Por LINCOLN SECCO*
Um comunista do século XX com todas as implicações dessa condição
Jacob Gorender (1923-2013) foi um comunista do século XX com todas as implicações dessa condição. Entre as perseguições da polícia e as oscilações táticas determinadas pelo Comitê Central que obrigavam os militantes a fazer piruetas teóricas a fim de justificar a nova linha, ele passou por todas as vicissitudes de seu partido sem perder a convicção marxista. Pracinha da Força Expedicionária Brasileira na Itália, ele foi um dos primeiros intelectuais brasileiros a conhecer as ideias de Antonio Gramsci.
Da Conferência da Mantiqueira, quando o “grupo baiano” ao qual pertenceria ganhou a direção do PCB, passando pelo apoio a Getúlio Vargas, pela oposição a ele, pela legalidade, pela cassação, pelas guerrilhas rurais dos anos 1950, Jacob Gorender teve papel destacado em todas aquelas fases. Foi um dos redatores da famosa declaração de março de 1958 que adaptou o PCB a uma “era de coexistência pacífica”. Mais tarde, Jacob Gorender corajosamente rompeu com o PCB, ajudou a fundar o PCBR e toda a história subsequente é conhecida e foi narrada no seu grande livro Combate nas trevas, no qual a testemunha ocular da história fundiu-se perfeitamente ao historiador, embora não precisemos concordar com seu juízo a respeito de Luiz Carlos Prestes.
Jacob Gorender e Caio Prado Junior
Como historiador, Jacob Gorender estabeleceu-se por mérito e não por títulos. Era autodidata e amadureceu as teses de seu livro Escravismo colonial na prisão. Na linha de Caio Prado Junior ele tentou entender o fracasso do PCB em 1964 voltando-se para a história do Brasil, mas pouca gente compreendeu que ele não se separou do quadro geral em que esta leitura se dava, a saber: o marxismo do PCB.
Ao contrário de Caio Prado, Jacob Gorender buscou classificar as relações de produção internas da colônia e encontrar o “modo de produção dominante”. Por isso ficou mais próximo metodologicamente de Nelson Werneck Sodré, de quem era adversário, do que de Caio Prado Junior, de quem era amigo. Tal fato não foi ainda estudado. Uma explicação é que nos deixamos levar talvez pela violência de linguagem que caracterizou a relação entre Gorender e Sodré e que pode ser aferida nas reflexões metodológicas que iniciam o livro Escravismo colonial e na resposta de Werneck Sodré no artigo “As Desventuras da Marxologia”.
Da obra de Caio Prado, Jacob Gorender valorizou a ênfase na estrutura exportadora que caracterizou permanentemente a economia brasileira desde o início da colonização. Mas negou a ideia de que o nosso país se explica pela análise de sua estrutura comercial, ou seja, no âmbito da distribuição e circulação das mercadorias, cujo centro dinâmico era exógeno à colônia, situado nos países centrais europeus.
Sem negar nossa dependência e a importância do tráfico de escravos, conferiu importância ao mercado interno colonial e, como Nelson Werneck Sodré (ainda que em oposição a ele) buscou descrever as relações de produção internas. Assim, Jacob Gorender se coloca no interior da mesma problemática de Werneck Sodré e Alberto Passos Guimarães, embora visse com mais simpatia o único que, de fato, polarizou o debate com aqueles autores: Caio Prado Junior.
A expressão política da ruptura com o PCB por parte de Jacob Gorender foi a luta armada. Neste aspecto, Caio Prado Junior, que não propugnou esta linha de ação, estava mais próximo do PCB (do qual nunca saiu) e de Nelson Werneck Sodré, que escreveu sobre a inviabilidade do confronto militar, do que de Jacob Gorender.
Jacob Gorender e Florestan Fernandes
Mas aquela ruptura ainda não estava informada pela sua nova leitura da história brasileira, feita depois, na prisão. Ainda não foram analisadas as consequências políticas desta leitura na sua militância posterior, especialmente quando apoiou as alas de esquerda do Partido dos Trabalhadores (PT) e as lutas do MST nos anos 1980 e 1990.
Alguns dados são significativos: ele considerou que a persistência da pequena propriedade desmentia as teses agrárias de Caio Prado Junior (ou a leitura que se fez delas). Explicaria isto seu apoio ao MST?
