Por JOSÉ RAIMUNDO TRINDADE*
No Brasil, historicamente, nunca tivemos uma cultura teórica marxista presente nas maiores formações político-partidárias
“Esses boy conhece Marx, nóiz conhece a fome, então cerre os punhos, sorria e jamais volte para sua quebrada de mão e mente vazia” (Emicida).
A frase acima do músico e produtor artístico Emicida é bastante conhecida como ele nos fala pelas “quebradas” do Brasil. Vale notar que muito recentemente estive em um encontro de jovens militantes de um partido de esquerda e lá pelas tantas me vi afrontado pela frase do famoso “rap”.
O desconhecimento do velho Marx, ou seu reconhecimento enquanto somente um membro qualquer dos registros bibliográficos acadêmicos nos levou a essa intrigante, mas compreensível situação no qual o marxismo que, em algum momento, foi a base de debate crítico da sociedade capitalista, seja agora visto como uma mera página de conhecimento acadêmico.
Faço essa breve introdução para tentar lançar luz, ou pelo menos discutir mais abertamente, como o marxismo chegou neste momento, a uma condição tão distante do palco mais ruidoso e para o qual o próprio Marx tanto se esforçou: o cotidiano capitalista a ser transformado da classe trabalhadora. Para esse breve debate, vou me utilizar de dois autores úteis para tratar dessa equidistância acadêmica que o marxismo assumiu não somente no Brasil, mas no mundo, me refiro aos trabalhos de Perry Anderson e Domenico Losurdo sobre o que eles denominam de “marxismo ocidental”.
O “marxismo ocidental” tem entendimento distinto nos autores em questão. Inicialmente, se trata para Perry Anderson uma concepção geracional, cujo enquadramento em quatro aspectos básicos estabelecem uma paulatina diferenciação e condição de expressão social do marxismo histórico. Um primeiro elemento refere-se ao recorte espacial ou geográfico de estabelecimento do marxismo: os autores originais (Marx e Engels) desenvolveram seu pensamento desde a Europa central (Inglaterra, França, Alemanha), identificando na disputa social e na organização dos movimentos de trabalhadores ali localizados a primeira expressão da luta anticapitalista.
Marx e Engels participaram da organização da primeira Internacional Socialista e definiram o campo político e econômico da disputa social. A segunda geração, organizada inicialmente em torno da chamada Segunda Internacional já apresenta um recorte geográfico distinto, principalmente o movimento socialista russo atrai o núcleo de pensadores para o leste europeu e parte da Ásia. Para Losurdo, neste movimento se originaria o que ele denomina de “marxismo oriental”. Por fim, a geração que origina o “marxismo ocidental” apresenta um novo deslocamento para o centro europeu e para os EUA.
O segundo aspecto e que definiria a condição mais forte da noção de Anderson, refere-se ao padrão de atuação e vínculos partidários. Os marxistas de segunda geração (Kautsky, Lenin, Rosa Luxemburgo, Hilferding, Bukhárin, Otto Bauer, entre outros) estavam totalmente incorporados a disputa partidária e ação de movimentos de massa. Esses autores eram proeminentes dirigentes partidários e parcela considerável de suas formulações se davam na interação intima entre o desenvolvimento da teoria marxiana, com enorme capacidade de formulação criativa e critica, e a ação dos movimentos sociais revolucionários. Domenico Losurdo irá observar que essa capacidade criativa e critica integrada aos movimentos partidários e de lutas sociais de massa continuará no assim denominado “marxismo oriental” e mais especificamente naquele conjunto de confrontos que se observará nas lutas anticoloniais, especialmente as revoluções asiáticas (China e Vietnã).
Os autores marxianos de terceira geração apresentam crescente distanciamento da intervenção partidária e de movimentos revolucionários de massa. Os motivos apresentados para isso foram muito variados e em grande medida ainda requer mais pesquisas. Quatro pontos parecem ser relevantes e são destacados por Anderson: o avanço do fascismo a partir da década de 1930, impondo elevada repressão e desorganização partidária, o que afetou a própria participação e militância político-partidária dos autores do marxismo ocidental; segundo, resultante das forças de ação do stalinismo e de sua influência sobre os Partidos Comunistas, expurgando ou definindo limites para ação de uma intelectualidade partidária. Como frisa Anderson, intelectuais marxianos como Sartre, Althusser, Della Volpe, Lukács e outros tiveram que atuar e produzir teoricamente um marxismo distante da disputa partidária, por mais que muitos deles buscassem atuar individualmente e isoladamente em movimentos sociais, como o caso de Sartre, por exemplo.
