Positivismo verde-amarelo

Imagem: Rodrigo Souza
Whatsapp
Facebook
Twitter
Instagram
Telegram

Por VINÍCIO CARRILHO MARTINEZ*

O que faz o Brasil, brasil?

Iniciamos com duas perguntas que se imiscuem: (i) Como foi que violentamos o artigo 225 da Constituição Federal de 1988 (Estado Ambiental) a ponto de nossa consciência permitir o genocídio dos Yanomami? (ii) O que faz o Brasil, brasil?

De pronto, diremos que são necessidades, incapacidades e desejos mórbidos. Necessidades extremas do povo pobre, negro e favelado – e nunca satisfeitas; incapacidade de pensarmos em unidade, como povo, e incapacidade histórica de formarmos governança com alguma elite cultural: seguindo-se a ideia de que portassem uma inteligência social. Daí resta-nos nossos maiores e piores desejos mórbidos: sadismo, psicopatia, autoflagelo, autofagia, canibalismo real e simbólico.

Será que alguma outra cultura é capaz de se sentir assim tão feliz em se vilipendiar, como nós?

Quem sabe daqui 500 anos a gente consiga explicar porque um palhaço, fantasia de crianças felizes (mesmo não estando inteiramente saudáveis) acabou na metamorfose de um bisonho Bozo da morte calculada. E quem sabe nesses mesmos 500 anos nós consigamos explicar porque esse Bozo arruinado sumiu até com o Zé Gotinha.

Na falta de vacina contra o desconhecimento, o Brasil, incluindo suas Universidades, especializou-se no “transplante histórico”: a decoreba de ontem é o sucesso da decoração da aula de hoje, de amanhã. Não é à toa que muitas pessoas ainda achem que o país foi achado, e mesmo que, já naquela altura, tanto lá quanto cá, já se soubesse que por aqui estávamos – e fazia muito tempo. O Brasil é um achado realmente, mas é de outro tipo.

Neste engodo em que se enreda nossa história, esta parece ser a questão central: O que há entre o 15 de Novembro, o 7 de Setembro e o 8 de Janeiro? Como se diz, há muito mais entre o céu e a Terra do que qualquer vã (ou notória) filosofia possa imaginar. Contudo, e com certeza, veremos o 4 de Julho.

A descrição do(s) golpe(s), suas sucessões ou suas tentativas, desde 2013-16, será equivalente a contar o que foi a ditadura de 1964, a Escravidão, o plantation capitalista. Levará décadas, com coleções reunindo monumentos de todas as áreas, começando pelo direito e pela medicina. Iremos da fabricação/revelação do bolsonarismo, e do cesarismo de Estado a partir de 2017, ao fascismo nacional (colorido) e suas bizarras sátiras da humanidade.

Das histórias de quem entra definitivamente nas entranhas do poder (Damaris, Moro, Mourão, o astronauta), chegaremos às duas vezes seguidas em que o povo de São Paulo preferiu o fascínio ao professor. Será um relato muito além de quem conta do 01 ao 04, pois nos contará sobre pastores vendendo máscaras invisíveis contra a Covid-19 (por mil reais), e também contará quem são e o que pensam os “transvacinados”: os mesmos que estão ajudando piamente a Pólio voltar à ativa, depois de erradicada.

Entre mínions e bots, iremos aprender que Pasárgada sempre foi um luxo para muitos de nós. Viver entre Alienistas, diria Machado de Assis, pedindo por “intervenção alienígena”, com celular em punho e invocando o sideral artigo 142, levou milhões à defesa da democracia parlamentar, rudimentar. A planejada penúria neonazi nos levaria a embarcar nos piores assentos do governo de coalizão – sentados na porta do desembarque, sentimos toda a colisão possível e seguiremos sentindo, por muitos anos.

Curiosamente, a maioria de quem acusava a existência de outro Luís Bonaparte nas terras de baixo (golpe tabajara), teve que se contentar com Bobbio e os superpoderes dos tribunais superiores – os mesmos kaisers do Judiciário, sentados em suas castas, que prenderam em segunda instância (ou primeira, na desconsideração de recursos auriculares) e assim pavimentaram 2018. Do seminal Golpe à Constituição, com emenda de reeleição e reserva do possível – e impossível de alcançar a dignidade dos miseráveis –, passeamos por Honduras e Paraguai. Aprendemos, e como aprendemos, sobre a imposição do impeachment nos moldes de Pinochet.

Entretanto, arrependidos do faschio, olhamos para os nossos vizinhos: Bolívia, Equador. Em defesa da democracia, sempre mais do que imperfeita, fomos estudar, reler, interpelar a primeira regra: a primeira regra da democracia é exatamente a obrigação de seguir as regras do jogo (sem tergiversar as quatro linhas). Em suma, descobrimos aqui do lado um santo remédio (Estado de coisas Inconstitucional), relemos a Constituição, olhamos a realidade e, insatisfeitos, transformamos a exceção em regra…de novo. Algo que aprendemos muito bem, desde a reeleição, mas agora para combater a criatura dos criadores de oportunismos. Muitos acreditaram em lavar a alma, e acabaram presenteados com a Vaza Jato.

