Por ANA PENIDO*
A desmilitarização da política e a despolitização da caserna não são irmãs siamesas da profissionalização militar
1.
A tutela militar sobre a política, as instituições e a sociedade brasileira é um componente fundamental da formação social, cultural, econômica e política do Brasil. Não deve ser pensada como algo pontual do governo Bolsonaro, mas como algo permanente, tal qual o racismo. As formas como ela se expressa é que mudam. Por isso, não é algo que terminará com uma canetada ou que perdurará apenas por falta de “vontade política” ou “falta de boas ideias”. Exige muito mais: meta traçada, paciência, oportunidade e, sobretudo, perseverança cotidiana. virtú e fortuna.
A transição “lenta, gradativa e segura” feita sob controle militar ao regime democrático garantiu aos militares quatro áreas de autonomia fundamentais para a auto reprodução simbólica do pensamento da caserna: a educação dos militares, a inteligência militar, a justiça militar e o orçamento de defesa. A discussão sobre a não punição daqueles que cometeram crimes durante a ditadura (anistia) é relevante, mas enquanto as quatro áreas restarem intocadas, a tutela seguirá. Não há correlação de forças para pensar em reformas nessas áreas agora.
Um segmento de militares militantes atua como um partido político orgânico. Possuem um projeto de poder e, para iniciar sua implementação, precisavam, diferente de 1964, chegar ao topo do Executivo por meio de eleições. Para isso, inflaram a candidatura de Jair Bolsonaro, forte comunicador, e por um conjunto de razões que não aprofundaremos, obtiveram sucesso em 2018. Destacaremos apenas uma delas: a instituição militar é muito bem avaliada pela população, assim como as igrejas, diante de uma desconfiança completa nos políticos, partidos, entre outros. O partido militar emprestou essa confiança popular na instituição militar ao governo Bolsonaro.
O governo Bolsonaro foi militarizado de cabo a rabo. Os militares nunca desembarcaram dele, como ocorreu com o lavajatismo, por exemplo. Ganharam muito com isso corporativamente e individualmente. As diferenças internas majoritárias variam entre: (a) votar no Bolsonaro; (b) militar pela campanha Bolsonaro; (c) apoiar/participar de ações de desestabilização (inclusive violentas) pró-Bolsonaro com a finalidade de um golpe de Estado; (d) sublevar unidades militares culminando em golpe de Estado. Reeditar a disputa legalistas vs golpistas é errado, seja do ponto de visto histórico ou para pensar o contexto atual. Militares interpretam a lei conforme seus interesses, como indica a polêmica em torno do artigo 142 da Constituição.
A invasão do Capitólio (EUA) pode ser um parâmetro para os vândalos do dia 8 de janeiro, mas não para pensar o comportamento militar. Nesse caso, é melhor observar a Bolívia, quando bandos armados tocaram o terror e as forças armadas bolivianas só apareceram no final, para mandar Evo Morales embora e trazer a situação de “volta para normalidade”. Eles ganham jogando “parados”, como esperavam fazer no dia 8.
2.
Lula pouco falou de militares durante a campanha, acertadamente. Sinalizou apenas a desmilitarização do governo e a nomeação de um ministro civil para o Ministério da Defesa. Depois de eleito, Lula errou durante a transição de governo. (a) não criou um GT de transição para a área de defesa, enquanto o de inteligência demorou a sair; (b) nomeou um nome conservador fortemente sugerido pela cúpula militar para o Ministério da Defesa (embora, convenhamos, Lula tem farta experiência com raposas velhas que mudam de lado na política e este é um governo de frente ampla); (c) escolheu os oficiais mais antigos para comandar cada uma das Forças; (d) não exonerou imediatamente militares declaradamente comprometidos com o governo anterior – que defendiam até derramamento de sangue do próprio Lula – e que seguiram no seu entorno, inclusive no palácio, notadamente no Gabinete de Segurança Institucional (GSI) – do qual começaram a sair agora – e no Ministério da Defesa – onde permanecem. Os sinais de apaziguamento que vieram do governo não foram correspondidos, como se observou nas cerimônias de posse dos novos comandantes.
Os erros são compreensíveis. Diante de um cenário de terra arrasada, optou por comprar as brigas que dizem imediatamente respeito à vida do povo comum, de quem ele se propõe a cuidar: garantir salário mínimo, vacina, comida, escola; tudo com um cenário de desmonte completo das políticas públicas e de um Congresso Nacional ávido por permanecer na política do “toma lá, dá cá”, sem falar nos humores da avenida Paulista. É compreensível, mas não deixa de ser errado. O controle sobre as instituições militares é o exercício em si do poder estatal, pré-condição para qualquer outra ação política em uma democracia plena.
Lula acertou brilhantemente no dia 8 ao não decretar uma operação de Garantia da Lei e da Ordem (GLO). Não se trata de ter medo de um golpe ou da insubordinação, mas de não entregar para a caserna a imagem de “restauradores da ordem”, uma ordem que eles mesmos, no mínimo por leniência, ajudaram a quebrar. Lula acertou novamente colocando um civil para coordenar a intervenção federal na segurança pública do Distrito Federal.
