Por AFRÂNIO CATANI*
Comentário sobre o livro Histórias de O. Henry
1.
Estava em Campinas, passeando pelo centro, nos primeiros dias de janeiro. Após uma visita ao Palácio dos Azulejos, que hospeda o Museu da Imagem e do Som (MIS), minha anfitriã e eu andávamos pela Rua Ferreira Penteado e entramos num modesto sebo, onde encontramos o fabuloso livro do estadunidense O. Henry contendo 22 de seus contos, selecionados e prefaciados por José Paulo Paes.
O. Henry foi o pseudônimo utilizado por William Sidney Porter (Greensbore, Carolina do Norte, 11.09.1862 – Nova Iorque, 05.07.1910), tendo se convertido num dos contistas mais populares de seu país.
Em “Notícia sobre O. Henry” (p. 7-12), José Paulo Paes informa que o escritor perdeu os pais ainda criança, tendo sido adotado por uma tia idosa, professora em um colégio particular, que lhe estimulou o gosto pela leitura. Frequentou a escola até os quinze anos. Daí por diante “teve como únicos mestres a Vida, que sempre amou, malgrado seus desconcertos, e os livros, que lia com fervor, mas sem método” (p. 7). Trabalhou com o tio numa drugstore de sua cidade natal, teve uma crise de tuberculose e foi viver num rancho de criação de carneiros, no Texas, mas logo o abandonou e fixou-se em Austin, trabalhando em escritório, criando um semanário humorístico com vida efêmera e, em seguida, “passou a colaborar no Daily Post, de Houston, onde assinava uma coluna de crônicas humorísticas” (p. 8).
Seus ganhos eram insuficientes para sobreviver, completando seus rendimentos como contador num banco de Austin. Ele foi acusado de ter subtraído mil dólares do estabelecimento; já era casado e tinha uma filha. Com receio de ser preso, foge para Nova Orleans e, de lá, toma um navio para Trujillo, Honduras, deixando a família. Apenas retorna aos EUA para atender a esposa, gravemente doente, vindo a morrer dias após o seu retorno. Entregou-se à polícia, entregando a filha aos cuidados da avó. Acusado de peculato, foi condenado a 5 anos de prisão na Penitenciária Federal de Ohio. “Por bom comportamento, teve a pena abreviada para três anos e três meses: o diretor do presídio, simpatizando com ele, empregou-o como assistente de farmácia e, depois, como enfermeiro noturno no hospital penitenciário” (p. 9).
Suas primeiras histórias foram escritas na prisão, sendo os textos enviados, já assinados com o pseudônimo que o tornaria famoso, a um amigo de Nova Orleans, que os remetia aos editores novaiorquinos. O curioso é que O. Henry “tirou o seu pseudônimo do nome do chefe da guarda da Penitenciária de Ohio, o Capitão Orrin Henry” (p. 9). Segundo Paes, foram as confissões de um companheiro de cela que o ajudaram a escrever “Uma Reforma Restabelecida”, que também foi adaptada para o teatro.
O. Henry deixou a prisão em 1902, com 40 anos, indo viver em Nova Iorque, por ele chamada Bagdá-Sobre-o-Metropolitano, residindo quase sempre perto de Madison Square e em Irving Place, em quartos alugados. Trabalhava com afinco, pois dependia de sua produção para pagar as contas: “pressionado pelos editores, sempre a exigirem novas histórias para atender a demanda do público – que se encantava com seu jeito bem-humorado de narrar e a sua visão moderadamente rósea dos dramas da vida, (…) escrevia em média um conto por semana e, no seu período de maior atividade (1902-1910), produziu [cerca de] trezentos. O volume ônibus publicado postumamente e que lhe reúne toda a produção enfeixa seiscentos contos completos” (p. 10).
Seus escritos tecem pequenas teias envolvendo “gentinha solitária e esperançosa – moças que (…) eram arrastadas à grande cidade pelo amor ou pelo desejo de fazer carreira, e que se tornavam joguetes do destino; rapazes avidamente à procura de uma posição; vagabundos e desajustados que aceitavam a adversidade com ar de bazófia e por vezes exibiam atitudes sentimentais e romanescas” (p. 10).
A popularidade de O. Henry, logo no início do século passado, chegou rapidamente e suas histórias eram disputadas por várias revistas. Logo surgiram suas coletâneas, consolidando seu nome junto ao mercado editorial. José Paulo Paes lembra que a primeira delas é de 1904 – Cabbages and Kings, contendo narrativas de aventura e revolução ambientadas num país fictício da América Central (p. 10). Entretanto, foi The Four Million (1906) que, valendo-se de uma fórmula mais ou menos inovadora (“o conto de twist ou final inesperado”), causou sensação na época (p. 11).
Enquanto a crítica lhe torcia o nariz, o público adorava a utilização dessa fórmula, pouco se importando com a superficialidade dos personagens ou a artificialidade dos enredos (p. 11). Isso fez com que seus outros livros caíssem ainda mais nas graças da grande massa de leitores – casos de The Trimmed Lamp e Heart of the West (ambos de 1907); The Voice of the City (1908); Options e Roads of Destiny (1909) e, em 1910, outros dois: Strictly Business e Whirligigs. Outros três de seus livros foram publicados postumamente (p. 11).
2.
Além de selecionar os contos deste Histórias de O. Henry, dentre os vários livros citados em linhas anteriores, José Paulo Paes traduziu 8 deles – os outros 14 foram versados por Alzira Machado Kawall. Infelizmente, não há na edição o registro das datas das publicações originais.
