Por LUIS FERNANDO VITAGLIANO*
O PT deve enfrentar seus dilemas, baseado em diretrizes e posicionamentos próprios
Certamente as eleições de 2022 foram as mais dramáticas do período da Nova República, não só pela diferença apertada de votos (pouco mais de 2 milhões), como pelas dificuldades encontradas ao longo da campanha e também pelo constante questionamento da legitimidade do pleito, do sistema eleitoral e dos poderes constituídos por parte do partido que ocupava o poder Executivo; além dos atos abusivos nas ruas, nas redes sociais e nas instituições da República.
A partir de uma ampla base de apoio que aos poucos se configurou no que podemos chamar de “Frente Ampla”, Lula se tornou a figura orbital do processo. O consenso se deu graças ao reconhecimento de era a única liderança política que teria a resiliência necessária para enfrentar essas eleições e se impor ao arsenal malicioso, perverso e antidemocrático da campanha da extrema direita.
Há de se reconhecer que Lula passa a ser cortejado como uma figura suprapartidária. Mas, chegou ao poder para seu terceiro mandato a partir do acumulo histórico da esquerda e das desastrosas opções políticas da direita desde 2012. Independentemente disso, abriu-se a oportunidade histórica de um governo de frente ampla, com apoios de setores diversos e contraditórios das organizações empresariais, agro e sociais. A expectativa, inclusive interna, é de que as forças que compuseram as alianças eleitorais permaneçam em negociação no próprio governo.
Essa geringonça muda consideravelmente a relação entre governo e forças políticas, principalmente para as esquerdas. Entendemos também que haverá mudanças nas relações entre partidos e governo, alterando a configuração da direita ou da centro-direita. Por exemplo, partidos com ampla representação institucional na Nova República, como PSDB e MDB, que antes ocupavam lugar privilegiado no parlamento, foram suplantados pela extrema direita.
Ao contrário, o PT institucionalmente avançou. O PT tem quatro governadores (é o partido com mais governadores eleitos ao lado do União Brasil), cresceu em deputados no Congresso, elegeu pela quinta vez um representante do seu partido a presidência da República – feito inédito. Mas, essas vitórias não podem anuviar o fato de que estamos perdendo espaço na disputa sobre as perspectivas da sociedade civil.
Nesse contexto, o PT deve enfrentar também seus dilemas, baseado em diretrizes e posicionamentos próprios. Considerando a contradição de que vencemos as eleições, mas tivemos derrotas no debate da sociedade. E passa a ser urgente se reposicionar e até mesmo recuperar algumas das estratégias que tinham lugar na disputa social.
Essas eleições distorceram conceitos importantes para nós. Democracia não pode ser entendida como o governo da maioria sobre a minoria. Justiça não pode ser usada como a opressão das armas. Socialismo não pode ser entendido como o assalto a propriedade privada. Liberdade não pode ser confundida com liberalismo. Trabalho não pode ser entendido como empreendedorismo. Empreendedorismo não pode ser associado a precarização.
Chamou bastante atenção o último debate presidencial do primeiro turno, na Rede Globo de televisão. Ali estavam apenas representantes da extrema direita como o próprio presidente/candidato, o falso padre e a candidata do União Brasil Soraya Thronicke. Além de Felipe D’Avila com seu discurso neoliberal e Ciro Gomes que o mais perto que apresentou de uma pauta progressista foi a renegociação da dívida dos pobres junto ao SPC. Não houve críticas ao capitalismo, a um sistema econômico que durante a maior crise de saúde vivida há pouco menos de um ano, aumentou o número de milionários e bilionários ao tempo em que também cresceu substancialmente o numero de miseráveis.
Durante a pandemia do coronavírus aumentou a desigualdade no mundo e os governos foram incapazes de fazer frente a concentração de riqueza. Sequer é possível dizer que nessas eleições houve uma defesa efetiva do socialismo, que foi jogada na lata do lixo por youtubers ignorantes e gente sem a menor noção do que o termo significa. Demonização de Marx, de Paulo Freire e do legado democrata civilizatório. A ausência de contrapontos tornou a ofensiva dos raivosos da antipolítica um componente de avanço do fascismo no Brasil.
Parte do PT está disputando e ganhando eleições há muito tempo, e esse flanco não pode ser incompatível com o debate e a disputa na sociedade. Conquistamos avanços sociais inegáveis que precisavam de sustentação intelectual e debate, mas agora é preciso dar uma resposta a disputa ideológica que se lançou na sociedade. Uma disputa que, inclusive coloca a intolerância religiosa entre as questões mais importantes do momento.
Ainda reverbera sem resposta o enfático discurso de Mano Brown na campanha de Fernando Haddad de 2018: “tem uma multidão que não está aqui e que precisa ser conquistada”. Conquistar votos não é conquistar visões de mundo, nem sequer construir solidariedade entre as pessoas. Conquistar votos é peça de marketing que se aproveita de movimentos já marcados na sociedade. Também precisamos disputar as visões de mundo, enfrentar a ideologia do fascismo.
Durante os quase 16 anos de mandatos de Lula e Dilma, o partido foi diversas vezes convidado a não atrapalhar o governo. Depois da ascensão da extrema direita, é a vez do partido dizer que o governo não deve atrapalhar sua disputa. Uma disputa que se dará na sociedade a respeito do que queremos para o futuro. Esse governo é o governo da reconstrução, da retomada da orientação republicana do Estado, do reconhecimento das instituições, dos seus papeis e, principalmente, dos seus limites.
Caberá aos mandatos ao qual o partido tem direito dar suporte a esse governo e disputar internamente sua direção. Mas, em outra frente desligada disso, a orientação do partido deve conduzir uma disputa na base da sociedade a respeito do país que queremos, considerando o fato de que o Brasil passa por uma mudança nas suas formas de interpretar a política e trabalhar para que o governo não o atrapalhe nesse processo que será decisivo para sua manutenção enquanto força política.
*Luís Fernando Vitagliano é cientista político e professor universitário.
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