burguês”) passa a ser o proprietário da força de trabalho do indivíduo. Apropria-se, portanto, das qualidades físicas e intelectuais do trabalhador por um determinado período.
A sociedade capitalista ou burguesa se constituiu com base nas relações sociais de contratação e uso (exploração) da força de trabalho livre, tendo como consequência a produção de um mais-valor que é o produto do sobretrabalho fornecido pelo trabalhador dentro do processo de produção; o mais-valor se apresenta ao capitalista na forma de lucro do capital. O sobretrabalho (ou mais-trabalho) é a diferença existente entre a parte da jornada em que o trabalhador produz valores equivalentes àqueles necessários para a produção e reprodução de sua existência e os valores produzidos por esse mesmo trabalhador na totalidade de seu período de trabalho. A origem do mais-valor capitalista é a exploração econômica da força de trabalho, adquirida na esfera da circulação (como qualquer outra mercadoria) e utilizada (acionando seu valor de uso) na esfera da produção. Neste livro, abordaremos passo a passo a criação de uma sociedade, hoje mundial, baseada nesse fenômeno histórico, e suas consequências em todas as áreas da vida humana.
Osvaldo Coggiola é professor titular no Departamento de História da USP. Autor, entre outros livros, de História e Revolução (Xamã).
Referência
Osvaldo Coggiola. Teoria econômica marxista: uma introdução. São Paulo, Boitempo, 2021, 180 págs.