Marielle Franco

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Por GABRIEL COHN*

Considerações sobre o assassinato da vereadora da cidade do Rio de Janeiro feitas no calor da hora, em março de 2018

Quem matou Marielle Franco? Que o Judiciário aja e que os órgãos policiais façam seu trabalho, sob o olhar atento da cidadania. As “revelações” e as contestações se acumularão nos próximos tempos. A questão premente, porém, não é a investigação de um crime, é seu significado. E esse significado é político no mais alto grau de importância e urgência.

Admitamos, para argumentar, que tenha sido um ato muito bem planejado e executado por pistoleiros profissionais de alto calibre, tramado por algum segmento dos senhores do crime organizado no Rio. Isso lhe retiraria o caráter político? Não, pois restaria saber por que a vítima escolhida foi precisamente aquela, por que neste momento e dessa forma, por que justamente ali, porque divide tanto a sociedade, com todos os desdobramentos que perguntas desse tipo comportam. Tudo muito importante, claro, mas não é nisso que devemos concentrar atenção, pois, do contrário, corremos o risco de fazer o jogo dos assassinos e seus mandantes, interessados em espalhar as figuras gêmeas do temor e do ódio, as únicas que conhecem. Mais do que nunca, precisamos de lucidez.

O assassinato, a execução de figura pública com o perfil de Marielle Franco não é simples acréscimo à soma de atrocidades que rotineiramente marcam esta nossa incrivelmente brutal sociedade, em todos os cantos (enquanto ela era baleada e Anderson, o motorista que a conduzia sofria a mesma sorte por razões friamente técnicas de assassinato, no Rio um professor era morto em Belém e dezenas de anônimos morriam ou escapavam de morte violenta pelo país afora). Uma sociedade que em sua face sombria se permite dispensar o “fascismo” (para usar termo demasiado frequente nos debates) porque já o pratica espontaneamente – mas, é bom lembrar, de modo igualmente espontâneo pratica muita outra coisa em sua face luminosa, da qual Marielle se fez representante.

Não se trata de se concentrar em um único caso, muito menos de fazer contagem de vítimas. O que realmente importa é o perfil modelar da representante popular executada. É isso que imprime ao evento a marca de experiência que inspirará toda uma geração. Sim, uma geração, pois bastava lançar os olhos em manifestações como as na Avenida Paulista ou na Cinelândia poucas horas após o crime para ver como a grande maioria dos presentes era formada por pessoas jovens dos mais diversos tipos. Nada de lamentação, muita energia e participação.

O que, enfim, confere a esse caso tal caráter? A resposta é tão fácil como de decisiva importância que Marielle Franco reunia em si uma espécie de corte transversal nas questões mais prementes de nossa sociedade, uma espécie de caleidoscópio com todas as cores dos problemas que nos afligem. Tirando-se a questão dos povos indígenas, estava tudo lá, impresso em seu corpo, em sua vida e em sua atuação: mulher negra, pobre, mãe solteira, lésbica, militante dos direitos humanos e, para levar ao auge o ódio que inspirava em setores da sociedade, atraente e muito bem-sucedida naquilo que fazia.

É essa especial conjugação de qualidades que a torna emblemática e confere a seu assassinato índole política intrínseca, não como algo trazido de fora. Não é só Acari que está em jogo, é tudo que cerca esse pedaço do Rio e remete ao país inteiro. Isso talvez ajude a entender como uma pessoa pública, representante popular eleita por votação consagradora, é executada da maneira mais franca e crua, em terra onde a praxe é a liquidação de figuras públicas, em especial presidentes e ex (Castelo Branco, Costa e Silva, Juscelino, Jango… a lista vai longe) por meios indiretos e ocultos. Claro que o modo ostensivo da prática do crime não é gratuito. E advertência: daqui por diante quem atravessar nosso caminho será morto. Fica a pergunta: no caminho de quem?

Não importa. Não se pode admitir a mortandade seletiva (Marielle era o alvo ideal em certo momento, mas sempre haverá outros) para alimentar um terror tanto mais eficaz quanto difuso. Ficar inerte só encoraja os assassinos. Já existe experiência histórica acumulada nessa área. Afinal, o Brasil enfrentou no último meio século as consequências de dois golpes de Estado. Um em 1964, de caráter oligárquico-militar com apoio no Legislativo; outro, em 2016, de caráter oligárquico-parlamentar, com apoio no Judiciário.

