As veias abertas sangram e nos atingem

Imagem: Mood Valley
Whatsapp
Facebook
Twitter
Instagram
Telegram

Por CLARISSE CASTILHOS & ALICE ITANI*

A luta contra extrativismo representa uma luta permanente contra essa forma de destruição no planeta

Introdução

A manifestação das populações indígenas no Congresso Nacional contra o projeto de lei 490 que altera a forma de demarcação de terras parece não nos tocar. Ela aparece como uma questão pontual. E, que afeta somente essas populações. No entanto, muito mais que isso, é também parte das veias abertas que sangram e que toca a todos nós no país, como ao planeta, utilizando os termos de Galeano que já nos anos 1970 chamava atenção para a questão. São terras que estão sendo expropriadas, a despeito do que assegura a Constituição para aumentar áreas a serem saqueadas para o extrativismo. E, serem consideradas “legais” essas atividades extrativas, para não dizer, aumentar a quantidade de veias abertas no país

No entanto, assistimos esse conflito como às grandes violências cotidianas que vivem as populações indígenas em sua tarefa de resistência para a proteção da Terra. Escrevemos Terra em letra maiúscula porque não é somente a terra como objeto e simples solo como aquela que é sujeito de direitos que compõem uma quantidade e variedade de seres vivos, isto é, de todas as espécies, que nela habitam e que produz o humano e sua capacidade de subsistência. Assistimos as cenas como todas as anteriores como a um programa de televisão, como sendo apenas uma questão de populações indígenas, e não de todos os espaços que classificamos como biomas e as florestas.

Esse é um cenário que mostra como a sociedade está diante de riscos e perigos sem compreender o que está em questão.

O extrativismo como fonte de maior guerra contra o humano

O extrativismo tal como ocorre no país como nos demais países latino-americanos é a maior fonte de guerra. São terras que são expropriadas para exploração, roubo de minerais, madeira e demais produtos que interessam a grandes corporações. Svampa (2012) há mais de uma década vem insistindo sobre o risco do extrativismo com novos atores sobre cenário latino-americano tanto na expropriação de terras como na utilização da água. A entrada do mercado chinês acirrou esses riscos e perigos, com a importação  notadamente de minérios, soja, carne e demais derivados de proteína animal provenientes dos países latino-americanos . No caso de minérios há também compra direta de terras e compra de produtos de roubo ilegal de madeira, cobre e demais produtos minerais e também participação direta na implantação de empresas para expropriação dos minerais.

O extrativismo, como analisa Araoz (2021) repetindo Galeano (1978) é o maior buraco aberto na vida latino-americana há mais de cinco séculos. E, que emerge juntamente com a concepção elaborada de divisão entre o que é humano e o que é a natureza.  Ignora-se de onde vem o humano e de onde êle se origina. E que a cultura de milhões de anos pelo cuidado e simbiose com o que se denomina como sendo natureza.

Para muito além de um simples problema ambiental, o extrativismo se apresenta dentro de uma profunda separação entre a terra e o humano. Por essa concepção, não se entende mais do que se trata o humano e, por isso, não está compreendido os riscos e perigos dessa divisão. Foi dentro dessa fratura que se iniciou a colonização da América há mais de cinco séculos. E que representou e representa a apropriação e o destino geológico e antropológico dos povos latino-americanos. E mais que isso, no processo de colonização que se mantém até os dias atuais se apropriaram da condição de vida na terra. Os povos nativos e tradicionais foram deslegitimados, considerando-se suas falas e suas culturas como atrasadas, “não modernas”, justificando a usurpação e o terror instalados sobre eles. Atualmente, utilizam-se também novos termos, como sustentabilidade, economia verde e outros para justificar esse processo de usurpação e roubo pelas grandes corporações.

Desde o processo de colonização o saque das terras e dos minerais com o genocídio dos povos representa essa guerra, que é perpétua, que não considera a terra como mãe e geradora do processo de produção da vida. É uma guerra contra o mundo, sobretudo com as mulheres que são as representantes do cuidado com a terra, com a água e com as sementes. São as que mais estão envolvidas nos conflitos pelas suas lutas da sobrevivência da terra latino-americana.

Coloca-se a humanidade em risco de extinção bastante avançado. Há uma violenta  manipulação do “considerado processo civilizatório” que pode ser considerado muito mais como barbárie, como analisou Castoriadis (2005). Essa é uma civilização que não tem futuro para oferecer para esta e para próximas gerações.  Essa civilização é incapaz de compreender e explicar o que está ocorrendo. Está em curso o principio de subjetivação atividade de violação por diferentes formas sociais, pelo geometabolismo da barbárie, pela usurpação da mina e da plantação que violam todos os princípios da produção da vida.

