O guardador de segredos

Maria Bonomi, Acoplamento, Xilogravura, 72,00 cm x 102,00 cm, 1966.
Whatsapp
Facebook
Twitter
Instagram
Telegram

Por MURILO MARCONDES DE MOURA*

Comentário sobre o livro de Davi Arrigucci Jr.

“É toda a minha vida que joguei”. O conhecido verso de Drummond, presente em poema que celebra a conquista de sua maturidade criadora, ocorreu-me após a leitura deste livro de Davi Arrigucci Jr. Não apenas por ser o mais recente de um crítico de atuação já duradoura (quase quarenta anos nos separam de seu primeiro livro, O escorpião encalacrado), e dos mais destacados entre nós, mas por compor com os anteriores, inclusive com os dois livros de ficção, uma espécie de mitologia pessoal, ao menos uma unidade flagrante. Que unidade é essa?

Comecemos por identificar o tom dominante de seus escritos – afirmativo e obstinado, advindo de sua posição diante das obras e assuntos escolhidos – aderente, em relação a sua beleza e complexidade, pertinaz, diante do enigma que lhes é constitutivo.

Fundamental aqui é a visão da dificuldade imanente às grandes obras, a cuja exposição toda demora parece insuficiente ao crítico, sempre disposto a prolongar a tarefa da compreensão, que ele considera, a rigor, inesgotável. Esse adiamento metódico, a fim de abarcar o máximo possível da obra em estudo, esse “desejo irrefreado de ir até o limite da visão”, segundo suas próprias palavras, no prefácio ao livro Achados e perdidos, já em 1979, imprime ao seu texto crítico um andamento que Alfredo Bosi, com humor, mas com muita acuidade, caracterizou como o de um “andante sostenuto”.

Esse elã, espécie de entrega plena do autor a sua atividade, parece escapar ao enquadramento meramente profissional e decerto tem raízes mais profundas. Davi Arrigucci Jr. declarou algumas vezes que projetava, num primeiro momento, ser escritor e filólogo. Esse projeto, concretizado pela tardia publicação de duas novelas, ajuda a explicar algo: criação e crítica acham-se imbricadas. Para ele, as obras literárias têm uma grandeza vital e o ofício tanto do crítico quanto do criador tocam necessariamente o que há de mais essencial na experiência humana.

É o que podemos ler ainda no prefácio ao livro de 1979, “tentativa de compreensão disso que nos ultrapassa, desafia e ilumina”; em Ugolino e a perdiz, o narrador, antes de empreender a narrativa de uma insólita caçada de Ugolino, frisa que essa história “resumia o impulso de viver que o animava, o que é sempre inexplicável, mas dá vontade de entender”; em O rocambole, a propósito de certa personagem, o narrador afirma, “tudo neste mundo tem uma história, cujas causas podem ser investigadas até se perderem de vista”.

Essa alta visão da literatura abrange muita coisa: o sublime, o sentimento do belo, certamente, mas também o humor, o erotismo, entre outras dimensões, consideradas todas desde sempre em suas determinações históricas.

Distante de qualquer neutralidade, já que aquilo de que se diz é vital e se mantém com ele pacto estreito, o estilo crítico de Davi Arrigucci Jr. é inconfundível, embora sem as idiossincrasias de outros ótimos críticos nossos – Mário de Andrade por excelência. A escolha vocabular, a elaboração da sintaxe são alguns dos procedimentos mais visíveis em que se busca atrelar precisão conceitual e sugestão poética.

O trabalho de minúcia com a linguagem, abre-se, por sua vez, para a forma maior do ensaio no acercamento desse outro sempre esquivo. Mais ou menos como Ugolino diante da perdiz: “Precisava imaginar um anel de outro tipo, mais vasto, como os múltiplos tentáculos de um polvo, fechando o cerco sobre ela (…) Valia a pena tentar esse tipo de anel galopante do fundo do mar em terra firme”, em que o engenho extravagante do imaginado dá a medida da dificuldade do empreendimento.

Todo esse lastro impregna o novo livro, O guardador de segredos, que, desde o título, desentranhado de um verso de Sebastião Uchoa Leite, retoma questões fundamentais para o crítico: o “sublime oculto”, o “enigma”. Cabe identificar, também, a longa fidelidade à literatura brasileira e, ainda que em menor escala, à literatura hispano-americana.

