O misticismo em Torto Arado

Anna Boghiguian, Os comerciantes de sal, 2015
Whatsapp
Facebook
Twitter
Instagram
Telegram

Por DANIEL BRAZIL*

Considerações sobre o romance de Itamar Vieira Junior

Este breve comentário sobre um dos mais bem-sucedidos romances brasileiros contemporâneos é mais uma especulação sobre alternativas ficcionais do que uma crítica ao minucioso trabalho do autor, Itamar Vieira Junior. Alguns leitores hão de achar que faço revelações sobre o final, o que não é exatamente verdade. Espero que meus devaneios sirvam para aguçar a curiosidade, jamais para desanimar a leitura. Assim como também anseio que todo o mistério e encanto da palavra revelação nunca possa ser substituída pelo vulgar e exótico spoiler.

As qualidades do belo romance Torto Arado já foram suficientemente enaltecidas nos meios literários. Premiado no Brasil e em Portugal, recoloca em discussão o Brasil rural, a população negra espoliada de seus direitos básicos, a exploração do trabalho no campo, a omissão da Justiça e a ausência de políticas públicas em meados do século XX. Sem colocar datas, o autor soube, de forma muito hábil, retratar uma situação que ainda perdura, garantindo sua atualidade. Geógrafo de profissão, e funcionário do Incra, conviveu por muitos anos com a questão agrária, e conhece de perto o mundo que retrata. Ou recria.

O ponto de partida é promissor. Duas irmãs, descendentes de escravos, nascidas na roça, passam por uma experiência (um acidente?), ainda meninas, que vai marcar suas vidas. Bibiana é a narradora da primeira parte, e desenha o cenário, coloca dados históricos e apresenta os principais personagens. O início é magnífico, como realização literária. Uma escrita plena de cores, sabores e sentidos, que evoca e revitaliza autores ligados ao regionalismo, como Graciliano e Rachel de Queiroz.

O livro é dividido em três partes. A narradora da segunda parte é a outra irmã, Belonísia, e aqui há uma dolorida ironia, uma vez que ela não tem voz fisiológica. Os contornos dos personagens ganham nitidez e também nuances. Ambas são filhas de Zeca Chapéu Grande, um líder comunitário e espiritual que incorpora entidades nos jarês, rituais de origem africana com influências indígenas e espíritas.

Podemos dizer que com estes recursos o autor se afasta do realismo cru do regionalismo e se aproxima de autores como Jorge Amado e João Ubaldo Ribeiro, mestres baianos na mestiçagem entre gêneros. E também do chamado realismo mágico latino americano, que marcou de forma profunda a formação de muitos escritores contemporâneos.

Este forte confronto, nunca resolvido, entre o misticismo e a realidade, o subjetivo e o objetivo, a fé e a materialidade nas lutas sociais, é o grande nó da terceira parte. A voz narrativa é entregue a uma entidade, Santa Rita Pescadeira. E o momento culminante, em termos dramáticos, onde se misturam sentimentos de justiça e vingança, é determinado por um fator sobrenatural.

Há criação nisso tudo, há certa poesia. Fazendo uma analogia, um dos momentos mais memoráveis do romance Pastores da Noite, de Jorge Amado, se dá quando uma entidade do candomblé baixa num padre, dentro de uma igreja em Salvador. Alguns podem fazer leituras psicanalíticas destes momentos de transe, em que um personagem toma decisões cruciais inspirado, conscientemente ou não, por seus fantasmas, suas lembranças ou suas crenças. Para ficar no cânone ocidental, Shakespeare utilizou bem esse estratagema em Hamlet e em outras obras.

O problema que a terceira parte de Torto Arado nos coloca é até onde dependemos de soluções externas, místicas ou religiosas para resolvermos o problema material da questão agrária, da luta no campo, do reconhecimento de direitos do povo negro, dos indígenas, dos imigrantes. Um personagem bem terreno, Severo, surge desde o início. Ganha corpo na segunda parte, e torna-se fundamental no desenlace do enredo. Vai estudar na cidade, torna-se sindicalista, casa-se com Bibiana, e volta para a terra natal organizando os campesinos. Mas não será por suas mãos que a justiça será feita. Ele fará parte do que Frantz Fanon denominou de “condenados da terra”.

Está colocado aí um dos grandes dilemas do romance. Entre a fantasia e o enfrentamento da realidade, há uma larga correnteza de possibilidades artísticas. Se Itamar Vieira Junior mantivesse o desenlace dramático nos trilhos do realismo, receberia aplausos de alguns e críticas de outros. Os tradicionais defensores de classe, de gênero e de raça, torceriam o nariz.

E vice-versa. A opção por um final motivado pela força imemorial e inconsciente das tradições pode cativar alguns e atrair antipatias de outros. Num país dilacerado por um governo genocida, racista e destruidor do meio ambiente, é ingênuo crer que os deuses irão salvar os indígenas, os quilombolas, os desempregados, os sem teto e sem comida.  Ou mesmo que um deus semita tornado branco irá salvar a classe média, se ela continuar cordata e conivente.

