A (des)graça da cultura

Dora Longo Bahia. Escalpo Paulista, 2005
 Acrílica sobre parede 210 x 240 cm (aprox.)
Whatsapp
Facebook
Twitter
Instagram
Telegram

Por LUIZ ROBERTO ALVES*

A cultura ainda pode nos arrancar das mãos do horror que nos fustiga

O tempo do inominável capitão do Planalto trouxe a desgraça para as culturas brasileiras. Não somente desmantelou as políticas públicas voltadas ao fazer cultural como direcionou a imagem da cultura para a anticultura, isto é, a sordidez das armas e a exaltação do desvalor que nega a autonomia e a liberdade, especialmente da juventude. A “incultura” da morte durante toda a pandemia e as corrupções nos equipamentos da educação pública sinalizaram todo o significado desse maldito governo. O Estado brasileiro, neste tempo, não somente deixa de cumprir suas obrigações de investimento na cultura plural e diversa do Brasil como a nega em seus valores e exalta falsidades entendidas como cultura. Vide as motociatas eleitoreiras, medonhas e bizarras.

Ocorre que a cultura – entendida como valores, tradições, dinâmica educacional e criações estéticas – é o termômetro, o diapasão e o sismógrafo que mede as situações vividas pelo povo, ainda que inconscientemente. Pelo fazer cultural-educativo, ou pelo seu apagamento e pela sua negação, se toma o ´pulso da dor e da febre (físicas, políticas e culturais) do povo brasileiro. Do mesmo modo, pelo afinamento dos sons e dos tons timbrados pela sociedade se reconhece sua voz e sua orquestração, inclusive quando mal-arranjadas; igualmente, e mais dramático, quando a cultura mede terremotos de pensamento e ação, evidenciados tanto no veto do capitão aos investimentos na cultura recentemente aprovados no congresso nacional quanto no genocídio físico-cultural que os amigos e correligionários do presidente perpetram em toda a Amazónia contra os povos das florestas. Do pouco que a legislatura atual faz pela cultura e dos minguados direitos das populações indígenas, eis que nada sobra nas mãos do brutal governante.

Dois fenômenos estruturalmente iguais revelam todo o horror que vivemos: o ataque à queima-roupa da administração federal e seus asseclas contra todas as obras de valor cultural do país e o ataque de policiais baratinados contra meninos e meninas que no dia 5 pp. realizavam uma batalha de rimas na praça do bairro Manoel Correia em Cabo Frio. Negar investimentos, incentivar boicotes e ofensas contra as culturas eruditas e populares e criar abundantes expressões anticulturais são equivalentes a destruir uma tarde de poesia no bairro pobre da cidade. De um lado o todo; de outro, sua parte solidária, sem a qual a comunicação popular deixa de existir. Por meio de uma emissão de Twitter do advogado Ariel de Castro Alves, conhece-se uma notícia da Ponte Jornalismo, segundo a qual PMs acabaram com a expressão poética da juventude na bala, com tiros dirigidos aos equipamentos e aos próprios poetas.

Nada mais simbólico: tentar liquidar, pela bala e pela inanição econômica com o fazer poético, narrativo, teatral, musical e pictórico, fenômeno já sinalizado em muitos lugares do mundo e, especialmente, na Alemanha de Adolf Hitler, na Itália de Benito Mussolini e na Espanha de Francisco Franco. Tais fatos significam preparo de golpe de estado, pois estimulam a sensação de terra arrasada. Lembremo-nos de Garcia Lorca, dos partigiani da Itália e, na Alemanha, a totalidade do horror. Ou será que somos isentos do pior a priori?  A liberdade bolsonarista não é mais do que ter as mãos livres para sufocar e esganar o outro e a outra. Esse tipo de liberdade poderia ter melhor nome: o estupro dos direitos. Por isso, todo bolsonarista tem de odiar Paulo Freire, o doce educador que se fez arauto da liberdade, aquela liberdade que o capitão e seus amigos nem de longe entenderiam.

Conhecemos no Brasil situações de triste memória quando a capoeira, a recitação poética das feiras e o bom partido alto dos morros foram escorraçados por milicianos, policiais, capatazes e delegados das instituições e organizações do mundo coronelista das pequenas e grandes cidades do Brasil no século passado. Noutros casos, buscou-se cooptar artistas para missões falsamente “patrióticas”.

No entanto, tais investidas do poder foram a contraparte do avanço estético popular, pois os criadores e as criadoras de cultura retornaram sempre aos seus lugares de vida e ação, se organizaram para o exercício dos seus direitos e nos encantaram com seus cantos, suas festas, suas encenações, suas rodas de samba e outras formas criadoras de convivência e amizade. Ali se concretizava o mundo poético da liberdade, que o bolsonarismo jamais viu ou sentiu.

Já chegamos a pensar que, depois de três anos de prática exclusiva de males contra o Brasil, o capitão viesse a ter em sua tentativa de reeleição somente os votos da família e de alguns milicianos. Mas nos enganamos. Há um número considerável de conterrâneos que amargam ódios sem causa, nós entalados na garganta sem um autor, horror à alegria sem história, peso na alma sem fardo real e, pior de tudo, iludidos do salvacionismo, da magia e do mito salvador, que não fizeram outra coisa que levar grupos e multidões à desgraça em muitíssimos lugares do mundo. Tais movimentos foram a anti-cultura do evangelho, visto que este, imerso nos mundos aramaico, grego e romano, saiu-se livre dos grilhões do tempo para a liberdade da cidadania cristã. O capitão do Planalto e sua trupe também nada entendem disso, nem em sonhos.

