Por ALMIR MEGALI NETO & MARCELO ANDRADE CATTONI DE OLIVEIRA*
Considerações sobre um artigo recente de Paulo Sérgio Pinheiro
Paulo Sérgio Pinheiro publicou, em 8 de dezembro de 2022, no site A Terra é Redonda o artigo “A democracia militante”. Nele, Paulo Sérgio Pinheiro destaca a necessidade de a sociedade e o Estado brasileiro definirem como a militância em defesa da democracia poderá ser exercida após quatro anos de pregação e práticas neofascistas.
Uma reflexão, portanto, extremamente importante e pertinente. E, por isso, gostaríamos de tecer algumas considerações, a modo de contribuição e de diálogo.
Paulo Sérgio Pinheiro, para tratar do tema, inicia sua argumentação recorrendo à obra de Karl Loewenstein, jurista alemão de ascendência judia que se exilou nos Estados Unidos após a ascensão do nazismo. Todavia, o primeiro trabalho de Karl Loewenstein ali citado não é o famoso artigo, de 1937, dividido em duas partes e publicado pela Revista da Associação Estadunidense de Ciência Política,[i] intitulado “Militant Democracy and Fundamental Rights”.[ii] Mas “Brazil under Vargas”,[iii] um longo relatório encomendado pelo Governo dos Estados Unidos sobre a situação política do Brasil, especialmente em face da Segunda Guerra Mundial.
Apoiando-se nas conclusões de Karl Loewenstein, Paulo Sérgio Pinheiro classifica o governo Vargas como uma “ditadura autoritária”. Interessante, nesse ponto, seria considerar que a Carta de 1937 estaria na origem daquele tipo de constituição a que Karl Loewenstein chamará de “semântica”, a partir de 1951 e de 1952, por exatamente subverter o próprio sentido garantista de constituição.[iv]
Paulo Sérgio Pinheiro também cita a fala do cientista político argentino Juan Linz, numa palestra proferida na Universidade de Campinas, no ano de 1975, na qual Juan Linz teria classificado a ditadura militar de 1964 como um “regime autoritário”. Não há nenhuma alusão, entretanto, a um importante livro de Karl Loewenstein, “Political Reconstruction”, já de 1946.[v] E, em especial, nenhuma indicação quanto ao que o próprio Karl Loewenstein escreveu sobre o Brasil pós-1964, a influência de um presidencialismo autoritário, supostamente de matriz francesa, gaulista, como ele mesmo o chama (com todos os equívocos históricos sobre o Brasil, diga-se, por ele ali cometidos).[vi]
Não obstante, é a partir desse ponto que Paulo Sérgio Pinheiro faz referência ao importante artigo “Militant Democracyand Fundamental Rights”, de Karl Loewenstein, para destacar, de forma breve, o que seria o objetivo do autor alemão com o texto. Para ele, Loewenstein “examina de que modo a democracia constitucional é capaz de proteger as liberdades civis e políticas, por meio de limitações das instituições democráticas, para conter o fascismo”.
Assim, em duas citações diretas, não referenciadas, ao artigo de Karl Loewenstein, Paulo Sérgio Pinheiro destaca o “dilema” diante do qual se encontraria o autor: “a democracia e a tolerância democrática estariam sendo usadas para sua própria destruição. Sob a cobertura dos direitos fundamentais e do Estado de direito, a máquina antidemocrática pode vir a ser construída e posta em marcha legalmente”. Em seguida, Pinheiro afirma que Loewenstein lamentava “o exagerado formalismo do estado de direito que, sob o encantamento da igualdade formal, não julga adequado excluir do jogo os partidos que renegam a existência de suas regras”.
Mais à frente, à luz do exemplo da República de Weimar, Paulo Sérgio Pinheiro conclui que o apego às formalidades do Estado de Direito teria sido a causa do perecimento da democracia na Alemanha de 1919 a 1933.[vii]
Para Paulo Sérgio Pinheiro, o resgate das reflexões de Karl Loewenstein seria relevante para o Brasil atual, pois, da sua perspectiva, “ao contrário do que se alardeou, as instituições do Estado brasileiro não funcionaram diante da escalada de extrema direita com conteúdo neofascista, liderada pelo presidente da República”. Segundo ele, “essa desconstrução do Estado de direito contou com a cumplicidade das Forças Armadas e com a inércia, tanto da Procuradoria Geral da República, para processar os crimes de responsabilidade do presidente, quanto do Congresso Nacional, especialmente da Câmara de Deputados, que ignorou mais de uma centena de pedidos de impeachment”.
Paulo Sérgio Pinheiro prossegue para dizer que “a situação somente não está pior porque as eleições presidenciais derrotaram o líder da extrema direita, graças à anulação, pelo Supremo Tribunal Federal (STF), dos processos crimes contra o então ex-presidente Luís Inácio Lula da Silva e à sua soltura da iníqua prisão, reavendo seu direito de se candidatar – decisão que foi corroborada, em 2022, pelo Comitê de Direitos Humanos da ONU, que reconheceu a violação de direitos do ex-presidente pelo Estado brasileiro, por negar-lhe acesso a um processo justo e à presunção de inocência”.