Longa e próspera vida ao Torto Arado (nome extraído de um verso do arcadista Tomás Antonio Gonzaga, in Marília de Dirceu), por seus evidentes méritos estilísticos e sociológicos, apesar das ressalvas. Aguardemos com atenção as próximas obras do autor, que promete aprofundar e ampliar o tema. E que a epígrafe de Raduan Nassar citada no livro inspire a sua pena: “A terra, o trigo, o pão, a mesa, a família (a terra); existe neste ciclo, dizia o pai nos seus sermões, amor, trabalho, tempo”.

*Daniel Brazil é escritor, autor do romance Terno de Reis (Penalux), roteirista e diretor de TV, crítico musical e literário.

 

Referência


Itamar Vieira Júnior. Torto arado. São Paulo, Todavia, 2019, 264 págs.

Veja neste link todos artigos de

AUTORES

TEMAS

10 MAIS LIDOS NOS ÚLTIMOS 7 DIAS

Lista aleatória de 160 entre mais de 1.900 autores.
José Costa Júnior Manchetômetro Elias Jabbour Tadeu Valadares João Lanari Bo Jean Pierre Chauvin Luís Fernando Vitagliano Gerson Almeida Ronald Rocha Priscila Figueiredo Marjorie C. Marona Dênis de Moraes Juarez Guimarães Slavoj Žižek Osvaldo Coggiola Remy José Fontana Afrânio Catani Caio Bugiato Celso Favaretto João Paulo Ayub Fonseca Dennis Oliveira Ari Marcelo Solon Boaventura de Sousa Santos Carlos Tautz Denilson Cordeiro Gilberto Maringoni Luiz Roberto Alves Rafael R. Ioris Rubens Pinto Lyra Eugênio Bucci Carla Teixeira Érico Andrade Ricardo Antunes Sandra Bitencourt Paulo Martins Matheus Silveira de Souza Francisco Pereira de Farias Marcos Silva Julian Rodrigues Paulo Fernandes Silveira José Machado Moita Neto Luiz Werneck Vianna Valerio Arcary Alexandre Aragão de Albuquerque Renato Dagnino Luciano Nascimento Airton Paschoa Jorge Luiz Souto Maior Luis Felipe Miguel Luiz Marques Michel Goulart da Silva Alysson Leandro Mascaro Gilberto Lopes João Feres Júnior Luiz Bernardo Pericás Thomas Piketty Ladislau Dowbor Berenice Bento Francisco de Oliveira Barros Júnior Mário Maestri Atilio A. Boron Michael Löwy Chico Alencar Marcelo Guimarães Lima Marcos Aurélio da Silva Eleonora Albano Paulo Capel Narvai Alexandre de Lima Castro Tranjan Paulo Sérgio Pinheiro Tarso Genro Marilia Pacheco Fiorillo Alexandre de Freitas Barbosa Ricardo Abramovay Luiz Renato Martins Luiz Carlos Bresser-Pereira João Carlos Salles Jean Marc Von Der Weid Ricardo Fabbrini Igor Felippe Santos Anderson Alves Esteves Leda Maria Paulani Liszt Vieira Heraldo Campos José Micaelson Lacerda Morais Salem Nasser Rodrigo de Faria Andrés del Río Ronaldo Tadeu de Souza Manuel Domingos Neto Sergio Amadeu da Silveira Luiz Eduardo Soares Paulo Nogueira Batista Jr Flávio Aguiar Michael Roberts Fernando Nogueira da Costa Annateresa Fabris Samuel Kilsztajn Eliziário Andrade Vladimir Safatle Leonardo Avritzer Bento Prado Jr. Gabriel Cohn Ricardo Musse Fernão Pessoa Ramos Leonardo Boff João Adolfo Hansen Andrew Korybko Yuri Martins-Fontes Chico Whitaker André Singer Henri Acselrad Otaviano Helene Lucas Fiaschetti Estevez Plínio de Arruda Sampaio Jr. Antônio Sales Rios Neto Lorenzo Vitral Ronald León Núñez Daniel Brazil Marilena Chauí Milton Pinheiro Armando Boito Bruno Machado Kátia Gerab Baggio Daniel Costa Bernardo Ricupero Alexandre de Oliveira Torres Carrasco Daniel Afonso da Silva João Sette Whitaker Ferreira André Márcio Neves Soares Lincoln Secco Eugênio Trivinho Antonino Infranca Antonio Martins Bruno Fabricio Alcebino da Silva Jorge Branco Claudio Katz José Raimundo Trindade Eduardo Borges Eleutério F. S. Prado Francisco Fernandes Ladeira Anselm Jappe Walnice Nogueira Galvão Everaldo de Oliveira Andrade Vinício Carrilho Martinez Tales Ab'Sáber Celso Frederico Maria Rita Kehl João Carlos Loebens Marcus Ianoni Flávio R. Kothe Mariarosaria Fabris Benicio Viero Schmidt José Dirceu Vanderlei Tenório Leonardo Sacramento Marcelo Módolo Fábio Konder Comparato Henry Burnett José Geraldo Couto José Luís Fiori

NOVAS PUBLICAÇÕES