Foi nos anos 1980 que ele se contrapôs aos que desejavam “reabilitar a escravidão”, resgatando a subjetividade conciliadora dos dominados, quando se tratava de acentuar a subjetividade coletiva e anti-sistêmica dos quilombolas. Esta concepção não estava bastante próxima dos setores radicais do protesto negro daquele período?
Defendeu a ideia de que a revolução burguesa no Brasil já havia sido feita num processo historicamente concentrado que envolveu a luta pela abolição. Não estaria se opondo à concepção de Florestan Fernandes, por um lado, e por outro à política de alianças do PT?
Jacob Gorender não flertava com o que suspeitasse ser eclético. É possível que visse tanto na formação de Caio Prado Junior quanto na de Florestan aspectos de ecletismo. E nem por isso deixava de admirar profundamente os dois. Aproximava-o de Caio Prado, além da amizade, a crítica devastadora ao PCB feita no livro A Revolução Brasileira. E de Florestan a condição de publicista revolucionário que liderou toda uma geração.
Ambos foram intelectuais marxistas independentes no interior do PT. E ambos na ala esquerda, embora sem vínculo orgânico com tendências. No caso de Gorender, ele nem era filiado, só vindo a assinar uma ficha de filiação depois da morte de Florestan Fernandes.
Gorender e o PT
O programa democrático popular que a maioria de nós apoiava no PT era uma política que visava criar a economia nacional através da formação de um mercado interno de massas, do aumento dos salários, da organização dos sem-terra e sindicalização dos trabalhadores rurais, com destaque para a Reforma Agrária.
Decerto, a criação do mercado interno solucionaria os impasses do “setor inorgânico” da população, dos desempregados, desamparados e desligados das atividades produtivas principais. Mas o que Gorender e Florestan viam acima de todos nós é que sem a perspectiva da Revolução Social, o reformismo popular do PT dos anos 1980 se tornaria um reformismo conservador, de cima para baixo.
Fluente na língua russa, Jacob Gorender acompanhou a Perestroika de Mikhail Gorbatchev e a tentativa de golpe restaurador na União Soviética (in loco). Foi auxiliado por Florestan Fernandes para obter os documentos e apoio diplomático para sua viagem a Moscou. Nos anos 1990 ainda surpreendeu a todos com suas discussões acerca do neoliberalismo e das teses de Robert Kurz e publicou uma obra ousada: Marxismo sem utopia.
Numa homenagem, eu só posso falar do historiador, que eu li desde minha adolescência, e do homem que conheci, já em sua velhice no PT e em suas idas à USP. Velho, mas combatente. Militante duro e generoso. Quantas vezes fomos à sua casa nos anos 1990 para conversas e para ajudá-lo a arrumar os livros. Frequentemente ia lá com meu amigo Luis Fernando Franco. Lá conhecemos sua valorosa companheira Idealina. Por vezes encontrávamos Jacob Gorender juntamente com os camaradas Carlos Santiago (com quem se correspondeu) e Ciro Seiji.
Lembro-me quando eu e minha companheira Marianne Reisewitz o levamos a uma reunião da Associação dos professores universitários de História em Campinas. Ele dividiu uma mesa comigo (um simples estudante da graduação), Luis Fernando e com nosso amigo Paulo Henrique Martinez que era assessor de Florestan Fernandes no escritório deste na Rua Santo Antônio, no bairro do Bixiga, em São Paulo.
Muito amigo de nosso Núcleo de Estudos de O Capital, Gorender nos deu uma parte de sua biblioteca (livros anotados acerca da escravidão). Encontrávamo-nos por vezes nos cinemas da Avenida Paulista, aonde ele ia muito. Jacob Gorender também frequentava o Teatro Municipal e a Sala São Paulo, pois era amante da música clássica. Quando trabalhou para a editora Abril escreveu vários daqueles encartes que acompanhavam os discos de vinil de Beethoven, Mozart, Chopin etc.
Na ocasião de sua morte nos sentimos abandonados. Quem nos ensinaria a estudar as difíceis conjunturas políticas que estamos vivendo? Quem teria a coragem de sacudir a poeira das teorias ossificadas e, na batalha das ideais, ousar lutar, ousar vencer?
*Lincoln Secco é professor do Departamento de História da USP. Autor, entre outros livros, de História do PT (Ateliê).
Publicado originalmente no blog da Boitempo, em 2013.
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