Igualmente notável, é a variedade de obras e gêneros estudados, variedade esta que impôs a organização do livro em três partes maiores, relativas respectivamente à poesia, à prosa, à crítica, seguidas de um excelente excurso sobre o cinema de Hitchcock, em especial sobre o filme Frenesi, em que o crítico literário nada de braçada ao revisitar, amparado por um sólido sentimento da forma, temas que lhe são caros, como o humor negro, o erotismo, a caça…

No que concerne à poesia, são estudados João Cabral de Mello Neto, a partir de um enfoque fecundo do conceito de trabalho em sua poética, Drummond, Ferreira Gullar, Cecília Meireles; mas a novidade maior é a atenção dirigida a poetas menos canônicos, e também mais próximos da geração do próprio crítico: Roberto Piva e Sebastião Uchoa Leite, ambos esquisitos, mas de aproximação improvável, de linhagens opostas mesmo. Possivelmente, os estudos sobre esses dois poetas foram aqueles em que o crítico enfrentou as maiores dificuldades nesse setor do livro.

Roberto Piva é abordado em dois ensaios. Parte-se do reconhecimento de seu “individualismo anárquico” e da natureza informe ou caótica de sua poesia, mas o propósito é compreender a “novidade da mistura incandescente que ele inventou, sem reduzi-la ao sabido”. Os diálogos de Piva com a poesia internacional, Whitman e Rimbaud, os surrealistas, a geração beat, entre outros, são de novo sublinhados, assim como com a prata da casa, Murilo Mendes, Jorge de Lima, Cruz e Sousa, Augusto dos Anjos, mas logo ultrapassados, pois, num primeiro instante, indicariam apenas o enquadramento mais geral do poeta na modernidade.

O que pode definir para o crítico a particularidade de Roberto Piva é o modo de lidar com a “matéria” brasileira – “componentes heterogêneos e por vezes disparatados”, que o sujeito lírico vai “aglutinando” em seu caminhar pela cidade de São Paulo; aglutinando, mas transfigurando obsessivamente, de modo que o resultado é a mescla entre a notação bruta e o impulso para o sublime.

Nesse sentido, as aproximações com Álvares de Azevedo e Mário de Andrade avançam um pouco mais, inclusive pelo espaço comum da cidade de São Paulo, e o crítico surpreende analogias tanto com o “individualismo dramático” do poeta romântico como com a “poesia itinerante” do poeta modernista, conforme formulações de Antonio Candido. Ao situar Roberto Piva na tradição da poesia brasileira, o próprio crítico também se posiciona diante da tradição da crítica brasileira.

Na parte do livro relativa à crítica, além de Antonio Candido, Arrigucci aborda outros dois autores, Gilda de Mello e Souza e Marlise Meyer. Há também uma longa e importante entrevista em que o autor discorre sobre a interpretação das obras literárias.

Quanto à prosa, são discutidos, entre os brasileiros, O quinze, Os ratos, Grande sertão: veredas e Faca, de Ronaldo Correia de Brito. O texto sobre o romance de Guimarães Rosa retoma outro, já clássico, maior e talvez mais completo (“O mundo misturado”), mas contém formulações diferentes e fascinantes, além da marca da oralidade, que evoca o grande professor. Ainda no âmbito da prosa brasileira, é assinalada a progressiva internalização do ponto de vista do outro de classe, do pobre, desde O quinze, passando por Vidas secas, até Grande sertão: veredas. Esse diálogo se estende à obra extraordinária de Juan Rulfo, comparada à de Guimarães Rosa, sobretudo Pedro Páramo, com seu mosaico de vozes que nos falam “desde la muerte”, na terra devastada do México pós-revolução. Completam esse setor, estudos sobre Felisberto Hernández e Jorge Luiz Borges/Bioy Casares, este dos maiores da coletânea.

Assim como é visível o diálogo entre os diferentes ensaios do livro, é claríssima a trama que se estabelece entre este e os demais livros de Davi Arrigucci Jr., compondo um conjunto que é dos mais importantes de nossa crítica em qualquer tempo.

*Murilo Marcondes de Moura é professor de literatura brasileira na USP e autor de Murilo Mendes: A poesia como totalidade (Edusp).

Publicado originalmente no Jornal de Resenhas no. 9, 2010.

Referência


Davi Arrigucci Jr. O guardador de segredos. São Paulo, Companhia das Letras, 280 págs.

