Por FLÁVIO AGUIAR*
Em Berlim a letra “Z” está sob suspeita
Libertas
Quæ sera tamen.
Li, com certo espanto, mas não muito,
Dados os tempos em que vivemos,
Que em Berlim a letra “Z” está sob suspeita,
Por ser usada pelos tanques russos
Como identificação na guerra aqui por perto.
Ela pode ser usada, mas com moderação,
Dependendo da circunstância e da ocasião,
Sempre a critério da autoridade
Que, dizem, saberá usá-lo com precisão.
Minha companheira Zinka Ziebell
Ficou preocupada, e eu também:
Serão dois “Zês” no nome um excesso,
Um sinal de exagero na expressão,
Uma herança maldita dos ancestrais
Que pode levá-la até à prisão?
Com tais receios na mente
Passei uma noite febril e fremente
Com sonhos no varejo e no atacado.
Num deles, com horror eu via
O alfabeto deitado em mesa de cirurgia
Como naquele célebre quadro
Da Lição de Anatomia,
Sendo esquartejado por sérios doutores,
Sem gargantilha, mas de colarinho branco,
Embora alguns envergassem a toga
Quais fossem juízes de laço e tesoura.
Quis correr às letras, em seu socorro,
Mas me detive ao ouvir um dos doutos
Pronunciar com ar grave e soturno:
“Comecemos proibindo ‘A marca do Zorro’”,
Ao que outro, pondo sobre o Z seu coturno,
Respondeu: “é boa medida, e também,
Ponhamos em nossa agenda
Proibir ‘O prisioneiro de Zenda’”.
O pé sobre o “Z” causou grande tumulto
Sobretudo nas letras próximas:
Tremeram o “Y”, o “X”, com razão,
Pois logo foram levadas de roldão
Na implacável razzia
E sem qualquer culpa formada:
Seu dolo era serem letras, mais nada.
Uma se foi por ser o “X” da questão,
E a outra por ser a letra inicial
De nomes como Yuri, Yashin,
Levando juntos no mesmo abraço
Cosmonauta e goleiro, submetidos,
No pescoço, pelo mesmo baraço.
E logo outro douto sugeriu:
“Cortemos também o ‘V’ de Vladimir,
E o ‘P’ de Putin não há de sobrar!
E mais adiante sugeriu um mais afoito:
“Voltemos aos velhos tempos,
Cortemos também o ‘L’ de Lênin
E o “T” de Trotsky, o “M” de Maiakovsky,
O ‘D’ de Dostoievsky e o ‘Ch’ de Chostakovitch”.
Distante, a tudo observava o “A” arrogante,
Pensando: “É tudo muito longe…
Afinal, trata-se do “Z”, dos confins do alfabeto…”
Mas logo um novo censor, com ar muito matreiro
Foi dizendo, com jeito de brasileiro frajola:
“Mandemos pro balaio o ‘B’ de Brizola,
Político esperto que nem saracura,
‘B’ que também é de Baiano, antigo apelido
De Luiz Inácio da Silva, o Lula”.
E assim foram caindo, uma a uma,
Todas as letras, sem exceção…
Não escapou de tal sanha desabrida
Nem mesmo o “Z” de “orgasmo”
Retalhado por censor de incontido
Esgar, com satisfeito espasmo.
No imenso alarido de desolação
O “H” ficou mudo, pensando assim escapar.
Mas a fuga foi só uma vã ilusão
Pois logo um censor o agarrou pelas aspas
Vociferando: “estás em Hiroshima,
Em Holocausto, e nos muitos massacres do Hebron,
Coisas que devemos banir da lembrança,
Antes que com sua dolorosa presença
Nas mentes façam muita lambança”.
Já estava tudo demais de quieto
Quando surgiu uma letra muito apressada:
Era o “U” querendo fazer uma delação premiada!
Foi acolhido por um censor togado
Que declarou, sem se fazer de rogado,
Com ar de sibilino monge:
“Eu sou o conhecido juiz Conge,
Com meu brilhante assistente
Espevitado e magro como um anzol,
O famoso doutor Daranhol.
Dize-me o que queres delatar
E teu caso vou então ajuizar”.
“Pois veja”, disse o “U” todo trêmulo,
“Sou o U de Ucrânia e para merecer vosso perdão
Denuncio meu êmulo co-irmão,
O “U” da palavra Rússia: este sim
Deve ser banido por subversivo”.
Depois de rápida conferência
Com seu preclaro assistente,
Manifestou-se assim o douto censor,
Demonstrando ajuizado crivo:
“Ide em paz, U de Ucrânia;
Acolhemos tua denúncia
Pois nesta palavra és
De inocente pronúncia.
De resto, se condenamos o ‘Z’ dos tanques,
Saudamos o Z de Zelensky, nosso herói da ocasião;
Vós sois, como o ditado prega,
As nobres exceções
Que confirmam a regra!”
Mas não parou por aí o massacre
Perpetrado por aquela gente
Vetustamente vestida como um Quacre.
E assim foram banidos
De todos os livros de Geografia
Lugares como Zanzibar, Zâmbia, Zimbábue,
E como se fossem bandidos
Foram riscados dos livros de Filosofia
Gente como Zoroastro e Zaratustra,
E ainda que fossem ariscas
Todas as zebras perderam suas riscas
No livro de Zoologia, que passou a chamar-se
Tão somente Oologia.
A “Zabumba” saiu da Música,
E como na antiga lenda
Zumbi preferiu jogar-se de um penhasco
A ver-se de novo escravizado
Por aqueles senhores de ódio e asco.
Em meu sonho eu já estava atarantado
Com aquela loucura desatada
Quando vi um pouco mais adiante
Outra mesa de cirurgia,
Em que idêntica operação se fazia,
Retalhando e matando outro alfabeto.
Embora estranho para mim
Reconheceu meu conhecimento empírico
Que tratava-se do alfabeto cirílico,
E sem conhecer a língua que usavam
Minha consciência já tão aflita
Pode ver que os outros censores
Falavam com sotaque moscovita…
“Guerra é guerra”, pensei
Com meus tristes botões,
“Trata-se de entronizar a insânia
E de banir com feroz impaciência
Toda forma de inteligência,
Reduzindo a um branco e preto iracundo
Toda a riqueza colorida do mundo”.
Notei que os alfabetos assim destroçados
Pegavam fogo e deles as cinzas juntas caíam
Em jazigo comum depressa cavado.
Aproximei-me do buraco maldito
E vi que naquele borralho improvisado
Algumas brasas ainda bruxuleavam
Depois de passarem por tais Inquisições desalmadas.
Vi, com renovada esperança,
Que ali ardiam, como almas penadas,
O “Z” em “Poesia” escondido,
O “Z” de “Ousadia” disfarçado,
E também o “Z” de Zênite declarado.
E dali elas e outras letras foram se elevando
Por um celeste Zimbório protegidas,
Fugindo das garras dos perseguidores
E no meio delas reluzia
A palavra Liberdade – ainda que tardia.
*Flávio Aguiar, jornalista e escritor, é professor aposentado de literatura brasileira na USP. Autor, entre outros livros, de Crônicas do mundo ao revés (Boitempo).