De tanto apanhar na vida real, passamos a viver entre a distopia de Gilles Deleuze (da Sociedade de Controle) e o virtual de Pierre Lévy: aquele que se inspirou em Neuromancer e nos zapatistas, e sempre foi contrário aos neoludistas. Se bem que, ao menos neste quesito, embasbacados com tantas peripécias tecnológicas (atolados na pandemia e no pandemônio), acabamos por criar um vício novo: fala-se na aquisição e posse permanente de um certo tipo de “kit babaca”.

Como sempre, festejamos todos os dias a miscigenação, esquecendo-nos do estupro coletivo da história negra e pobre, e dos massacres indígenas. Festejamos a fartura, com milhões vivendo na fome aguda; por isso, não causa espécie aquele que festeja a tortura. Festejamos a terra do gigante adormecido, do país do futuro, aquele em que “plantando, tudo dá” – e dá mesmo, deu até uma convivência única entre capitalismo e escravidão.

Quem diria que, no século XXI, sob a Stasi social, uma fênix daria à luz ao pós-moderno capitão do mato – se bem que, trata-se de um capitão excluído das forças simplesmente porque é incapaz de não ser pré-moderno: é o cara pré-histórico que faz a política do neandertal. Isto é, um tipo repelente à evolução das espécies e que, portanto, edifica-se como a própria sátira do “não-ser”, ora como farsa, ora como tragédia. É o cara que aplica a seleção natural, por fome, contra os já miseráveis sobreviventes dele mesmo.

De placebo em placebo, o país “à beira do abismo” veio caminhando em passos firmes, sempre adiante da ficção. Nossos lemas e slogans não tem fim, afinal, nossa gloriosa República começou com um golpe militar. Ou seja, definitivamente, provamos que a ficção copia a realidade. Adoramos o improviso, a gambiarra, a quebra de regras; no entanto, sempre dentro do mesmo paradigma. Nesse momento, transformamos, ainda mais agudamente, a necropolítica em necrofascismo.

Na Política, desmilinguida, preferimos a política (minúscula), de modo mais especial quando há dúvida no esplendor das margens plácidas de algum arête (areté); ao invés de seguirmos navegantes pelo céu de brigadeiro, preferimos a tempestade perfeita do aríete, o famoso pé na porta. É claro que, para nós, “navegar não é preciso”.

A metáfora do país diria que sempre renascemos, ainda que fora do Renascimento. Não conhecemos a bricolagem, porque detestamos a techné, mas seguimos firmes e fortes no desejo incontido de dar jeitinho em tudo – inclusive, e especialmente, em nós mesmos. E vivemos dormindo em berço esplêndido, no lusco-fusco. O que, por fim, também nos garante que buscamos por eterna iluminação, desde que sempre esteja ausente qualquer Iluminismo.

Nossa ciência continua fazendo o que sabe fazer de melhor: exportar cérebros. Por aqui nada se cria, tudo se copia. Nossa “inovação” não pode inovar muito, porque a criatividade (não-nefasta) provoca sérias críticas e a crítica, por si, convulsiona, revoluciona. É mais fácil repetir, replicar, mimetizar mantras, estamos habituados ao monolito do senso comum e das teses amareladas pelo mau uso. “Deixar como está, para ver como é que fica” é o suprassumo do conhecimento, também na academia. E ficamos assim, copiando uns aos outros e, não-raras vezes, no que temos de pior. Também por causa disso a vacina nos transforma em “jacarés”.

A conclusão parcial, no tempo em que escrevo, nesse 14 de fevereiro de 2023, nos diz que o Brasil não é muito acessível aos alemães. Desde o histórico 7×1, vivemos em pesadelos. Porém, o ponto alto da descoberta, ainda sonâmbulos, foi a revelação (pelas mãos da teologia da prosperidade) que nosso positivismo verde-amarelo não é cartesiano. Aliás, entre Ordem e Progresso, não preferimos nenhum.

É certo que, por aqui, “tudo que é sólido sempre desmanchou no ar”. Só não nos contaram que não haveria lógica alguma. Por enquanto está valendo a máxima do “penso, logo desisto”. Não foi por essa razão (sic) que a “cidadania” de 2018 se orgulhou de sua ignorância formal, abençoando-se no próprio analfabetismo disfuncional?

Como diz o povo, o Brasil precisa de Ciência. Só que ainda estamos à espera da NASA inventar uma – de preferência que explique porque fazer sátira de si mesmo traz tanto prazer.

