Por WALNICE NOGUEIRA GALVÃO*
Considerações sobre quatro livros que ampliam nossa compreensão do modernismo
A incongruência da conjunção entre boi e telhado encantou os franceses, que nela viram a prova de que o povo brasileiro era surrealista por natureza. Refletiu-se até, surpreendentemente, no nome de um famosíssimo cabaré de Paris, Le Boeuf sur le Toît, que vigorou no seio da boêmia artística, como ponto de encontro das vanguardas. E tudo porque o compositor Darius Milhaud, como veremos a seguir, encantou-se com o título de uma canção brasileira, assim nomeando uma de suas suítes.
A conjunção incongruente era um princípio que os surrealistas franceses empunhavam como bandeira, com base na célebre frase de Lautréamont: “Belo como o encontro fortuito, sobre uma mesa de dissecção, de uma máquina de costura e um guarda-chuva”. Salvador Dalí é autor de uma tela em que uma máquina de costura tem posição central, enquanto guarda-chuvas abertos esvoaçam ao redor.
Por isso, apropriaram-se da frase e lhe deram destinações variadas, como mostram dois livros de Manuel Aranha Corrêa do Lago (org.): O boi no telhado – Darius Milhaud e a música brasileira no modernismo francês e Uma outra missão francesa (1917-1918) – Paul Claudel e Darius Milhaud no Brasil.
Tudo tem origem na conjunção, esta feliz e não incongruente, da presença de dois artistas na condução dos negócios estrangeiros da França no Brasil: um poeta como embaixador, Paul Claudel, e um compositor, Darius Milhaud, futuro membro do Groupe des Six, como seu adido.
A peça de Darius Milhaud é uma colagem das partituras de 20 outras peças: em geral canções populares brasileiras, mas com duas inserções de música erudita. O organizador fez o levantamento e fornece a lista: lá estão Ernesto Nazareth e Marcelo Tupinambá, aos quais o compositor muito admirava. Costurando as 20 peças há um tema musical da autoria de Darius Milhaud, que chamou o conjunto de “rondó”.
Uma das 20 canções é o “tango” O boi no telhado, da autoria de Zé Boiadeiro, pseudônimo de José Monteiro, sucesso do carnaval de 1918. Ao que parece, não tinha letra, portanto não dá para deduzir de onde veio o título: da cabeça do compositor, do folclore, de uma vetusta cantiga de ninar?
A capa da partitura original traz um boi, vestido de terno xadrez, sentado sobre o telhado de uma casa, examinando outra partitura que segura nas patas dianteiras com um ar muito compenetrado. Quanto à indicação de “tango”, nada a estranhar. Claro que tango não era, mas à época, pouco antes que o samba fizesse sua sensacional irrupção como gênero hegemônico da música brasileira e ícone da identidade nacional, chamavam de tango qualquer canção. Até o grande Ernesto Nazareth compôs muitos deles, pois só não queria que os chamassem de “maxixe”, devido ao estigma que sinalizava esta dança de negros.
O autor desses dois livros publicou ainda um outro sobre o Círculo Veloso-Guerra do Rio de Janeiro, em cujo salão da belle époque já se fazia música de vanguarda antes da Semana de 22. Ali se tocava (pasmem!), não só Debussy e Ravel, mas Stravinski transcrito para piano.
Por aproximação com os três belos volumes, vem à baila o trabalho de Carlos Augusto Calil sobre Mário de Andrade no Departamento de Cultura. Notável iconografia, textos importantes, fotos e documentos, afora estudo introdutório do organizador. Carlos Augusto Calil já nos habituara a livros com edição suntuosa, caprichada, como aqueles em que reeditou e estudou outro modernista, Paulo Prado, autor de Retrato do Brasil e de Paulística. Também reeditou o livro de Alexandre Eulálio sobre Blaise Cendrars no Brasil. Em todos eles encontramos alta qualidade editorial, beleza, pesquisa iconográfica aprofundada. Traços que, para nossa sorte, reencontramos neste que leva o adequado título de Sou um departamento de cultura. São todos modelos de edição, inclusive na opulência da apresentação material, de que Carlos Augusto Calil não abre mão.
Com essas riquíssimas reedições revistas e ampliadas de nossos clássicos do modernismo, Carlos Augusto Calil já entrou para o panteão dos autores incontornáveis no estudo dessa fase de nossa literatura e artes. São imbatíveis na pesquisa. Mas também no bom gosto editorial.
Todos esses livros vão ampliando extraordinariamente nossa compreensão do modernismo.
*Walnice Nogueira Galvão é Professora Emérita da FFLCH da USP. Autora, entre outros livros, de Lendo e relendo (Sesc\Ouro sobre Azul).
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