 

Veja neste link todos artigos de

AUTORES

TEMAS

10 MAIS LIDOS NOS ÚLTIMOS 7 DIAS

Lista aleatória de 160 entre mais de 1.900 autores.
João Feres Júnior Luis Felipe Miguel Paulo Capel Narvai Luiz Bernardo Pericás José Costa Júnior Jean Pierre Chauvin Ari Marcelo Solon Ricardo Antunes Francisco Fernandes Ladeira Ladislau Dowbor Manchetômetro Antonino Infranca Caio Bugiato Tadeu Valadares João Carlos Loebens Fernão Pessoa Ramos Renato Dagnino Anselm Jappe Ronaldo Tadeu de Souza Gilberto Lopes João Carlos Salles Alexandre de Lima Castro Tranjan Eduardo Borges Alysson Leandro Mascaro Henry Burnett Eugênio Bucci Rubens Pinto Lyra Dênis de Moraes João Lanari Bo Samuel Kilsztajn Leonardo Avritzer Lucas Fiaschetti Estevez Ronald León Núñez Thomas Piketty Carla Teixeira Vinício Carrilho Martinez Mário Maestri Jorge Branco Luiz Carlos Bresser-Pereira Elias Jabbour Luiz Roberto Alves Alexandre de Freitas Barbosa Benicio Viero Schmidt Ricardo Abramovay Eugênio Trivinho Celso Favaretto Alexandre de Oliveira Torres Carrasco Antônio Sales Rios Neto Daniel Afonso da Silva Luís Fernando Vitagliano Jean Marc Von Der Weid Milton Pinheiro José Geraldo Couto Gerson Almeida Marilia Pacheco Fiorillo Chico Alencar Michel Goulart da Silva Valerio Arcary Luiz Eduardo Soares Marcos Silva Slavoj Žižek João Paulo Ayub Fonseca Tales Ab'Sáber Boaventura de Sousa Santos Ricardo Fabbrini José Dirceu Plínio de Arruda Sampaio Jr. Paulo Nogueira Batista Jr Paulo Fernandes Silveira Carlos Tautz Bernardo Ricupero Rodrigo de Faria Julian Rodrigues Tarso Genro Manuel Domingos Neto Claudio Katz Igor Felippe Santos Alexandre Aragão de Albuquerque Dennis Oliveira Luiz Werneck Vianna Liszt Vieira João Sette Whitaker Ferreira Daniel Brazil Juarez Guimarães Michael Löwy Sergio Amadeu da Silveira Berenice Bento Paulo Martins Francisco de Oliveira Barros Júnior Flávio R. Kothe Daniel Costa Andrés del Río Maria Rita Kehl Andrew Korybko Lorenzo Vitral Fernando Nogueira da Costa Heraldo Campos Vanderlei Tenório Sandra Bitencourt João Adolfo Hansen Paulo Sérgio Pinheiro Afrânio Catani Marjorie C. Marona Antonio Martins Leda Maria Paulani Priscila Figueiredo Rafael R. Ioris André Márcio Neves Soares Chico Whitaker Luiz Marques José Machado Moita Neto Otaviano Helene Francisco Pereira de Farias Eleonora Albano Eliziário Andrade Ricardo Musse Lincoln Secco Marcos Aurélio da Silva José Raimundo Trindade Luiz Renato Martins Luciano Nascimento Osvaldo Coggiola Celso Frederico Marilena Chauí Leonardo Boff Salem Nasser Érico Andrade José Luís Fiori Denilson Cordeiro Bruno Machado Fábio Konder Comparato Henri Acselrad Bruno Fabricio Alcebino da Silva Marcus Ianoni Michael Roberts Mariarosaria Fabris Flávio Aguiar Eleutério F. S. Prado Leonardo Sacramento Everaldo de Oliveira Andrade José Micaelson Lacerda Morais Marcelo Módolo Armando Boito Ronald Rocha Bento Prado Jr. Annateresa Fabris Walnice Nogueira Galvão Gilberto Maringoni Yuri Martins-Fontes Vladimir Safatle André Singer Marcelo Guimarães Lima Gabriel Cohn Anderson Alves Esteves Airton Paschoa Remy José Fontana Atilio A. Boron Matheus Silveira de Souza Kátia Gerab Baggio Jorge Luiz Souto Maior

NOVAS PUBLICAÇÕES