Talvez “O Presente dos Magos” e “A Última Folha” sejam algumas das histórias mais conhecidas do autor, em que amantes ou pessoas queridas se sacrificam para beneficiar parceiras/os e/ou amigas/os, com finais inesperados, surpreendentes mesmo. “Em Vinte Anos Depois”, com apenas quatro páginas, tudo é dito de forma eficaz e até desconcertante. As balconistas de lojas finas, que vivem em quartos alugados por 2 ou 3 dólares semanais e que pretendem, se possível, um “bom casamento” com rapazes ricos, estão presentes em “Namorado de Quatro Vinténs” e “A Lâmpada Enfeitada”. Despesas cotidianas, preço de roupas, refeições e o necessário para se viver apertado em Nova Iorque aparecem com mais destaque em “A Água Furtada”, enquanto em “Uma Reforma Restabelecida” e “O Guarda e o Hino” o tema da regeneração social é abordado com maestria.
Rudolf Steiner é o personagem principal de “A Porta Verde”; “Efêmeros Visitantes da Arcádia” reúne Harold Farrington (James Mac Manus) e Héloise D’ Arcy Beaumont (Mamie Siviter), que se passam por milionários, com fake names, por alguns dias, no magnífico Hotel Lótus, em Manhattan.
“Caminhos do Destino”, por sua vez, é o conto mais longo da coletânea. Transcorrido na França do Antigo Regime, abre três possibilidades narrativas para a ação do pastor de carneiros e poeta inédito David Mignot, nenhuma delas que o conduza a resultado que o deixe feliz. “Noite Árabe em Madison Square”, “Dois Cavalheiros no Dia de Ação de Graças” e “A Meia de Natal de Dick Assobiador” tratam da participação, em distintos contextos, de sem tetos, que alteram por completo os rumos das histórias. “Maio, Mês Matrimonial”, registra a suspeita da filha de um milionário com relação ao comportamento da cuidadora de seu pai rico, pois “sabia que homens idosos e mulheres de cintura grossa saltavam como pulgas amestradas ao som da ridícula música de maio, gaio mês zombeteiro. Já ouvira falar, antes, de velhos e tolos cavalheiros que desposaram suas governantas” (p. 38).
“Manon e o Arqueiro” conta a ação de um milionário, totalmente apegado aos valores materiais, que ajuda o filho a conquistar o amor de uma jovem indecisa. “O Quarto Alugado” trata, na realidade, de uma busca e suas trágicas consequências, transcorrendo a ação numa casa decadente no baixo West Side, dotada de um conforto ilusório, com uma mobília arruinada, “com estofamento de brocado puído de um sofá e duas poltronas, o espelho barato alongando-se entre duas janelas, uma ou duas gravuras de moldura dourada, uma cama de metal a um canto” (p. 89).
No já citado “A Lâmpada Enfeitada” Nancy, 20 anos, chegou a Nova Iorque vinda do interior, disposta a procurar um trabalho, “porque em seu lar não havia comida suficiente”. Emprega-se como balconista num grande magazine. Vem com sua amiga Lou, que “é passadeira numa lavanderia manual, e ganha por peça” (p. 163). Nancy recebe 8 dólares/semana e faz verdadeiros contorcionismos para morar, se alimentar e se vestir. Sua meta posterior era arranjar um bom casamento. “Assim, mantinha ela a sua lâmpada enfeitada e acesa para receber o noivo quando aparecesse” (p. 173).
Com maestria, O. Henry escreve que ela vai se preparando para isso em seu próprio local de trabalho: “O currículo de uma grande loja é vasto” (p. 168). Acrescenta: “Não creio que muitos consideram uma loja como uma instituição educacional. Mas a loja em que Nancy trabalhava era-lhe uma escola. Vivia ali rodeada de belas coisas, que lhe falavam de bom gosto e refinamento. Se você vive numa bela atmosfera de luxo, o luxo lhe pertence, que o seu dinheiro ou o de outrem pague por ele” (p. 167). Para o contista, sua posição na loja era favorecida. A sala de música ficava perto o bastante para ela ouvir e familiarizar-se com as obras dos melhores compositores – pelo menos, para adquirir aquela familiaridade que passava pela compreensão do mundo social em que ela tentava vagamente por um pé probatório e ansioso. Absorveu a influência educativa dos artigos de arte, dos tecidos elegantes e caros, dos enfeites que são quase cultura para as mulheres” (p. 168).
Talvez as novas gerações não conhecem ou conhecem pouco os contos de O. Henry. Eu tive o privilégio de ler algo próximo a uma dezena deles, ainda na adolescência, publicados em revistas ou em antologias de grande circulação. Depois, nunca mais tive contato com seus textos. Foi uma grata surpresa saber que a Editora Carambaia, em 2016, com tradução de Jayme da Costa Pinto, lançou Contos (248 páginas). Pode ser uma boa oportunidade para se procurar suprir esta lacuna. Em que pese as diferenças de estilo e de enfoque, aqui e ali, quando os leio, encontro algumas de suas pegadas nos romances do grande John Fante (1909-1983).
*Afrânio Catani é professor titular aposentado da Faculdade de Educação da USP e, atualmente, professor sênior na mesma instituição. Professor visitante na Faculdade de Educação da UERJ, campus de Duque de Caxias.
Referência
O. Henry. Histórias de O. Henry. Seleção e Prefácio: José Paulo Paes; Tradução: Alzira Machado Kawall e José Paulo Paes. São Paulo, Cultrix, 1964, 216 págs.