É o mundo moderno que foi criado sobre o principio da violência, de uma guerra mundial sobre o planeta. E o extrativismo representa o limite da exploração e depredação como modo de vida. É o princípio da economia produtiva assentada sobre manipulação das populações e expropriação dos territórios com destruição da diversidade vital. É o genocídio associado ao terricídio, com a destruição dos seres vivos, dos povos.

Da pedagogia da terra à da submissão

Assiste-se a formas de submissão de nossa sociedade, cada vez mais colonizada, diante de uma pedagogia do terror, que é  a forma de destruição do que há de sagrado e humano. Diante da América saqueada com solo devastado de soja e criação de proteína animal para outros, não é a destruição da biosfera, mas há uma destruição do humano.

A pedagogia do terror que se instala é o da violação, que está presente nos territórios latinoamericanos desde que os conquistadores cometeram o maior genocídio da história da humanidade, na mina de Potosi, com milhões de mineiros mortos (Galeano, 1971), inaugurando a modernidade no século 16. E o conquistador sob nome de capital é consagrado como êxito e como forma do homem moderno.  As violações são graves, tanto antropologicamente, como ontológico e politicamente, porque por meio dessa pedagogia do terror nos constituímos, como modernos, como espécie violenta e perigosa e insensível ante o sofrimento da vida (Araoz, 2021).

Utilizou-se para instalação da modernidade, o espírito cientifico como base racional, mas como uma ciência que emerge como instrumento de poder do Estado e instrumento econômico-financeira das corporações privadas. Esse espírito científico também expropriou as mulheres de seu papel de cuidado (Federici, 2019) ao deslegitimar aquelas que detinham os conhecimentos para a cura.

A natureza foi expropriada dos povos e esquartejada em denominações apenas como recursos. Foi um processo de extinção biopolítica que tirou o humano da natureza, tirou o humano da possibilidade de cultivo da terra. A água, por exemplo, chamada de recursos hídricos. Os minérios, lítio, cobre, petróleo e outros minerais como recursos minerais. Não há denominação para a terra, e esta passou a ser disputada pelo mundo como apenas um recurso.

A desnaturalização da noção de natureza também des-humanizou o humano. O processo de usurpação da natureza por meio da linguagem, como um instrumento de dominação da subjetividade humana (Araoz, 2019) desde a Idade Moderna.  Um processo de racionalização em que a condição humana deixou de ter A natureza passou a ser apenas um “problema ambiental” e que agora envolve a mudança climática. Pelos discursos não estão em questão a vida no planeta, todos os povos que nele habitam em todo o processo de produção da vida que está na relação dos povos com demais seres vivos e seus cuidados com a terra para a subsistência. Pela linguagem elaborada por teorias eurocêntricas desde a Modernidade, tirou do ser humano suas próprias formas de produzir a vida. Decretou-se a morte da natureza e passou a ser objeto de conquista, de guerra permanente por meio da violência contra os povos que lutam pela sobrevivência.

Considerações finais

Liberar a terra significa antes de tudo liberar a condição humana A luta contra extrativismo representa uma luta permanente contra essa forma de destruição no planeta. E, para além disso, representa a luta por recuperar o humano, por encontrar caminhos para humanização para reapropriação do futuro. Essa é a luta principal atual.

*Clarisse Castilhos, doutora em economia pela Université de Paris X Nanterre, é pesquisadora em saúde e meio ambiente na Fundação de Economia e Estatística (FEE).

*Alice Itani, doutora em sociologia pela École des Hautes Études em Sciences Sociales, é professora na Unesp.

Referências


Araoz, H. M. Los dolores de Nuestra America y la condicion neocolonial. Extrativismo y biopolitica de la expropriacion. Observatorio social de America Latina, v. 13, n. 32, 2012.

Araoz, H. M. Naturaleza, discursos y linguajes de valoración. Revista Heterotopias del área de estudos críticos del discurso de FFyH. V. 2, n. 4. 2019.

Araoz, H.M. Guerra de mundos e fraturas extrativistas na America Latina. Debate on line, junho 2021.

Castoriadis, C. Une société à la derive. Paris: Seuil, 2005.

Federici. S. Calibã e a bruxa. São Paulo: Elefante, 2019.

Galeano, E. As veias abertas da América Latina. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1971/1978.

