Por RICARDO MUSSE*
Comentário sobre o livro de Thomas E. Skidmore
Thomas E. Skidmore (1932-2016) foi, certamente, entre os pesquisadores norte-americanos que se dedicaram à história do Brasil, o que mais encontrou leitores em nosso país. Isso se explica, em parte, por sua predileção pela história política contemporânea. Mas convém não subestimar seu senso de oportunidade e, sobretudo, sua confissão de que escreveu voltado para o público brasileiro.
Inicialmente, Skidmore cursou ciência política e filosofia em Denison. Com a pretensão de se dedicar à vida acadêmica, obteve uma bolsa na universidade inglesa de Oxford, especializando-se em filosofia política e econômica. Em 1956, ingressou em Harvard, onde redigiu uma tese de doutorado sobre a política alemã após o fim da era Bismarck (o governo do chanceler Caprivi), e onde, em 1960, se tornou professor.
O impacto da Revolução Cubana provocou uma reformulação do sistema escolar norte-americano na área de humanidades, similar ao ocorrido pouco antes nas ciências exatas com a dianteira da União Soviética na corrida espacial. Em Harvard, uma doação da família Bliss reforçou o Departamento de estudos latino-americanos. Skidmore aceitou a tarefa de revigorar a área de história, cuja cadeira estava vaga desde 1956.
Financiado por uma bolsa de pós-doutorado, Skidmore aprendeu português, fez uma viagem em que conheceu todas as regiões do Brasil, por fim, estabeleceu-se, com a família no Rio de Janeiro entre outubro de 1963 e abril de 1964. Embora sua primeira ideia fosse estudar o período após a proclamação da República, a condição de observador ocular privilegiado da armação e consumação do golpe de 1964 empurrou-o para a história contemporânea.
Brasil: de Getúlio a Castelo (1969), seu primeiro livro publicado aqui, obteve enorme repercussão. A abrangência, o enfoque na política, numa época de forte presença da censura (e, logo, de autocensura), tornou Skidmore protagonista de uma polêmica sobre as fontes de financiamento, os interesses e os objetivos dos “brasilianistas”. O acesso a informações então pouco difundidas, o procedimento (comum na historiografia norte-americana) de utilizar entrevistas como fonte de pesquisa, despertou suspeitas descabidas que só foram dirimidas completamente quando Skidmore assinou, em 1975, um abaixo-assinado contra a tortura praticada pelos militares.
No livro seguinte, Preto no branco: raça e nacionalidade no pensamento brasileiro (1976), Skidmore retorna ao período sobre o qual começou suas pesquisas, desenvolvendo capacidades e interesses despertados desde a graduação. Além da história política, acompanhada num arco que se estende desde o início da campanha abolicionista até o fim da Primeira Guerra Mundial, debruça-se sobre a história social numa reconstituição da “questão racial” que desmente o mito (disseminado pela obra de Gilberto Freyre) da “democracia racial” brasileira e também sobre a história cultural, na medida em que não se exime de investigar as ideias e as posições dos principais intelectuais do período.
Sua obra seguiu nesse diapasão, tratando ora exclusivamente de história política, ora mesclando-a com a história social e cultural. Na primeira vertente, destaca-se Brasil: de Castelo a Tancredo (1988), na outra linhagem O Brasil visto de fora (1994). Como a publicação desse último passou quase desapercebida, convém abordá-lo com mais vagar.
Nada mais inadequado no caso de Thomas Skidmore do que tentar compreendê-lo pela métrica (de origem freudiana, ainda que esgarçada pelo mau uso), que permite destacar em alguns intelectuais preocupações e questões que dizem respeito mais à realidade de seu país do que à nação sobre a qual pesquisam.
Mesmo quando recorre a fatos da sociedade norte-americana – como, por exemplo, à segregação racial vigente antes do Ato de direitos civis (1964) – para destacar a falsidade da tese, difundida mundialmente no pós-guerra, da “democracia racial” brasileira, tal contraposição se dá nos marcos, explicitados e justificados pelo autor, de uma história comparativa.
Além disso, sua atenção a temas, métodos de estudos e bibliografia aqui prevalecentes, faz com que o título da coletânea de artigos, O Brasil visto de fora, indique antes uma postura teórica do que uma posição geográfica ou algo afim à sua condição de estrangeiro.
Longe da mescla de subjetivismo e diletantismo, predominante em relatos de viagem, os escritos de Skidmore obedecem às exigências tradicionais do saber científico: busca de neutralidade e objetividade, manutenção de certa distância, de exterioridade em relação ao objeto de estudo.
A camisa de força das regras acadêmicas não deixa, por um lado, de confinar seus textos ao espaço rarefeito dos papers, impedindo-o sequer de perceber a novidade formal, o caráter ensaístico dos livros que analisa, e também o leva, noutro registro, a um rigorismo extremo que não hesita em censurar em Gilberto Freyre sua heterodoxia temática e metodológica. Por outro lado, a preocupação em avaliar de forma isenta a história brasileira tende a impeli-lo a posições críticas ante os dogmas intelectuais locais.
O livro compõe-se de três partes que congregam artigos que podem ser classificados segundo especialidades acadêmicas distintas: o primeiro bloco trata da questão da identidade nacional sob o prisma da história cultural (ou das ideias); o segundo enfoca a questão racial pelo ângulo da história social; e o último confronta Brasil e Argentina após 1945, no registro da história política-econômica comparada.