Mário de Andrade, líder genial do modernismo, entendeu bem que a cultura, a arte e a alegria vicejam nos pontos de luz de tempos sombrios. As culturas só precisam, quando acossadas, de pouco espaço e um tempinho para se constituir em vozes, sons, cenas, pinturas, narrativas e muita expressão de desejos, caminhos e soluções. Não foi diferente o caminho do samba, da capoeira, do teatro popular, das narrativas sertanejas e de tudo o mais que as mãos obstaculizadas criaram qual milagre. Aleijadinho é símbolo maior. Os mestres e as mestras que o seguiram em todas as artes também simbolizaram o país que parecia não ter forças para ser mais do que colônia e império e, não obstante, hoje afirma a necessária democracia.

Os bons administradores fazem suas gestões via cultura-educação. Os maus administradores fazem seus desmandos via economia mal interpretada. As irmãs da história humana, cultura-educação, ainda podem nos arrancar das mãos do horror que nos fustiga. Espantemos o mal pela cultura!

*Luiz Roberto Alves é professor sênior da Escola de Comunicações e Artes da USP.

 

Veja neste link todos artigos de

AUTORES

TEMAS

10 MAIS LIDOS NOS ÚLTIMOS 7 DIAS

Lista aleatória de 160 entre mais de 1.900 autores.
Marcus Ianoni Luiz Carlos Bresser-Pereira Marcelo Guimarães Lima Luiz Werneck Vianna Paulo Martins Osvaldo Coggiola Fábio Konder Comparato Marcelo Módolo Fernão Pessoa Ramos Ari Marcelo Solon Juarez Guimarães Annateresa Fabris Boaventura de Sousa Santos André Singer João Lanari Bo José Geraldo Couto Walnice Nogueira Galvão Kátia Gerab Baggio Igor Felippe Santos João Adolfo Hansen Manchetômetro Luiz Eduardo Soares Chico Alencar Elias Jabbour Rafael R. Ioris Antonio Martins Renato Dagnino Eliziário Andrade Rubens Pinto Lyra Jorge Branco Rodrigo de Faria José Raimundo Trindade João Sette Whitaker Ferreira Matheus Silveira de Souza Alexandre de Freitas Barbosa Flávio R. Kothe Eleonora Albano Michel Goulart da Silva José Machado Moita Neto Paulo Sérgio Pinheiro Benicio Viero Schmidt Ricardo Antunes Dennis Oliveira Ricardo Musse Jean Marc Von Der Weid Alexandre de Oliveira Torres Carrasco Tadeu Valadares Henri Acselrad Ricardo Fabbrini Atilio A. Boron João Carlos Salles Fernando Nogueira da Costa Armando Boito José Dirceu Airton Paschoa Luiz Marques João Carlos Loebens Eduardo Borges Paulo Fernandes Silveira Paulo Capel Narvai Carla Teixeira Caio Bugiato Daniel Brazil Luiz Bernardo Pericás Anselm Jappe Gerson Almeida Leonardo Sacramento Leda Maria Paulani Henry Burnett Michael Löwy Marilena Chauí Francisco Pereira de Farias Ronald León Núñez Manuel Domingos Neto Bento Prado Jr. Chico Whitaker Alexandre Aragão de Albuquerque Tales Ab'Sáber Andrés del Río José Micaelson Lacerda Morais João Paulo Ayub Fonseca Samuel Kilsztajn Ronaldo Tadeu de Souza Yuri Martins-Fontes Alexandre de Lima Castro Tranjan Flávio Aguiar Vladimir Safatle Bruno Machado Andrew Korybko Priscila Figueiredo Everaldo de Oliveira Andrade Sandra Bitencourt Ladislau Dowbor Vinício Carrilho Martinez Carlos Tautz Valerio Arcary Celso Favaretto Marcos Silva Mário Maestri Berenice Bento Luís Fernando Vitagliano Tarso Genro Marcos Aurélio da Silva Bruno Fabricio Alcebino da Silva Milton Pinheiro José Luís Fiori Maria Rita Kehl Alysson Leandro Mascaro Celso Frederico Luiz Roberto Alves Mariarosaria Fabris Daniel Costa Eugênio Trivinho Luiz Renato Martins Marjorie C. Marona Paulo Nogueira Batista Jr Leonardo Boff Otaviano Helene Lucas Fiaschetti Estevez Sergio Amadeu da Silveira Antônio Sales Rios Neto Marilia Pacheco Fiorillo Afrânio Catani Dênis de Moraes Jean Pierre Chauvin Leonardo Avritzer Remy José Fontana Érico Andrade José Costa Júnior Gilberto Maringoni Daniel Afonso da Silva Gabriel Cohn Ricardo Abramovay Bernardo Ricupero Slavoj Žižek Julian Rodrigues Lincoln Secco Vanderlei Tenório Eleutério F. S. Prado Gilberto Lopes Thomas Piketty Luciano Nascimento Salem Nasser Jorge Luiz Souto Maior André Márcio Neves Soares Ronald Rocha Heraldo Campos Denilson Cordeiro Claudio Katz Eugênio Bucci Francisco Fernandes Ladeira Liszt Vieira João Feres Júnior Lorenzo Vitral Luis Felipe Miguel Francisco de Oliveira Barros Júnior Valerio Arcary Plínio de Arruda Sampaio Jr. Antonino Infranca Michael Roberts

NOVAS PUBLICAÇÕES