Um terceiro aspecto importante refere-se a parcial cooptação cultural pelas instituições universitárias burguesas de parcela importante desses autores. O marxismo passa a partir daqui a se institucionalizar como parte da lógica acadêmica, incorporando-se ao esquematismo “da configuração cultural total no interior” das sociedades capitalistas. Diga-se que esse fenômeno atingiu também as formações periféricas ocidentais do capitalismo, no caso brasileiro em particular, tanto a repressão dos anos da ditadura militar, como posteriormente o afastamento da intelectualidade em relação aos principais partidos de esquerda, estabeleceram um marxismo centralmente universitário, com baixa capacidade de interpretação da totalidade social e de intervenção militante, a despeito do histórico anterior da presença de intelectuais marxistas tanto militantes quanto formuladores expressivos, vale citar muito rapidamente os casos de Mario Pedrosa, Caio Prado Jr, Moniz Bandeira, Ruy Mauro Marini, Theotônio dos Santos, Florestan Fernandes, Vânia Bambirra, Leandro Konder, Nelson Werneck, Jacob Gorender e outros que estiveram presentes em diferentes organizações político-partidárias desde o Partido Comunista do Brasil a organizações como a Política Operária (POLOP).
Por fim, porém central, o marxismo ocidental “foi submetido a um censor histórico mais amplo: o abismo de quase cinquenta anos entre o pensamento socialista e o solo da revolução popular”. Este último aspecto nos parece chave para o entendimento mais recente do afastamento e menor reflexão do marxismo em relação aos movimentos de trabalhadores em suas diversas especificidades. Lênin já tinha observado que se por um lado “não há movimento revolucionário, sem teoria revolucionária”, por outro também chama atenção que “sem movimento de massas revolucionário, tampouco haverá teoria revolucionária”.
Essa dupla interação, muito típica das análises do próprio Marx nos evidenciam o quanto o afastamento social de uma certa intelectualidade do movimento de massas é deletério para o desenvolvimento de uma proposição adequada a interação social, porém uma quase inevitabilidade quando se observa os movimentos históricos dos últimos cinquenta anos no capitalismo central e mesmo de forma distinta em formas do capitalismo periférico como o brasileiro.
A diferença histórica entre “marxismo clássico” e o “marxismo ocidental” estaria também condicionado pelos campos teóricos de cada vertente. No primeiro caso a maior preocupação com a interpretação política e econômica do capitalismo e, no segundo um forte retorno a análise de método, centrado em diferentes versões filosóficas, não somente hegeliana, mas também Schelling, Kant e Espinosa. Como bem tratam ambos os autores aqui resenhados, as configurações de inovações e contribuições não cessaram de uma forma para outra do marxismo, conformando um amplo espectro cultural fundamental para o tratamento da modernidade capitalista, mesmo que as condições de enfrentamento social tenham se alterado profundamente, principalmente nas nações do imperialismo central, seja pelos fatores de hegemonia, tratados por Gramsci, seja pelos aspectos ideológicos, tratados por Althusser, seja ainda pelos fatores de coexistência entre sociedades periféricas e centrais, como observado pelos autores da teoria da dependência latino-americana.
Os ecos do “marxismo ocidental”, portanto, chegam expressivamente até a periferia brasileira, sendo que a fala bastante incoerente da militante política que repete o rap famoso reflete bem o afastamento do marxismo das lutas sociais e as contradições do encastelamento na forma de somente uma disciplina acadêmica. No caso brasileiro historicamente nunca tivemos uma cultura teórica marxista presente nas maiores formações político-partidárias, porém isso parece que se agravou muito nos últimos anos e romper, tanto aproximando as novas gerações das formulações clássicas do marxismo, quanto definindo uma agenda de interpretação do capitalismo brasileiro a partir dos pressupostos teóricos do marxismo são fundamentais, mas isso somente ocorrerá se estiver coadunado com a construção de um movimento de massas anticapitalista e com energias radicais suficientes que impulsionem o desenvolvimento de uma teoria de superação do atual sistema de exploração e desigualdade social humanas, tarefas que ainda requerem organização partidária e ampla mobilização social.
*José Raimundo Trindade é professor do Instituto de Ciências Sociais Aplicadas da UFPA. Autor, entre outros livros, de Agenda de debates e desafios teóricos: a trajetória da dependência (Pakatatu).
Referências
Perry Anderson. Considerações sobre o marxismo ocidental; Nas trilhas do materialismo histórico. São Paulo: Boitempo, 2018.
Domenico Losurdo. O marxismo ocidental. São Paulo: Boitempo, 2018.