A militarização da segurança pública é um erro no Brasil inteiro, mas a mera agitação de bandeiras como “fim da polícia militar” em nada contribui. É preciso dar conteúdo concreto a isso como, por exemplo, colocando um civil para comandar o setor. Da parte dos militares, não são factíveis dois argumentos sobre o dia 8 de janeiro: (a) não sabiam que ia acontecer, pois foram fartos os alertas dos muitos serviços de inteligência e até da imprensa; (b) e que não teriam meios humanos e materiais para atuar nessas situações. Dessa maneira, na melhor hipótese, houve leniência (deserção?), falha na tomada de decisão ou na execução da proteção. Na pior hipótese, houve cooperação. Sobre isso, é importante individualizar responsabilidades de quem planejou, quem pagou, quem fez e quem estimulou os atos. Não só sobre o dia 8 de janeiro, mas também sobre as ações de dezembro, especialmente a bomba na véspera de Natal, com potenciais vítimas civis. O desgaste dos militares não foi apenas com Lula, mas com todas as instituições destruídas, incluindo o Congresso e o Supremo.
Lula vem acertando desde então, com declarações contundentes à imprensa, inclusive sobre a ditadura militar, denunciando que as forças armadas não são um poder moderador e, principalmente, demitindo o general Júlio César de Arruda do Comando do Exército. Questões como: (a) “foi jogo combinado com o Alto Comando do Exército o discurso público do novo comandante do Exército, o general Tomás Paiva, à tropa”?; (b) “foi jogo de cena de Lula e dos comandantes”?; (c) “Tomás é melhor ou pior do que Arruda, e em que sentido”?; (d) “exatamente quando Lula tomou a decisão de substituição”?; (e) “foi o Tenente Coronel Cid a gota d’água ou não”? são relevantes, mas secundárias.
A questão principal é a mensagem política que Lula ofereceu à nação. Diferente do seu comportamento nos primeiros governos, dessa vez, quando militares falaram truco à uma decisão, Lula respondeu “meio pau”. Ele enfrentou, não cedeu. Se vai ter sucesso, se foi o suficiente, se poderia ser melhor, são todas questões da correlação de forças e sem respostas no aqui e agora. O importante é que o Comandante em Chefe da nação e das forças armadas “fincou o pé” em uma decisão.
Estamos diante de uma oportunidade histórica, pois confluíram diferentes fatores: (a) a imprensa está no encalço das FFAA, e tem milhares de documentos perdendo sigilo, denúncias de corrupção, provas materiais de todo tipo para explorar; (b) a instituição militar perdeu apoio popular em virtude das trapalhadas e da superexposição no governo Bolsonaro; (c) não há apoio internacional – global ou regional – para uma quartelada militar (o que pode mudar em pouco tempo); (d) há perda de apoio entre elites nacionais, como as respostas que as declarações virulentas dos generais Mourão e Etchegoyen receberam de personagens como Joaquim Barbosa; (e) há insatisfações internas, que se expressam na campanha no interior do Exército para queimar alguns dos generais de quatro estrelas, chamados de melancias (verdes por fora, vermelhos por dentro).
Além disso, a insatisfação interna aumentará: os cerca de 8 mil militares que estavam no governo e são da ativa deixarão o Palácio do Planalto e voltarão para as fileiras. Como serão acomodados? Como fica o lugar na fila de quem seguiu cumprindo suas missões em lugares longínquos e não saiu das Forças para encher os bolsos nos carpetes do Planalto?
Lula está em início de um governo de frente ampla, e é natural e positivo que queira diminuir a temperatura das relações com a caserna (pacificar é um péssimo termo, carrega muita história junto). O caminho, atualmente sinalizado, de oferecer dinheiro para investimentos em equipamentos, foi a mesma opção política dos primeiros mandatos de Lula. Além de referendar um mau uso do dinheiro público, militares interpretam essa ação como fragilidade do governo, que os tentaria comprar com brinquedos. Para piorar, diferente do primeiro governo, Lula precisaria contar com uma FIESP acéfala e golpista.
Mas Lula tem outra opção em mãos. Deixar de discutir apenas com militares e abrir um amplo debate sobre defesa nacional, chamando diferentes setores da sociedade para se sentar à mesa política. Tal proposta possibilitaria trazer um sopro de democracia participativa para uma área historicamente autoritária, traria mais segmentos para a mesa – o que permite a ampliação e melhoria da correlação de forças, entregaria a responsabilidade de definir o que deve ser objeto de defesa e quem nos ameaça para quem é de direito – o povo brasileiro, atenderia a uma antiga reivindicação histórica dos militares, que é a de “ninguém liga pra defesa, só a gente” (e de quebra colocaria a retórica à prova) e ainda construiria força social para reformas mais amplas.
3.
Aqui, elencaremos um conjunto de questões que estão na pauta política e que não tocam nas áreas de autonomia citadas ao início deste texto, mas que podem contribuir para a redução da tutela militar sobre a política.