Ao analisar o cenário político nacional após as eleições presidenciais de outubro de 2022, Paulo Sérgio Pinheiro destaca o “inusitado cenário de veículos em chamas interditando estradas e milhares de cidadãos orando por intervenção militar nas portas dos quartéis”. E também diz que “a autoridade que mais atuou na proteção do Estado de direito e em resistência a esse movimento golpista foi o Ministro Alexandre de Moraes, presidente do Tribunal Superior Eleitoral (TSE)”. Assim, em sua opinião, o Ministro Alexandre de Moraes “rebateu os ataques da extrema direita antes, durante e depois das eleições; defendeu as urnas eletrônicas, enfrentou corajosamente a litigância golpista, articulou a atuação das Polícias Militares e da Polícia Rodoviária Federal contra os bloqueios de vias, aplicando multas e congelando ativos de financiadores das badernas”.
Após a eleição de Luiz Inácio Lula da Silva à Presidência da República, bem como tendo em vista a promulgação da Lei de Defesa do Estado Democrático de Direito, Paulo Sérgio Pinheiro caminha para a conclusão do texto afirmando que “a sociedade e o Estado terão de definir, portanto, de que forma a militância poderá ser exercida, na defesa da democracia, depois da nova era que começará em 1º de janeiro de 2023”. E, ao encerrar o texto, ele levanta a seguinte questão, “após quatro anos de pregação e práticas neofascistas, é urgente refletir: o que fazer para que, gradualmente, os brasileiros que caíram nessa esparrela da ‘intervenção militar’ e acreditaram nas bravatas do bolsonarismo possam tornar-se cidadãos republicanos de novo?”.
Embora a comparação dos períodos históricos subjacente ao argumento de Paulo Sérgio Pinheiro possa ser ainda passível de críticas, cabe dizer que o diagnóstico apresentado por Karl Loewenstein em “Militant Democracy and Fundamental Rights”, como já dissemos anteriormente,[viii] parte de uma premissa equivocada, a da exigência de restrição ou de suspensão de supostos direitos fundamentais em nome da defesa da democracia, mesmo além de hipóteses já previstas pela própria constituição.
Ao contrário do afirmado por Karl Loewenstein, práticas autoritárias não constituem exercício regular de direitos, mas, sim, abuso de direito, e, portanto, atos ilícitos, reprovados pela ordem constitucional. Como precisamente dito pelo Professor Lenio Streck: “uma concepção responsável de direito e democracia dispõe que direitos subvertidos já não mais são direitos. Quem abusa de um direito em abstrato não está mais agindo dentro do direito e para o direito, isto é, agindo democraticamente. Logo, abuso de direito já não é direito propriamente dito”.[ix] Do contrário, o fim de todo regime democrático poderia ser o autoritarismo. O projeto de construção de uma democracia constitucional seria uma luta em vão. Novamente socorremos a Lenio Streck para dizer que “constituições não são pactos suicidas. A democracia não é um pacto suicida”.[x]
Valeria também destacar o que poderia parecer uma contradição interna ao argumento de Paulo Sérgio Pinheiro. Foi dito que, para ele, a paralisia do Congresso Nacional e da Procuradoria Geral da República para processar o Presidente da República pelos crimes dos quais é acusado indicaria que “as instituições do Estado brasileiro não funcionaram diante da escalada de extrema direita com conteúdo neofascista”. Ocorre que, linhas mais à frente, o próprio autor reconhece que a derrota de Jair Bolsonaro nas eleições presidenciais de 2022 somente foi possível graças à atuação do Supremo Tribunal Federal, que anulou as condenações sofridas por Luiz Inácio Lula da Silva, e do Tribunal Superior Eleitoral, que por meio da atuação do seu Presidente, o Ministro Alexandre de Moraes, conseguiu frear as aventuras golpistas da extrema direita antes, durante e depois do pleito.
Diante desse cenário, restariam as perguntas: as instituições do Estado brasileiro estariam ou não estão funcionando? E mais: estariam ou não estão funcionando em defesa dos direitos fundamentais e do Estado de Direito? A anulação das condenações injustamente sofridas por Luiz Inácio Lula da Silva, que na sua origem foram proferidas por um juiz incompetente e parcial, foi ou não um reforço do Estado de Direito? A apuração de atos antidemocráticos, bem como a responsabilização dos seus autores pela justiça eleitoral, reforça ou não o Estado de Direito? Contudo, ao invés de se pensar em termos dicotômicos, consideramos que a questão acerca do processo de construção, no tempo e no espaço, de um Estado democrático de direito é mais complexo, justamente por atravessar um processo de aprendizagem social com o direito e com a política, em longo prazo, que é sujeito a tropeços, a retrocessos e a momentos de inércia, mas capaz de se autocorrigir.[xi]
Cabe também lembrar que para Karl Loewenstein não caberia exatamente aos tribunais um papel a desempenhar na chamada democracia militante, mas aos governos democráticos. A democracia militante se endereçaria às instituições políticas, no sentido do exercício de poderes extraordinários, supostamente explícitos ou mesmo implícitos na constituição. Contudo, o Supremo Tribunal Federal, ao instaurar o inquérito das fake news, e o Tribunal Superior Eleitoral, ao responsabilizar os autores de atos antidemocráticos, não estão utilizando de supostos poderes excepcionais, ainda que em defesa da democracia.
