O centenário da Semana de Arte Moderna

Tarsila do Amaral, Um Só, 1930
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Por WALNICE NOGUEIRA GALVÃO*

Comentários sobre as comemorações dos 100 anos da Semana de 22

1.

Levou cem anos, um século inteiro, mas temos agora uma realização para brindar: o resgate, execução e gravação da música da Semana de Arte Moderna em 1922. Mais uma iniciativa de altíssimo nível que devemos ao Sesc, o box com quatro CDs intitula-se Toda Semana: Música e literatura na Semana de Arte Moderna. O livreto do box traz poemas e conferências da Semana, bem como novos estudos.

Comandam o projeto três especialistas: a musicóloga do Instituto de Estudos Brasileiros da USP (IEB) Flávia Camargo Toni, Claudia Toni e Camila Fresca. Fazer o levantamento, convocar e ensaiar os músicos, proceder à gravação: a tarefa não é pequena…

Villa-Lobos foi mesmo o compositor mais tocado na Semana, com cerca de 20 obras. Também funcionou como maestro, enfrentando com galhardia as vaias e apupos que saudaram tanta modernidade. Entre os instrumentistas, ressaltam os desempenhos dos pianistas Lucília Villa-Lobos, Frutuoso Vianna, Ernani Braga e da grande Guiomar Novaes.

Os naipes que agora executaram a música foram compostos por profissionais reputados. O maestro e violinista Claudio Cruz tem longo tirocínio como spalla da Osesp. A seu lado apresenta-se o jovem pianista Christian Budu, que vem acumulando prêmios: fica a cargo de ambos o fulcro do projeto. Destaque para Antonio Meneses, um dos maiores violoncelistas da atualidade, e Mônica Salmaso, voz de afinação impecável. O livreto traz o elenco dos instrumentistas e cantores.

A realização está à altura de empreitadas sofisticadas como aquelas que se fazem em Paris a propósito de Marcel Proust, onde é possível comprar CDs ou ir a um concerto só de músicas dos oito volumes de Em busca do tempo perdido. Sem deixar de incluir as canções clássicas do amigo Reinaldo Hahn, de grande popularidade à época: até hoje soa nos teatros sua célebre Si mes vers avaient des ailes, sobre poema de Victor Hugo.

Os proustianos abrem a discussão sobre uma certa frase melódica, la petite phrase da sonata de Vinteuil, atribuída a um compositor fictício: seria da autoria de César Franck, Saint-Saëns ou Gabriel Fauré? O próprio autor revelou que era de Saint-Saëns, mas os estudiosos duvidam de sua revelação… Ou pode ser uma exposição de pintura reunindo os retratos de Proust e de seus amigos, como Robert de Montesquiou (cuja magistral efígie, devida aos pinceis de Whistler, fica na Frick Collection de Nova York), Anna de Noailles, os vários Greffühle (modelo dos Guermantes), Boni de Castellane etc., e mais as paisagens evocadas (Illiers-Combray, Trouville etc.). Ou ainda os trajes da condessa de Greffühle, a mais elegante de seu tempo, objeto de mostra há poucos anos no Palais Galliera.

 

2.

A moda tem sido estudada por aqui também. Um livro recém-lançado guarda igualmente forte relação com Paris, destino inevitável à época: O guarda-roupa modernista – O casal Tarsila e Oswald e a moda, da autoria de Carolina Casarin. Já muito citada foi a referência de Oswald a Tarsila: “… caipirinha vestida por Poiret…”. Pesquisando nos arquivos dos costureiros em Paris, a autora encontrou documentação relativa a mais de vinte toaletes de Tarsila, assinadas por Jean Patou e por Paul Poiret. A própria capa que ela enverga no mais famoso de seus autorretratos (Manteau rouge, de 1923), em que a tela é avassalada por enorme mancha escarlate, é da autoria de Jean Patou.

Entre muitas outras revelações, o livro faz o levantamento de uma curiosidade: os vestidos de Poiret tinham nomes. Aprendemos os nomes daqueles comprados por Tarsila: Mandalieu, Lampion, Mosqué, Riga, Esmeralda, Street… Ficamos sabendo que Poiret não figurava entre os costureiros mais avançados, como Chanel, cujas roupas eram mais flexíveis e desvencilhavam a silhueta feminina. Ao contrário, as suas eram mais pomposas e ornamentadas, com influência oriental, sendo, portanto, menos de vanguarda e mais de ostentação.

Pesquisas, instigadas pelo Centenário da Semana, continuam a surgir. Praticamente uma novidade a cada semana, o que é ótimo.

 

3.