Individualização das responsabilidades na tentativa de golpe de Estado e seus antecedentes. Sem esquecer dos problemas do ativismo judiciário, deve-se ter em mente que o crime de Tentativa de Golpe de Estado é julgado na justiça comum, e outros crimes como dano ao patrimônio ou injúria, se cometidos por militares, seguem para julgamento no judiciário militar, reconhecidamente corporativo;
Ministério da Defesa: é possível ter um ministro com perfil político, conhecimento da área e habilidade política, como ocorre nos outros ministérios. Múcio não tem conhecimento da área e deixou isso evidente ao nomear os mais antigos automaticamente. Mas nomear o ministro é pouco, muito pouco. São necessários civis concursados no Ministério da Defesa que, gradualmente, devem substituir até mesmo os militares contratados para prestar tarefas por tempo certo (PTTCs);
Criar/reformar as instituições de segurança e defesa: pautas como a criação e perfil da guarda nacional, tornar a força nacional de segurança pública permanente, utilidades para uma guarda costeira e para o controle civil da área de aviação, quem deve cuidar das fronteiras, quem deve cuidar da segurança presidencial, como desinchar o GSI, entre outras coisas, devem ser objeto de debate público no primeiro ano de governo. Algumas dessas questões podem, inclusive, ser objeto de deliberação na I Conferência Nacional de Defesa, trabalhadas de forma conjunta com o Ministério da Justiça, o Ministério das Relações Exteriores, movimentos populares, associações industriais e outros sujeitos políticos;
Retirar a Agência Brasileira de Inteligência (Abin) do GSI, deixando-a junto à Casa Civil ou a uma Secretaria de Assuntos Estratégicos;
O Legislativo pode atuar enfrentando questões pendentes, como o período de quarentena dos militares que saem das Forças e vão pra política, regulamentando as assessorias legislativas das Forças que funcionam no Congresso e acabam atuando como lobistas, propor critérios para a escolha dos 4 estrelas (como sabatinas no Congresso, a exemplo de outros países), remanejando o orçamento de outras áreas como saúde, esportes, assistência, educação que hoje são executados pelo Ministério da Defesa para as suas áreas finalísticas. O Executivo pode auxiliar sugerindo pautas e projetos;
Os organismos de transparência e fiscalização da União podem atuar notadamente identificando a porta giratória orçamentária existente entre militares da ativa e da reserva na construção de editais e montagem de empresas que prestam serviços à União por meio destes processos seletivos públicos, muitas vezes com dispensa de licitação. É possível identificar e responsabilizar os conhecidos “militares maçaneta”, que abrem as portas para o lobbismo de empresas (não apenas de armamentos), para o mau uso de recursos públicos e enriquecimento ilícito;
O Judiciário civil precisa enfrentar o judiciário militar e o ministério público militar, para que estes, no mínimo, fiscalizem o cumprimento dos regulamentos militares que os próprios militares criaram;
A imprensa pode contribuir não usando o “off “como recurso principal para matérias que só se prestam à desmoralização da profissão, além de reportagens sobre humores militares que contribuem para o clima golpista. Os veículos de esquerda precisam mostrar incansavelmente que Lula investiu em defesa e Bolsonaro apenas encheu os bolsos de alguns oficiais e esclarecer os privilégios que a carreira militar reúne diante de outras carreiras civis públicas e privadas;
Organizações populares precisam pautar o tema. Por exemplo, (a) sindicatos de categorias públicas podem discutir a isonomia entre as carreiras de Estado; (b) o movimento de mulheres deve denunciar que o armamentismo mata, e se somar nas iniciativas para o controle de armamentos e desmilitarização das polícias; também podem denunciar a misoginia e falta de políticas para a isonomia de gênero e raça presente nas forças armadas, especialmente no exército; (c) ambientalistas devem se debruçar sobre quem é o responsável pelo policiamento da Amazônia, pautando o projeto Calha Norte; assim como lembrar que o hoje senador Mourão foi responsável administrativo pelas políticas naquele território nos últimos quatro anos; (d) movimentos juvenis precisam compreender que a redução da violência policial contra jovens negros passa por medidas de controle, como a implantação de câmeras em fardas que, por sua vez, exigem o fim da subordinação das polícias militares às forças armadas e aos governadores simultaneamente; também podem, como possíveis recrutas destas forças, exigir o cumprimento de regras que preservem sua integridade, o que já se provou com o uso das câmeras;
Lula deve comandar e conclamar o povo brasileiro a fazê-lo junto com ele.
A militarização da política durante o governo Bolsonaro veio acompanhada da politização da caserna; são pares inseparáveis. Mas a desmilitarização da política e a despolitização da caserna não são irmãs siamesas da profissionalização militar. Militares profissionais interveem na política e dão golpes. Construir o controle popular sobre os instrumentos de violência estatais não é algo simples. Entretanto, não é algo impossível, como sugerido neste artigo.
*Ana Penido é pesquisadora de pós-doutorado no Programa San Tiago Dantas (UNESP – Unicamp – PUC-SP).
Publicado originalmente no site Observatório da Defesa e Soberania.
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