A primeira parte estabelece um quadro da indagação acerca da identidade brasileira a partir das atitudes intelectuais com relação aos Estados Unidos, priorizando um elenco de pensadores não muito valorizados hoje, mas com importantes repercussões em seu tempo: Monteiro Lobato, Vianna Moog, Moniz Bandeira etc.
A relevância desse inventário torna-se patente não só por ressaltar que os Estados Unidos, a partir de 1889, passam a ser encarados como fator decisivo na construção da nação brasileira, seja como presença ativa ou como modelo almejado; mas também por mostrar de que modo as hipóteses acerca da especificidade da sociedade brasileira devem muito a um confronto comparativo com a ideia aqui predominante sobre como se desenvolve a sociedade norte-americana. No universo restrito da seleção de Skidmore – enfraquecido pelas ausências, entre outros, de Sérgio Buarque de Holanda e Celso Furtado (cuja Formação Econômica do Brasil tem, aliás, como um de seus eixos principais a comparação da colonização brasileira com a norte-americana) – destacam-se dois nomes: Gilberto Freyre e Eduardo Prado.
Segundo Skidmore, Freyre adota a “ascensão e queda da família patriarcal” como chave para a compreensão da história brasileira. Apesar de ter criado um modo próprio de escrever e concebê-la, inspirado nas técnicas da antropologia social, os resultados da obra de Freyre foram enfraquecidos tanto por conta de sua heterodoxia (sua tentativa inicial de interpretar a história da família em termos de história social desemboca numa interpretação da história social brasileira restrita ao âmbito da família), como pela apreciação positiva que concede à questão racial. Sua celebração da singularidade brasileira – especula Skidmore – teria origem na vivência de Freyre da segregação racial no sul dos Estados Unidos.
Eduardo Prado, um militante católico, monarquista e antiamericano da passagem do século foi mais consciente. Pouco afetado pelas ideias positivistas então predominantes, Prado desvia a questão da identidade nacional da esfera cultural, tomando-a em sua dimensão política, o que torna o seu nacionalismo, aos olhos de Skidmore, mais frutífero e inteligente.
Embora uma das preocupações do autor seja substituir, na discussão acerca das relações raciais no Brasil, a avaliação subjetiva, as opiniões pautadas na evidência anedótica e não quantitativa pela análise objetiva de dados institucionais – o que permite demonstrar com clareza que “raça” é uma variável significativa na determinação das oportunidades de vida dos brasileiros –, Skidmore também destaca o debate acerca do caráter nacional brasileiro.
Afinal, reconhece ele, uma longa série de ensaios brasileiros aborda, ainda que de modo dissimulado, as relações raciais ocultando, em grande medida, a complexidade do sistema de classificação racial vigente no Brasil, constituindo uma ideologia bastante reveladora da autoimagem da elite local. O ideal operativo dessa camada desde 1920, a crença numa “democracia racial” e no “branqueamento”, deriva de uma “racionalização” da impossibilidade prática de impor a endogamia e a segregação, devido à baixa presença, no período colonial, de europeus, processo esse que forjou uma percepção enganadora da situação racial brasileira.
Skidmore, comparando o dinamismo dos sistemas de perpetuação racial, não hesita em questionar um dos mitos mais caros da autoimagem brasileira: a situação dos negros no Brasil, segundo ele, seria ainda hoje, tanto em termos jurídicos como sociais, muito pior que a dos negros norte-americanos.
A terceira parte investiga as possibilidades e os limites da formulação de políticas nacionais próprias em duas situações ao mesmo tempo semelhantes e distintas, os governos de Vargas e de Perón. A mudança de tom, de enfoque e até mesmo de bibliografia (as fontes, outrora majoritariamente brasileiras, são substituídas por textos em inglês de especialistas estrangeiros ou brasileiros) refletem uma alteração significativa – também presente na produção universitária brasileira – da visão acadêmica norte-americana do Brasil. Este deixa de ser considerado como exceção (a única nação de língua portuguesa numa América espanhola), passando a ser compreendido cada vez mais como parcela de um bloco cujas partes possuem, pelo menos no campo político e econômico, inegáveis similitudes.
*Ricardo Musse é professor do Departamento de Sociologia da USP. Organizou, entre outros livros, China contemporânea: seis interpretações (Autêntica).
Publicado originalmente no blog da Boitempo, em 24 de junho de 2016.
Referência
Thomas E. Skidmore. O Brasil visto de fora. São Paulo, Paz e Terra, 1994, 292 págs.
Bibliografia
BIEBER, Judy. “História do Brasil nos Estados Unidos, 1945-2000”. In: BARBOSA, Rubens Antônio et alii (org.) O Brasil dos brasilianistas. São Paulo, Paz e Terra, 2002.
BOM MEIHY, José Carlos Sebe. A colônia brasilianista. História oral de vida acadêmica. São Paulo, Nova Stella, 1990.
SKIDMORE, Thomas E. Brasil: de Castelo a Tancredo (1964-1985). São Paulo, Paz e Terra, 1988.
SKIDMORE, Thomas E. Brasil: de Getúlio a Castelo (1930- 1964). São Paulo, Paz e Terra, 1969.
SKIDMORE, Thomas E. Preto no branco: Raça e nacionalidade no pensamento brasileiro. São Paulo, Paz e Terra, 1976.