Entre outros benefícios, as celebrações do Centenário estão provocando a publicação de trabalhos abordando aspectos até agora inéditos. Enquanto esperamos que outros surjam, podemos ler A arte de devorar o mundo – Aventuras gastronômicas de Oswald de Andrade, de Rudá K. Andrade, neto de Patrícia Galvão (Pagu) e Oswald de Andrade. Chama-se Rudá tal como seu pai, só que o onomástico completo do pai é Rudá Poronominare Galvão de Andrade. Como é sabido, foi Oswald quem escolheu os dois prenomes indígenas.

É fácil confundir filho e neto, dado que ambos são xarás, portando o mesmo e raro prenome de Rudá. Detratores contemporâneos de Oswald disseminaram a vilania de que ele era tão desvairado que tinha dado ao filho o nome de “Lança-Perfume Rodo Metálico” – a marca mais popular nos carnavais da época, quando se cheirava éter à vontade, como se lê nos poemas de Manuel Bandeira. A vantagem do Rodo Metálico era a bisnaga de metal, como o nome indica, enquanto as outras eram de vidro e estilhaçavam nas estrepolias da farra. Mas a calúnia é repetida até hoje.

Este livro analisa e comenta, fornecendo as devidas receitas, as preferências culinárias dos modernistas, com ênfase em Oswald, que apreciava a mesa farta e o refinamento do paladar, mas não enjeitava pratos mais corriqueiros, como a feijoada. Como se sabe, Oswald era muito rico na primeira fase de vida, e rico enquanto herdeiro, pois recebeu como legado do pai, dispensando-o de trabalhar, uma quantidade enorme de terrenos entre Cerqueira César e os Jardins, isto é, os bairros residenciais mais centrais da cidade.

Seu paladar fora afinado em Paris, destino habitual desde os 22 anos, quando fizera a primeira viagem, em 1912. Em Paris aprendeu requinte gastronômico e vanguardismo. Foi o craque de 1929, com a subsequente Depressão econômica, que o arruinou, tanto quanto arruinou outros artistas, a exemplo de Tarsila do Amaral, que precisou ganhar a vida como ilustradora e jornalista. E quase arruinou os mecenas dos modernistas como Paulo Prado e Olívia Guedes Penteado, que saíram da crise com a fortuna encolhida.

 

4.

Oswald conta isso em seus livros, e mais ainda na peça teatral O rei da vela, extraordinário sucesso quando pioneiramente encenada pelo Teatro Oficina, sob direção de José Celso Martinez Correia, contrariando a voz corrente de que o teatro de Oswald não era encenável. Tanto é que já se tinham passado décadas desde que escrevera O rei da vela e O homem e o cavalo, ninguém ousando levá-las aos palcos. Quanto ao poema dramático O santeiro do Mangue, escatológico e blasfemo, nem se fala. Mas a montagem do Oficina, muito criativa, reinventou o teatro de Oswald: bastava encontrar o jeito de encená-lo, bastava ter o talento de José Celso.

Nem o próprio Oswald, nem Flávio de Carvalho, pensavam que sua dramaturgia não funcionaria no palco. Oswald apalavrou O homem e o cavalo com Flávio de Carvalho para o Clube dos Artistas Modernos (CAM), que este comandava desde 1932, juntamente com os pintores Antonio Gomide, Di Cavalcânti e Carlos Prado, com sede em baixo do Viaduto Santa Efigênia, então endereço de prestígio. O Clube era um foco da sociabilidade modernista e oferecia exposições, recitais, conferências e espetáculos.

Flávio fundara o Teatro da Experiência e estava dirigindo sua própria peça, O bailado do deus morto, no CAM. Sabe-se, e já houve quem o afirmasse, que se trata provavelmente do marco fundacional do teatro expressionista no Brasil. Mas, por isso mesmo, causou escândalo e acabou por ser proibida pela polícia, atendendo aos reclamos dos bem-pensantes. A proibição acarretou o fim do próprio CAM e a peça de Oswald não chegou a ser encenada – o que é uma pena. É bom lembrar que Paulo Mendes de Almeida, em De Anita ao Museu , chama Flávio de “o outro enfant terrible do Modernismo”, depois de Oswald, é claro. O CAM mal durou dois anos. E foi assim que o teatro de Oswald continuou inédito.

Mas, voltando à gastronomia: com este livro nas mãos, seria possível preparar um “jantar modernista” – e bom apetite!

*Walnice Nogueira Galvão é Professora Emérita da FFLCH da USP. Autora, entre outros livros, de Lendo e relendo (Senac/Ouro sobre azul).

 

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