A defesa de regimes democráticos não precisa ser tratada como algo excepcional. E, assim, a democracia não precisa ser militante nos termos propostos por Karl Loewenstein para defender a si própria. Não pode pretender usar medidas autoritárias com o autoritarismo, sob o risco de transmutar-se em autoritarismo. Basta à democracia, para se defender a si mesma, ser uma democracia constitucional. [xii]
*Almir Megali Neto é doutorando na Faculdade de Direito da Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG).
*Marcelo Andrade Cattoni de Oliveira é professor titular de Direito Constitucional da Faculdade de Direito da UFMG.
Notas
[i] LOEWENSTEIN, Karl. Militant Democracy and Fundamental Rights, I. The American Political Science Review, vol. XXXI, n° 03, 1937, p. 417-432.
[ii] LOEWENSTEIN, Karl. Militant Democracy and Fundamental Rights, II. The American Political Science Review, vol. XXXI, n° 04, 1937, p. 638-658
[iii] LOEWENSTEIN, Karl. Brazil under Vargas. New York: The MacMillan Company, 1942.
[iv] LOEWENSTEIN, Karl. Reflections on the Value of Constitutions in Our Revolutionary Age in ZURCHER, Arnold J. (ed.). Constitutions and Constitutional Trends since World War II. An Examination of Significant Aspects of Postwar Public Law with Particular Reference to the New Constitutions of Western Europe. New York: New York University Press, 1951, p. 191-224. LOEWENSTEIN, Karl. Réflexions sur la valeur des Constitutions dans une époque révolutionnaire. Esquisse d’une ontologie des Constitutions. Revue Française de Science Politique, n. 1, 1952, p. 5-23. LOEWENSTEIN, Karl. Réflexions sur la valeur des Constitutions dans une époque révolutionnaire. Esquisse d’une ontologie des Constitutions (Fin). Revue Française de Science Politique, n. 2, 1952, p. 312-334. Ainda que não citada diretamente, ver LOWEWENSTEIN, Karl. Teoría de laConstitución, 2 ed. Trad. A. Gallego A. Barcelona: Ariel, 1976, p. 218-222.
[v] LOEWENSTEIN, Karl. Political Reconstruction. New York: MacMillian Company, 1946.
[vi] LOWEWENSTEIN, Karl. Teoría de la Constitución, 2 ed. Trad. A. Gallego A. Barcelona: Ariel, 1976, p. 494-495.
[vii] Essa afirmação, contudo, não procede. Isso porque, como mostra extensa bibliografia, o que de fato houve foi um golpe de Estado e não um mero abuso de instrumentos jurídicos contra o próprio Direito vigente. Cf. Por exemplo, o clássico FRAENKEL, Ernst The Dual State: a contribution to the theory of dictatorship. New Jersey: Lawbook, 2007, p. 4-6. Sobre ele, ver LIMA, Martonio Mont’Alverne Barreto. Supremo Tribunal Federal: Prússia contra Reich. São Paulo: Contracorrente, 2022, p. 87-111. CATTONI DE OLIVEIRA, Marcelo A. e LIMA, Martonio Mont’Alverne Barreto. Justiça e política – o passado que ainda desafio o presente. In: BERCOVICI, Gilberto (coord.). Cem anos da Constituição de Weimar (1919-2019). São Paulo: QuartierLatin, 2019, p. 641-656. E também PAUER-STUDER, Herlinde. Justifying Injustice: Legal Theory in Nazi Germany. Cambridge: University of Cambridge, 2020, p. 45-53; e p. 77-78.
[viii] MEGALI NETO, Almir; CATTONI DE OLIVEIRA, Marcelo Andrade. A democracia constitucional entre militantes contra a democracia e a democracia militante. Empório do Direito, 2022. Disponível em: https://emporiododireito.com.br/leitura/a-democracia-constitucional-entre-militantes-contra-a-democracia-e-a-democracia-militante.
[ix] STRECK, Lenio. As críticas de Gandra ao STF e a história do crocodilo debaixo da cama. Conjur, 2022. Disponível em: https://www.conjur.com.br/2022-dez-01/senso-incomum-criticas-gandra-historia-crocodilo-debaixo-cama.
[x] Ibid.
[xi]HABERMAS, Jürgen. Constitutional Democracy: a paradoxical union of contradictory principles? in SADURSKI, Wojciecl (ed). Constitutional Theory. Aldershot: Dartmouth, 2005, p. 69-84
[xii] LIMA, Martonio Mont’Alverne Barreto. “A democracia que defende a si mesma”, O Povo, 13/12/2022, Disponível em https://mais.opovo.com.br/colunistas/martonio-montalverne/2022/12/13/a-democracia-que-defende-a-si-mesma.html.
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