Svampa, M. Consenso de las commodities, giroecoterritorial y pensamento critico en America Latina. Observatorio social de America Latina, v. 13, n. 32, 2012

 

Veja neste link todos artigos de

AUTORES

TEMAS

10 MAIS LIDOS NOS ÚLTIMOS 7 DIAS

Lista aleatória de 160 entre mais de 1.900 autores.
Heraldo Campos Flávio R. Kothe João Sette Whitaker Ferreira Denilson Cordeiro Luiz Roberto Alves Michel Goulart da Silva Jean Pierre Chauvin Luiz Renato Martins Dennis Oliveira João Lanari Bo Celso Favaretto Paulo Martins Paulo Nogueira Batista Jr André Singer Caio Bugiato Armando Boito Michael Roberts Marilia Pacheco Fiorillo Chico Alencar Marjorie C. Marona Julian Rodrigues João Carlos Loebens Ari Marcelo Solon Marcos Aurélio da Silva Fernando Nogueira da Costa Remy José Fontana João Paulo Ayub Fonseca Vinício Carrilho Martinez Renato Dagnino Maria Rita Kehl Henry Burnett Airton Paschoa Jorge Branco Ronaldo Tadeu de Souza Marcus Ianoni Sandra Bitencourt Jorge Luiz Souto Maior Lorenzo Vitral Eleutério F. S. Prado Plínio de Arruda Sampaio Jr. Flávio Aguiar Gabriel Cohn Carla Teixeira Paulo Fernandes Silveira Alexandre de Oliveira Torres Carrasco Carlos Tautz Jean Marc Von Der Weid Marilena Chauí Alexandre de Lima Castro Tranjan Henri Acselrad Rodrigo de Faria Ladislau Dowbor André Márcio Neves Soares Marcelo Guimarães Lima Berenice Bento Daniel Brazil Salem Nasser José Micaelson Lacerda Morais Luciano Nascimento João Feres Júnior Otaviano Helene Gilberto Maringoni Luiz Bernardo Pericás João Carlos Salles José Geraldo Couto Anderson Alves Esteves Francisco Fernandes Ladeira Bento Prado Jr. Benicio Viero Schmidt Everaldo de Oliveira Andrade Luiz Carlos Bresser-Pereira Igor Felippe Santos Andrew Korybko Mário Maestri Antonio Martins Marcos Silva Gilberto Lopes Vladimir Safatle Marcelo Módolo Valerio Arcary Rafael R. Ioris Luiz Marques Thomas Piketty Gerson Almeida Lincoln Secco Tales Ab'Sáber José Luís Fiori Slavoj Žižek Tarso Genro Ronald Rocha Leonardo Avritzer Claudio Katz Ricardo Fabbrini Elias Jabbour Francisco Pereira de Farias João Adolfo Hansen Yuri Martins-Fontes Lucas Fiaschetti Estevez Luis Felipe Miguel Eduardo Borges Bruno Fabricio Alcebino da Silva Boaventura de Sousa Santos José Costa Júnior Sergio Amadeu da Silveira Andrés del Río Leonardo Boff Liszt Vieira Eugênio Trivinho Antonino Infranca Ronald León Núñez Ricardo Abramovay Eliziário Andrade José Machado Moita Neto Fábio Konder Comparato José Dirceu Juarez Guimarães Fernão Pessoa Ramos Alexandre de Freitas Barbosa Alexandre Aragão de Albuquerque Kátia Gerab Baggio Luiz Eduardo Soares Annateresa Fabris Eugênio Bucci Osvaldo Coggiola Luiz Werneck Vianna José Raimundo Trindade Atilio A. Boron Ricardo Musse Celso Frederico Luís Fernando Vitagliano Bernardo Ricupero Daniel Costa Bruno Machado Walnice Nogueira Galvão Érico Andrade Afrânio Catani Manuel Domingos Neto Matheus Silveira de Souza Manchetômetro Daniel Afonso da Silva Dênis de Moraes Leda Maria Paulani Vanderlei Tenório Paulo Capel Narvai Michael Löwy Anselm Jappe Priscila Figueiredo Tadeu Valadares Ricardo Antunes Antônio Sales Rios Neto Leonardo Sacramento Samuel Kilsztajn Alysson Leandro Mascaro Chico Whitaker Paulo Sérgio Pinheiro Eleonora Albano Rubens Pinto Lyra Francisco de Oliveira Barros Júnior Mariarosaria Fabris Milton Pinheiro

NOVAS PUBLICAÇÕES