A diferença é que 1964 tolheu e sufocou a sociedade, mas não trazia a ameaça de seu apodrecimento (ou seja, de sua corrupção no sentido exato do termo, que vai além da mera venalidade). O atual é intrinsecamente corrupto e desagregador, e nisso ainda mais danoso. O dado novo é que o momento crucial que estamos vivendo abre novas perspectivas a curto e, sobretudo, a longo prazo.

No que consiste, então, tal caráter político? Ele consiste, justamente, naquela condensação em uma pessoa de tudo o que representam aqueles traços indicadores de outras tantas questões não resolvidas numa sociedade que clama por sua solução. Clama por mais política levada a sério, portanto. E também nisso, Marielle era exemplar, ao atuar nos dois campos, diretamente junto à sociedade e como representante de partido bem definido na Câmara municipal carioca. Exibia nisso mais uma faceta de seu dom de agregar diferentes linhas de ação, ao demonstrar como o trabalho direto nos movimentos sociais pode ter prolongamento eficaz na representação partidária no Legislativo.

O grande desafio, cujo enfrentamento pode significar a conversão daquele evento singular em momento crucial da vida nacional republicana, consiste em manter, sem esmorecer, a mobilização. Num sentido muito especial, porém. Não se trata apenas de promover eventos (embora a arte de ocupar as ruas em momentos especiais certamente não possa ser ignorada), mas de trabalhar no essencial. E o essencial é sinalizado exatamente pela circunstância de que Marielle representava aquele corte transversal que atravessa todas as posições e todos os problemas não resolvidos.

Isso significa que manter-se mobilizado e aprofundar as formas de intervenção conjunta tem efeito fundamental. E só por essa mobilização, entendida como prontidão civil organizada, é que a ação política das múltiplas formas de agrupamento situadas no campo ainda mal definido da esquerda ganha capacidade de somar forças. Trata-se de reunir, por enlaces e conexões mil, as questões, as posições e as formas de agir de cada qual e do conjunto. O dom de unificar, enfim. Tudo isso sem esquecer que aquilo que representa fonte de desafios construtivos para alguns é fonte de ódio e rancor para outros.

A referência à figura singular daquela vítima entre tantas tem isso de emblemático, de que, a seu modo, coloca a questão decisiva. Se ela podia percorrer tudo e reunir tudo numa ação coerente, por que as diversas forças sociais não podem fazer o mesmo? Pois é vital superar de vez a tentação de aceitar onde menos se espera esse traço central em nossa sociedade de valorizar o “cada qual por si”, de centrar-se em sua dimensão particular de intervenção nas grandes questões. Grandes demandas organizadas podem exercer tal poder unificador. (Para dar o exemplo mais óbvio nas atuais circunstâncias, a desmilitarização e a reestruturação da polícia).

Isso, porém, não é tudo. Não se trata simplesmente de unificar, de formar um bloco. Para além disso, importa levar as modalidades particulares de reivindicação e ação a se cruzarem sem perder seus tons próprios e, no limite, realizarem aquilo que pode parecer utópico. A saber que as demandas se cruzem e se conectem entre si. Por exemplo, que grupos ligados a questões de gênero usem sua experiência peculiar para propor novas pautas a grupos voltados para questões de raça e reciprocamente, sem limites. O aprofundamento de tais conexões pode gerar efeitos verdadeiramente transformadores na sociedade, de modo contínuo e quase imperceptível até o instante em que o novo vem à tona.

A questão mais funda neste momento não se esgota na mobilização, que deixada só perde alento e no máximo se ritualiza. Há um segundo passo mais decisivo, em direção à mobilidade, à capacidade de atenção criativa, à prontidão compartilhada. Não é só uma questão de pronta resposta a desafios conjunturais. A isso junta-se o mais difícil, que é a capacidade de incorporar novas exigências mediante novas formas de organização, partidária ou não.

A nova esquerda que aos poucos se vai construindo saberá aprender como isso se faz E é exatamente aí que a figura de Marielle será lembrada sempre, não com mera indignação ou tristeza, mas como luminosa inspiração. Talvez assim se torne possível realizar aquilo que em sua fase heroica buscava o PT, que é fazer política séria com gosto e alegria.

*Gabriel Cohn é professor emérito da FFLCH- USP. Autor, entre outros livros, de Weber, Frankfurt. Teoria e pensamento social (Azougue).

Publicado originalmente no jornal Le Monde Diplomatique, em abril 2018.

 

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