Por MEGHIE RODRIGUES*
Anos de cortes no financiamento têm sido difíceis de engolir para os pesquisadores no Brasil
A comunidade científica brasileira está atônita com mais um golpe no financiamento de pesquisas. Em 15 de outubro, o presidente Jair Bolsonaro sancionou uma lei que enviava 600 milhões de reais destinados ao Ministério da Ciência, Tecnologia e Inovações do país para várias outras áreas do governo. A promessa do dinheiro no início do ano levou a principal agência de financiamento científico do Brasil a iniciar sua primeira “Chamada Universal” para propostas de auxílio às pesquisas desde 2018. Agora, as 8.000 propostas de pesquisa apresentadas enfrentam um futuro incerto.
Anos de cortes no financiamento têm sido difíceis de engolir para os pesquisadores no Brasil. As principais agências e fundos científicos do país receberam apenas 4,4 bilhões de reais no ano passado, cerca de um terço do que receberam em 2015, quando o financiamento atingiu um pico de 14 bilhões de reais. Corrigido pela inflação, este é o menor investimento em pesquisa desde 2004.
Os pesquisadores sentem-se desmoralizados pela perda de última hora de fundos prometidos para este ano. “Toda a situação é deprimente”, diz Patricia Endo, cientista da computação da Universidade de Pernambuco em Caruaru, que faz parte de uma equipe que submeteu uma proposta pela Chamada Universal para aplicar inteligência artificial ao estudo da saúde materna. “Se não fosse pela minha família, eu já teria deixado o país”.
Um medidor do apoio
O dinheiro prometido para a pesquisa viria de um fundo especial para inovação industrial e pesquisa, chamado Fundo Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico (FNDCT). Os impostos cobrados de setores industriais como biotecnologia e energia são a principal fonte de recursos para o fundo. A cada ano, parte dos fundos do FNDCT é contabilizada no orçamento da ciência, diz Paulo Almeida, diretor executivo do Instituto Questão de Ciência em São Paulo. “Mas os critérios políticos de alocação de recursos os mantêm majoritariamente congelados, sendo distribuídos apenas com a aprovação pelo Congresso de projetos de lei específicos que liberam os fundos”, diz ele.
Este ano, cerca de 690 milhões de reais seriam adicionados ao financiamento científico, dos quais 655 milhões viriam do FNDCT para apoiar os Institutos Nacionais de Ciência e Tecnologia e programas como a Chamada Universal.
No início de outubro, contudo, o Ministério da Economia pediu uma redistribuição do dinheiro prometido. Em vez de ir para ciência e tecnologia, o Ministério propôs que fosse distribuído entre áreas como infraestrutura, agricultura, saúde e educação e retirado de um excedente financeiro do governo de 2020. O Ministério da Ciência receberá apenas pouco mais de 7 milhões de reais, e a Comissão Nacional de Energia Nuclear receberá mais de 82 milhões de reais, para pagar a produção de radiofármacos. Estes medicamentos são utilizados no tratamento de pessoas com câncer, e sua produção no Brasil foi interrompida no mês passado devido à falta de financiamento.
Para o ex-ministro da ciência Sergio Rezende, o montante que o governo libera anualmente do FNDCT é um termômetro que mede seu apoio à ciência. “A ciência não tem valor para o atual governo”, diz ele.
Assimilando
O maior soco no estômago para os pesquisadores é a incerteza que agora envolve a Chamada Universal, que financia amplamente a pesquisa em áreas que vão das ciências naturais às humanidades. Originalmente, o Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico (CNPq), a principal agência brasileira de financiamento da ciência, planejou utilizar 200 milhões de reais do dinheiro prometido para a concessão de verbas aos pesquisadores através da convocatória. Devido à escassez de recursos, não se lançava uma Chamada Universal desde 2018.
Milhares de propostas de pesquisa envolvendo mais de 30.000 cientistas apareceram quando a convocatória deste ano foi aberta. Agora, os cientistas aguardam os resultados – a serem divulgados em novembro – sem saber se existe alguma possibilidade de financiamento.
“Levei algum tempo para tentar e assimilar as notícias”, diz Luisa Viegas, bióloga da Universidade Federal de Alagoas em Maceió, que propôs um projeto de três anos para estudar como as mudanças climáticas ameaçam a existência de anfíbios e répteis no Brasil.
“Mobilizamos muitos esforços e energia para elaborar o projeto em conjunto”, diz ela, observando que o projeto envolveria 30 pesquisadores do Brasil e dos Estados Unidos. “Agora, estamos pensando em submetê-lo a financiadores internacionais, mas não vai ser tão fácil porque é uma especificidade do Brasil”.
Quando perguntado pela Nature por que priorizou outras áreas em vez da ciência para receber os fundos, o Ministério da Economia do Brasil respondeu por e-mail que não era o único responsável pela mudança. “A mudança foi decidida pelo governo, com o apoio da Comissão de Orçamento”.
Em seu pedido para redirecionar os fundos, o Ministério da Economia destacou que o Ministério da Ciência ainda não tinha utilizado todo o dinheiro disponível em seu orçamento para 2021.
Para o físico Ildeu Moreira da Universidade Federal do Rio de Janeiro, ex-presidente da Sociedade Brasileira para o Progresso da Ciência, o redirecionamento dos fundos é a mais recente das manobras anticiência do governo Bolsonaro. “É um desmantelamento deliberado da ciência”, diz ele.
Mas alguns não perderam a esperança. Evaldo Vilela, presidente do CNPq, diz que há uma nova lei em discussão que tentará recuperar o financiamento perdido. Obteve-se o apoio de políticos de vários partidos, e, se for aprovado rapidamente, diz ele, “ainda podemos ter a Chamada Universal para este ano”.
*Meghie Rodrigues, jornalista especializada na cobertura científica, é doutoranda no Departamento de Política Científica e Tecnológica (DPCT) do Instituto de Geociências da Universidade Estadual de Campinas (IG-UNICAMP).
Tradução: Fernando Lima das Neves.
Publicado originalmente na revista Nature.