Enfim, até que se prove em contrário, começamos com o exemplo de Portugal, primeiro nos escravizando, depois constituindo e inibindo fuzis com cravos, com a geringonça, e por enquanto estamos no berço do centrão. Longe do centro do mundo, agora lutamos para deixar vago aquele lugarzinho reservado aos párias da humanidade. O que é um ótimo começo, e é muita coisa para uma jornada de apenas 45 dias.

Agora, diga você: Se o Brasil não é para amadores, é para quem?

*Vinício Carrilho Martinez é professor do Departamento de Educação da UFSCar.

O site A Terra é Redonda existe graças aos nossos leitores e apoiadores.
Ajude-nos a manter esta ideia.
Clique aqui e veja como 

Veja neste link todos artigos de

AUTORES

TEMAS

10 MAIS LIDOS NOS ÚLTIMOS 7 DIAS

Lista aleatória de 160 entre mais de 1.900 autores.
Annateresa Fabris Luiz Werneck Vianna Carla Teixeira Ricardo Musse Andrew Korybko Milton Pinheiro Antonio Martins Manuel Domingos Neto Mário Maestri Berenice Bento Daniel Afonso da Silva Paulo Fernandes Silveira Celso Frederico André Singer Ronald Rocha Lucas Fiaschetti Estevez Otaviano Helene Claudio Katz Julian Rodrigues Alexandre de Freitas Barbosa Jorge Luiz Souto Maior Luis Felipe Miguel Eduardo Borges Manchetômetro Daniel Costa Alysson Leandro Mascaro Alexandre Aragão de Albuquerque Francisco de Oliveira Barros Júnior Tadeu Valadares Anderson Alves Esteves Lorenzo Vitral Thomas Piketty Bruno Fabricio Alcebino da Silva Luciano Nascimento José Raimundo Trindade Juarez Guimarães Sergio Amadeu da Silveira Antonino Infranca Michael Löwy Eleutério F. S. Prado Marcelo Módolo Celso Favaretto Chico Alencar Kátia Gerab Baggio José Micaelson Lacerda Morais Walnice Nogueira Galvão Michael Roberts Marcus Ianoni Fernão Pessoa Ramos Ricardo Abramovay Paulo Martins Andrés del Río Chico Whitaker Igor Felippe Santos José Costa Júnior Bruno Machado Caio Bugiato Tarso Genro Marjorie C. Marona Liszt Vieira Leda Maria Paulani Plínio de Arruda Sampaio Jr. Jean Pierre Chauvin Vinício Carrilho Martinez Paulo Nogueira Batista Jr Elias Jabbour Valerio Arcary José Luís Fiori Sandra Bitencourt Maria Rita Kehl Airton Paschoa Leonardo Boff Rubens Pinto Lyra Heraldo Campos Gilberto Lopes Alexandre de Oliveira Torres Carrasco João Adolfo Hansen Gilberto Maringoni Denilson Cordeiro João Sette Whitaker Ferreira Eugênio Bucci Boaventura de Sousa Santos Ronald León Núñez Everaldo de Oliveira Andrade João Feres Júnior Vanderlei Tenório Henri Acselrad Érico Andrade João Carlos Salles Fábio Konder Comparato Jean Marc Von Der Weid José Machado Moita Neto Luiz Renato Martins Rafael R. Ioris Gerson Almeida Flávio R. Kothe Afrânio Catani Fernando Nogueira da Costa Luiz Eduardo Soares Alexandre de Lima Castro Tranjan Remy José Fontana Bento Prado Jr. Francisco Pereira de Farias Salem Nasser Marilena Chauí Ari Marcelo Solon Marcelo Guimarães Lima Ronaldo Tadeu de Souza Dennis Oliveira Flávio Aguiar Paulo Sérgio Pinheiro Daniel Brazil Leonardo Avritzer Marcos Aurélio da Silva Luiz Roberto Alves Ricardo Fabbrini Armando Boito José Dirceu Mariarosaria Fabris André Márcio Neves Soares Dênis de Moraes Marilia Pacheco Fiorillo José Geraldo Couto Marcos Silva Priscila Figueiredo Rodrigo de Faria Matheus Silveira de Souza Paulo Capel Narvai Francisco Fernandes Ladeira Eliziário Andrade Carlos Tautz Anselm Jappe Henry Burnett João Paulo Ayub Fonseca Lincoln Secco Atilio A. Boron Luiz Marques Bernardo Ricupero Tales Ab'Sáber João Carlos Loebens João Lanari Bo Luís Fernando Vitagliano Antônio Sales Rios Neto Gabriel Cohn Benicio Viero Schmidt Jorge Branco Michel Goulart da Silva Luiz Bernardo Pericás Osvaldo Coggiola Slavoj Žižek Renato Dagnino Vladimir Safatle Luiz Carlos Bresser-Pereira Eugênio Trivinho Samuel Kilsztajn Eleonora Albano Yuri Martins-Fontes Leonardo Sacramento Ricardo Antunes Ladislau Dowbor

NOVAS PUBLICAÇÕES